terça-feira, 6 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO III -- A VELHA DOS GANSOS


A VELHA DOS GANSOS


Era uma vez uma velha muito velha que, vergada ao peso dos anos, vivia com um bando de gansos numa paragem deserta, no meio das montanhas, onde possuía uma casinha pequenina e toda branca.
Estendia-se ao redor uma floresta de árvores altas para a qual todas as manhãs a velha se encaminhava arrimando-se a um pesado e retorcido bordão. Aí trabalhava ela durante horas inteiras, com ardor verdadeiramente incompreensível na sua idade. Colhia erva para os seus gansos, lenha para o seu lume e fruta para o seu jantar, e depois velha velhinha como era, punha o seu fardo alegremente às costas como se ele nada pesasse e ia-se embora satisfeita. Nunca ninguém a viu tristonha ou mal humorada, — chovesse, ventasse ou fizesse sol...
De vez em quando, se encontrava um transeunte, dava-lhe bons dias e parava para tagarelar um pouco. Na maioria dos casos, porém , evitavam-na os viandantes como se ela fosse um gênio mau. Os pais das crianças dos arredores recomendavam sempre aos filhos que fugissem de encontrar a velha e tomassem por outros caminhos, embora mais longos, quando a enxergassem à distância.
Um dia, certo jovem, simpático e muito bem vestido, passou casualmente pela floresta. O sol brilhava, cantavam pássaros nas árvores, e o vento, soprando leve, agitava no ar os ramos verdes. Avistou logo a velha inclinada junto de uma cesta cheia de frutos silvestres, amarrando o saco onde tinha post erva para os gansos.
— Olá, mulher! — disse ele, — pensas levar toda essa carga?
— Que ei de fazer? os ricos podem ficar de braços cruzados, mas não foi para os camponeses, mesmo velhos, que se inventou o descanso...
E depois, como o jovem a olhasse compadecido, acrescentou:
— Quer o senhor ajudar-me? O senhor é moço, tem as pernas fortes, e este saco pesar-lhe-á, com toda a certeza, menos do que uma pluma. Além do mais, o caminho não é longo... e o senhor praticaria uma boa ação auxiliando uma pobre velhinha como eu.
— Pois bem: vou ajuda-la. Sou filho de um grande conde, mas quero provar-lhe que posso, como qualquer camponês, carregar às costas um saco cheio de erva.
— Será o senhor tão amável? — retrucou a velha. Agradecer-lhe-ei muito, muito. Preciso, todavia, de o advertir, que não moro tão próximo como disse a princípio, e que levaremos uma boa hora para chegar a minha casa. Ao ouvir isto o filho do conde fez um gesto de recuo, mas a velha não lhe deu tempo de mudar de idéia. Colocou-lhe às costas o saco, enfiou-lhe a cesta no braço e pôs-se a caminho.
— Caramba! — exclamou o jovem! — Dir-se-á que este saco está cheio de pedras e que estas frutas são de chumbo! Irra! E fez um gesto para atirar tudo fora.
— Até parece mentira! — disse, rindo, a velha — que um moço como tu não tenha forças para levar às costas o que eu,caindo ao peso dos anos, carrego todas as tardes. Vamos! Anda para a frente, pois agora, ainda que quisesses atirar a carga ao chão, não poderias fazer.
Efetivamente, o filho do conde sentiu que a cesta e o saco estavam como que colados ao seu corpo. Começou a andar. A princípio não se cansou, mas, quando teve de subir o aclive de uma colina, o suor inundou-lhe a fronte e bem depressa a fadiga o obrigou a deter-se.
— Não posso mais, — gemeu, fechando os olhos. Vou descansar um instante.
— De modo algum, — replicou a velha. Quando chegarmos a casa tu descansarás a teu gosto. Adiante! Adiante! Não pares!
O moço, que tinha razões para achar a carga um pouco pesada, tratou de ver se a alijava dos ombros. Por mais que fizesse, entretanto, nada pôde conseguir. E a danada da velha ria-se que se desmanchava, dos seus esforços inúteis.
— Vamos, meu lindinho! Tem calmo! Se soubesse como ficas feio quando estás zangado... Pões-te vermelho como um tomate! Carrega o saco pacientemente que eu te darei uma boa recompensa.
O filho do conde marchava suando, com a língua de fora, como um cachorro com sede. Embora desesperado, teve que se conformar com a sua sorte e não reclamar. Ia muito a passo, muito a passo, e demorou meia hora para galgar o aclive da colina.
