UM HERÓI: TIRADENTES
I
Um dia, já faz
duzentos anos, D. Antônia disse a Seu Domingos:
— Domingos, que é de
o Joaquim?
D. Antônia era mulher
de Seu Domingos. Tinham eles uma fazenda em São João d’El-Rei, na
Capitania de Minas Gerais, e nela viviam com seus filhos. eram sete:
cinco meninos e duas meninas. Os dois mais velhos estudavam para
padre. O quarto chamava-se Joaquim José.
— Domingos, que é de
o Joaquim?
O Seu Domingos estava
acostumado a ouvir aquela pergunta, porque a mulher lhe fazia muitas
vezes ao dia, desde que o pequeno Joaquim José começou a andar e
pôde dar as suas voltas.
— Domingos, que é de
o Joaquim?
O Seu Domingos, que
examinava uns minérios, respondeu-lhe impaciente:
— Onde há de estar?
Rodando por aí. Já o vi ajudando a ferrar cavalos; depois trabucou
com o carpinteiro no conserto do carro; esteve no palheiro, lendo o
livro que o padrinho lhe trouxe; por último, estava com os escravos
na mineração...
II
Joaquim José da Silva
Xavier era o nome todo do menino e, como se vê, devia ser um
diabrete vivo e incansável. Não parava um momento. Muito curioso,
queria aprender tudo. Muito metediço, não havia coisa em que não
se metesse. Muito ativo, não sabia o que era preguiça. Onde quer
que estivesse, havia discussão e movimento, porque sabia agitar o
seu pequeno mundo.
Criança ainda, era ele
o que resolvia as principais dificuldades da fazenda. Fazer uma conta
depressa, escrever uma carta, dar um recado, pegar um cavalo arisco,
consertar uma fechadura, tapar uma goteira, apanhar lenha, tudo fazia
com desembaraço e boa vontade.
Era bom, e todos
gostavam dele, principalmente os humildes.
Um dia, como um escravo
chorasse de dor de dente, disse-lhe:
— Deixe estar que eu
lhe tiro esse malvado.
Dito e feito. Tirou-lhe
o dente com uma habilidade grande.
Dente aqui, dente ali,
acabou por aprender melhor a arte do que o dentista da terra, e, por
isso, dentro de pouco tempo, todo o mundo passou a chama-lo
Tiradentes.
III
Naquele tempo não
havia escolas superiores em nosso país, a não ser para formar
sacerdotes, e o pequeno Joaquim José, que não queria ser padre,
resolveu aprender por si as coisas que queria.
Observou como os
dentistas trabalhavam, comprou livros práticos e fez-se dentista.
O seu padrinho era
médico. Pois bem. Joaquim José desandou a freqüentar a casa do
padrinho, lendo os livros dele, discutindo com ele e, dentro em
pouco, estava curando tão bem quanto ele.
— Compadre Domingos,
dizia o médico, que se chamava Sebastião Ferreira Leitão — o meu
afilhado vai longe. O diabo do pequeno adivinha coisas que eu não
sei.
— Tem razão, Doutor
— respondeu-lhe, certa vez Domingos. Ele merecia bem seguir uma
carreira, mas não posso dispensa-lo. Ele é a alma da fazenda.
Entende de mineração, trabalha na carpintaria, faz-se de ferreiro,
amansa cavalo bravo. Não podemos passar sem ele. Os próprios
escravos o adoram, porque cuida deles com carinho. Por causa dele, os
meus escravos nunca são castigados. E os seus irmãos pequeninos?
Ele lhes serve de mão, pois substitui a mãe que Deus levou...
IV
Joaquim José perdeu a
mãe aos nove anos e o pai aos quinze. Que havia de fazer? precisava
de agenciar a sua vida e não gostava de ficar parado. Desejava ver
mundo, correr terra, conhecer lugares mais adiantados.
Ficou na fazenda algum
tempo, até que o deixasse os irmãos arrumados, mas depois, juntando
uns cobres, comprou uma tropa de animais e resolveu fazer transportes
e negociar.
Levaria produtos de sua
terra para outros lugares, principalmente Vila Rica e Rio de Janeiro,
e, assim viajaria e ganharia dinheiro.
Dessa maneira, correu e
percorreu a nossa terra, palmo a palmo, levando e trazendo coisas,
notícias informações.
Conversou com os
lavradores, mineradores, negociantes, operários de todos os ofícios
que encontrava na sua caminhada, e, como fosse inteligente, aprendeu
muitas coisas.