Ao chegar ao cimo divisou a casinha branca da velha e então, tomando alento, deu uma pequena corrida. Súbito, porém, a velha, de um salto, pulo para cima das costas do rapaz e sentou-se no saco da erva! As pernas do coitado tremeram tanto que por pouco ele não caiu. A velha, que parecia não ter mais que pele e osso, pesava horrivelmente! Desfazendo-se em suor e deitando os bofes pela boca, voltou o jovem a caminhar. Se fazei menção de e deter um instante, a velha batia-lhe com o bordão gritando:
— Upa! Upa! Para a frente, meu cavalinho!
Quando estavam perto da casinha branca, o bando de gansos reconheceu a dona e correu-lhe ao encontro, grasnando forte, batendo as asas e esticando os pescoços. Atas deles vinha uma camponesa, feia como os sete pecados mortais.
— Mamãezinha, — disse, — como tardou hoje! Aconteceu-te qualquer coisa de ruim?
— Não, minha filha, — respondeu a velha. Ao contrário: tive o prazer de encontrar este bom senhor, que com muita amabilidade me trouxe às costas e me carregou o saco inda por cima. A viagem foi, talvez, mais demorada, porque viemos rindo e cavaqueando até chegar aqui.
Desceu, em seguida, dos ombros do rapaz, que mal se podia ter em pé, apanhou o saco e a cesta, e disse-lhe:
— Foste deveras muito amável. Senta-te neste banco e descansa, pois deves estar realmente fatigado. Quanto à recompensa, poder contar com ela. O prometido é devido. E tu, minha filha, — ajuntou, dirigindo-se à camponesa, — volta para casa. És tão formosa que este senhor poderia enamorar-se de ti.
Apesar de sua extrema fadiga, o jovem não se pôde conter que não desse uma boa gargalhada, pois aquela moça tinha mais de monstruosos que de criatura humana propriamente.
Ficando sozinho, deitou-se no banco indicado pela velha. O ar tão suave e perfumado que ele não tardou em adormecer ao cabo de meia hora chegou a velha e despertou-o.
— Levanta-te já é hora de partires. Vai-te embora se não queres que a noite te surpreenda na floresta antes que chegues à próxima aldeia. Não te posso dar hospedagem. Toma isto, porém, que te compensará de todo o teu trabalho.
E entregou-lhe um pequeno estojo feito de uma só esmeralda.
O jovem aceitou o presente e levantou-se. Com surpresa sua, todavia, não sentiu mais nem sombra de cansaço. Despediu-se da velha e partiu, mas, embrenhando-se no bosque errou o caminho e extraviou-se. Noite cerrada, vendo uma luzinha numa choupana ao longe, aproximou-se e bateu à porta. Era a casa de um carvoeiro, que lhe deu pousada até ao romper do dia seguinte. Recomeçou de madrugada o seu caminho, e dois dias inteiros prosseguiu através daquela enorme floresta, que parecia de cada vez mais intrincada.
Chegou, afinal, a um estranho país de que nunca ouvira falar. As ruas eram calçadas com ladrilhos de prata, e as crianças entretinham-se brincando nos passeios com finos objetos de ouro, cravejados de diamantes, safiras e rubis.
Encontrando, a princípio, algumas esmeraldas caídas na rua, apanhou-as o moço com a intenção de restituir, supondo-as perdidas, talvez, pelo joalheiro da corte. Cedo, porém, se convenceu de que, naquele maravilhoso país, as jóias não tinham mais valor do que as pedras. As casas eram feitas de mármores preciosos.
Admirado de tanta magnificência, dirigiu-se ao palácio do rei, que o recebeu ao lado da rainha e diante de toda a corte, — sentado num trono esplendoroso. Imediatamente o jovem dobrou um joelho em terra e ofereceu a soberana o estojo com que a velha o presentear. Ela abriu-o e, mal lhe avistou o conteúdo, deu um grito e perdeu os sentidos. Por ordem do rei, então, os arqueiros prenderam o moço e o conduziram-no a um calabouço escuro. Todavia, logo que a rainha voltou a si, pediu que, em segredo, o trouxessem à sua presença. E ficando a sós com ele começou amargamente a chorar.
— O que vi na caixinha que me deste, — disse ela — despertou em meu coração uma lembrança horrível. Eu tinha três filhas muito formosas, mas a mais nova sobretudo, era uma verdadeira maravilha de beleza. Sua pele era fresca e macia como uma pétala de rosa. Vivia alegre. Mas se chorava, caiam-lhe pérolas dos olhos. Tinha quinze anos quando o rei, um dia, por um estranho capricho, a mandou chamar com suas irmãs à sala do trono.
— Queridas filhas, — disse ele, todos somos criaturas mortais, mas nunca sabemos quando vamos morrer. Quero por isso determinar de antemão a parte do reino que há de caber a cada uma de vós por minha morte. Bem sei que todas três me querem muito. Dizei-me, entretanto, qual a intensidade do vosso amor, afim de que saiba qual dentre vos me quer mais, pois à que mais me quiser darei uma parte maior do meu reino.
— Papai! — declarou a mais velha, — quero-vos tanto como aos doces mais saborosos!
— Eu, disse a segunda, — amo-vos tanto quanto ao meu mais rico vestido.
A menor permaneceu em silêncio.
— E tu, querida filha, como é que tu me queres?
— Francamente, — respondeu ela, — não vos sei dizer. Amo-vos tanto que não vejo como comparar o meu afeto a qualquer coisa.
Insistindo o rei, ela disse por fim:
— Senhor! As melhores iguarias são detestáveis quando não tem sal. Pois bem: quero-vos tanto quanto a comida quer o sal.
A estas palavras, orei, que era muito colérico, exclamou:
— Por que me faltas assim ao respeito? Visto que a tudo preferes o sal, dar-te-ei quanto possas levar, e dividirei o reino em partes iguais entre as tuas duas irmãs.
Depois, apesar de minhas lágrimas e súplicas, mandou colocar um saco de sal às costas da menina e conduzi-a ao interior da floresta que fica situada na fronteira do reino. Durante toda a jornada a minha pobre filhinha chorou e lamentou-se não por se ver privada da herança, mas por ter de separar-se de seu pai, de mim e de suas irmãs. Trouxeram-me depois uma cesta de perolas choradas pelos seus olhos. E nunca mais, — nunca mais! — tornei a ter notícias dela.
Dissipou-se mais tarde o furor do rei, que se arrependeu profundamente de tamanha crueldade. Fez então explorar toda a floresta para encontrar a menina, porém, tudo foi baldado. Supusemos que tivesse sido devorada pelas feras ou que alguma pessoa caridosa a houvesse recolhido. E o que está nesta caixinha vem confirma agora a última suposição. Minha surpresa foi enorme quando vi, ao abri-la, duas pérolas precisamente iguais às que corriam dos seus olhos em pranto.
Rogo-te, pois, que me digas como chegaram elas às tuas mãos.
O jovem contou, então, a sua aventura com a velha, acrescentando, porém, não ter visto mulher alguma que de longe se parecesse com uma princesa.
A rainha decidiu, no entanto, ir em busca da velha, na esperança de encontrar a sua querida filha. O rei quis ir também. E assim, na manhã do dia seguinte, partiram os dois para floresta guiados pelo filho do conde.
Uma semana depois destes sucessos, encontrava-se a velha sentada à porta de sua casinha, a fiar em silêncio, quando ouviu, de repente, um grande rumor. Eram os gansos que voltavam em companhia da moça, dando gritos de alegria.
Um minuto depois a moça recolheu-se à casa. Cumprimentou a velha e, pegando num fuso e numa roca, pôs-se também a fiar.
Assim estiveram cerca de uma hora sem dizer palavra. Inesperadamente, três pancadas soaram na janela. E um caboré grasnou sobre o telhado: hu! hu!
— É o sinal, — disse a velha. Já é tempo minha filha, de ires ao que sabes.
A camponesa caminhou sem falar e dirigiu-se a um riacho que havia perto caíra a noite, porém a lua brilhava prateando a mata. Seria possível distinguir uma alfinete no chão.
Ela sentou-se numa pedra, tirou uma pele que a mascarava cobrindo-lhe o rosto e a cabeça, abaixou-se, lavou-a na água e estendeu-a depois no chão para secar sobre a relva.
A sua pele era fresca e macia como uma pétala de rosa. E os seus cabelos brilhavam com tênues fios de ouro. Súbito, começou a chorar, a chorar, a chorar... e as lágrimas, gotejando no chão, ficavam grandes e brilhantes à luz da lua.
Nisto um ramo de árvore estalou, e a jovem, assustada como um veado quando ouve latidos de cães, cobriu-se com a feia máscara que a desfigurava e pôs-se a correr aflita. Uma nuvem, naquele momento, cobriu o disco da lua, e assim ela pôde desaparecer dentro da noite.
Quando trêmula de susto, chegou à sua casinha branca, foi contar à velha o acontecido.
— Escusas de me contar, minha filha. Sei tudo o que sucedeu.
E, pegando numa vassoura, pôs-se a varrer o soalho.
— Mãezinha, — perguntou a jovem, — por que varre a casa a estas horas?
— É porque a meia-noite está próxima. Não te recordas de que fazem agora justamente três anos que vieste encontrar-me a estas horas, e que chegou o momento de nos separarmos?
— Então, a Mãezinha pensa em abandonar-me, va cobrindo-lhe o rosoto e a cabeça, abaixou-se, lavou-a na aas irmuro, craveja mim que não tenho pátria nem pais? Onde irei eu refugiar-me? Desobedeci-lhe em alguma coisa? E os meus pobres gansos, o que será deles? Os lobos vão come-los, com certeza.