V
Um belo dia, chegava
ele a Minas Novas, no caminho da Bahia.
Imaginem vocês em que
se meteu ele! Um patrão castigava estupidamente um escravo, e ele,
compadecido, lhe pediu que não o fizesse.
Palavra puxa palavra, o
moço Tiradentes, que tinha uns vinte anos, deitou o braço no
patrão, em defesa de um pobre negro que não conhecia.
Tiradentes foi preso e
acabou perdendo a sua tropa com as despesas da justiça.
Ele era em moço o que
fora quando criança: bom e bravo. Não tolerava a ruindade, amparava
os fracos e não tinha medo de nada nem de ninguém.
VI
Pobre, tendo perdido
tudo, que havia de fazer?
— Vou fazer carreira
militar — disse ele. Assento praça e continuo a correr mundo. Para
isso não é preciso dinheiro.
De fato, assentou praça
e chegou a Alferes.
Todas as vezes que
aparecia um caso perigoso, que exigia bravura, esperteza e
honestidade, já se sabia: Tiradentes era chamado para o barulho.
Nas horas vagas
continuava a estudar a sua odontologia, a sua medicina, o seu
direito, lendo e acudindo as pessoas. Além disso, mineirava,
plantava, fazia negócios.
VII
Por esse tempo, o
Brasil, e principalmente Minas, cruzava uma hora difícil. A extração
de ouro caíra muito, e o governo português atormentava o povo,
aumentando os impostos, impedindo-o de criar indústrias, não o
deixando desenvolver-se. Ele próprio, Tiradentes, parara na sua
carreira, apesar de seu esforço, e os protegidos iam passando por
cima dele.
O povo mineiro não
suportava mais.
Escutando o clamor de
seu povo, Joaquim resolveu fazer o que fez em Minas Novas: o povo
brasileiro era um outro escravo negro que o patrão impiedoso
martirizava brutalmente.
VIII
Então, Joaquim José
começou a trabalhar para livrar o Brasil. Procurou os militares, os
advogados, os sacerdotes, os capitalistas, todos quantos podiam
compreender a dureza daquela vida. Em Vila Rica, em Mariana, em
Barbacena, em São João d’El-Rei, no Rio de Janeiro, ia abrindo os
olhos dos brasileiros para que se revoltassem.
O Brasil era uma terra
fértil e rica: podia viver por si. Os brasileiros era inteligentes e
trabalhadores: deviam governar-se por si.
Vocês sabem o que
aconteceu?
Dentro de pouco tempo,
o governo soube do que se passava, prendeu os que conspiravam, e
vocês sabem o resto — Tiradentes foi enforcado.
Pensam vocês que ele
se acovardou? Nada. Disse toda a verdade na cara de seus juízes,
contando porque os brasileiros se haviam revoltado e chamou para si
toda a responsabilidade da conspiração. Ele foi a melhor testemunha
contra si próprio.
IX
Vejam vocês, como a
vida desse homem é bonita e como a sua alma foi igual: em Minas
Novas, aos vinte anos, deitou o braço num patrão de escravos que
martirizava um pobre preto, e foi preso, perdendo todos os seus bens;
em Vila Rica, quando tinha quarenta anos, não se conformou com o
sofrimento de seu povo, revoltou-se e perdeu a vida.
Vocês acham por acaso
que o patrão de escravos de Minas Novas continuou a espancar os seus
escravos como vinha fazendo, depois da surra que o moço Tiradentes
lhe deu? Pensam vocês que o governo português continuou a dar o
mesmo tratamento que vinha dando aos brasileiros, depois da
Inconfidência? Não pensem assim. Garanto a vocês que o patrão de
escravos se lembrou da pancadaria que levou, todas às vezes que teve
de levantar o braço contra um escravo. Por sua vez, é certo que o
governo português, a partir da Inconfidência, começou a tratar o
Brasil de maneira melhor e mais humana.
E sabem o que mais?
O povo brasileiro
começou a sentir que era preciso lutar para ornar independente este
grande país que é a nossa pátria.
E os brasileiros
tornaram o Brasil independente.
E sabem o que mais? O
povo brasileiro ainda não está inteiramente independente.
Só pelo trabalho, só
pelo desenvolvimento da indústria, da agricultura, do comércio, só
pela valorização do homem brasileiro, é que nosso povo acabará de
fazer a independência do Brasil.
Todos nós precisamos
de aprender a lição de Tiradentes: trabalhar pelo Brasil, e, se for
preciso morrer pelo Brasil.
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