— Não tenhas susto, — respondeu a velha. Encontrarás casa em que te abrigues, e serás muito bem recompensada pelo afeto que me demonstraste. Sobe ao teu quarto, retira essa feia mascar, adorna-te com as tuas jóias e põe o lindo vestido que trazias quando chegaste. Depois, espera que eu te chame.
A jovem obedeceu sem replicar.
Enquanto isso se passava, o rei e a rainha haviam-se internado na floresta em companhia do filho do conde, porém, ao terceiro dia, tinha-se extraviado e não mais poderá encontrar seus companheiros. Chegara, por fim, às imediações do riacho e subira a uma árvore para se livrar das feras.
Estava trepado havia já muito tempo quando à luz da lua, viu a camponesa aproximar-se. Pensou logo em perguntar-lhe se a casinha branca da velha ficava longe dali. Quando, porém, lhe ia dirigir a palavra, emudeceu de espanto ao vê-la tirar a máscara que a afeiava e converter-se numa jovem formosíssima. Avançou a cabeça para melhor a contemplar, e foi então que o ramo estalou, alarmando-a e fazendo-a correr embora a toda pressa.
Já sem medo das feras, o filho do conde desceu da árvore resolvido a procurar a casinha branca. Decorridos alguns instantes percebeu duas pessoas que avançavam por um clareira, e apressou-se em reunir-se a elas. Eram o rei e arainha, que disseram haver enxergado uma luzinha ao longe e para lá se estavam encaminhando.
O moço contou-lhes o que vira. O rei e a rainha não hesitaram em declara que a jovem era sua filha e, acelerando o passo, avançaram rapidamente em direção à casinha branca, donde a luzinha partia.
Notaram, ao chegar, um bando de gansos que dormia com os bicos debaixo das asas. E avistaram a velha, que fiava calmamente depois de ter varrido o chão.
Sem vacilar um momento a rainha bateu à porta, e aomento a rainha bateu mente depois de ter varrido o ch asas. e essou-se em reunir-se a elas. eram velha correu a abri-la, dizendo com amabilidade:
— Entrai! Eu já vos esperava.
E dirigindo-se ao rei, ajuntou:
— Se a três anos vos não deixásseis arrastar pela cólera, não haveríeis de percorrer agora tão longo caminho nem sentiríeis os remorsos que sentistes. Vossa filha esteve, durante todo este tempo, guardando gansos ao meu lado. Creio que estais bem castigado. Assim, de ora em diante, acabaram-se as vossas penas.
E voltando-se para o sobrado, gritou:
— Desce, menina, desce!
Um instante depois apareceu a princesa vestida com os trajes da corte. Os seus olhos brilhavam como diamantes. Os seus cabelos fulgiam como tênues fios de ouro! E a sua pela era fresca e macia como uma pétala de rosa.
Atirou-se imediatamente aos braços dos pais, que choravam de alegria. E reparando no filho do conde, toda a sua felicidade, corou ao lembrar-se do desdém com que ele a mirava da primeira vez que a vira mascaradao tiamantes. os penas.o gansos ao meu lado. creio com a pele feíssima.
— Filha! — disse o rei. O meu pesar é enorme por haver dividido o reino entre as tuas duas irmãs. Espero que me perdoes.
— Não vos aflijais por isso — declarou a velha. Recolhi todas as pérolas que a menina chorou pensando em vós. São muito mais preciosas do que as que existem no fundo do mar. e como salário dos três anos em que a tive ao meu serviço, dou-lhe de presente a minha morada. Há nela um tesou que vale bem mais do que um reino: é a inocência do coração de vossa filha.
Depois de dizer isto, abraçou a princesa e desapareceu. Soou então um formidável ruído, e num abrir e fechar de olhos a casinha da floresta converteu-se num palácio magnífico, melhor cem vezes do que o palácio do rei.
O conto ainda não está concluído. Minha avozinha, porém, que era quem me contava, sendo já muito velha e muito fraca de memória, não se recordava do final. Outras pessoas, todavia, a quem consultei sobre este caso, me garantiram que a formosa princesa se casou como filho do conde e que ambos viveram muito tempo no soberbo palácio em que se transformara a casinha branca.
A velha não era uma bruxa ruim. Pelo contrário: era uma boa fada, — a mesma que havia concedido à princesa o dom de se mudarem em pérolas as suas lágrimas.
Quanto aos gansos, estou seguramente informado de que todos eles eram jovens extremamente formosas. Haviam perdido outrora a forma humana em castigo do seu orgulho, da sua maldade e da sua falta de amor aos pobrezinhos.
A fada, porém, desencantou-as considerando-as já suficientemente punidas, e elas foram ser, segundo as suas categorias, — umas, damas de honor, e outras, camareiras da princesa.










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