A GATA BORRALHEIRA
I
Há muitos anos, num
palácio muito rico, uma rainha, sentindo-se às portas da morte,
chamou sua única filha e disse-lhe:
— Minha filha, sinto
que vou morrer, seja sempre boa e caridosa, para que Deus a ajude.
Acabando de dizer estas
palavras, morreu.
A menina, que se
chamava Maria, chorou muito a falta de sua mãe. A promessa de velar
por ela, todavia, consolou muito a pobre menina.
Passado algum tempo, o
pai de Maria casou-se com uma senhora muito bela, Ricardina, que
tinha duas filhas, lindas de rosto, mas de perverso coração.
A vida de Maria
tornou-se um tormento, desde aquele dia.
As moças trocaram seus
lindos vestidos e sapatos por outros grosseiros e feios.
Maria era obrigada a
fazer os mais rudes trabalhos, desde o romper da aurora até ao
anoitecer. Acendia o fogo, lavava roupa, cozinhava, fazia outros
serviços caseiros. Nem cama tinha a pobrezinha, que dormia num canto
do fogão, no borralho, lugar em que as gatinhas gostavam de dormir.
Daí lhe veio o nome de Gata Borralheira.
Entretanto, Maria
recordava-se das últimas palavras de sua mãe e continuava boa e
caridosa.
Nas horas mais tristes
de sua vida, ia chorar junto ao túmulo de sua mãe.
Num dia desses, em que
soluçava sem consolo, apareceu-lhe uma linda moça que lhe disse:
— Maria, sou a Fada
Belmira, sua madrinha. Continue a ser boa, e, de hoje em diante,
aparecerei sempre para a consolar. Coragem, Maria! Sempre Deus
protege os bons.
A fada desapareceu.
II
Maria continuava sua
triste vida, quando, um dia, chegou ao palácio um emissário do Rei
Fernando, convidando-a e às filhas de Ricardina para uma festa em
que seria escolhida a esposa para seu filho, o Príncipe Fernando.
As duas moças ficaram
contentíssimas com o convite, esperançosas de que uma delas seria a
escolhida.
Puseram a arrumar-se.
Abriram baús de onde tiraram riquíssimos vestidos de seda.
Despejavam seus cofres sobre a mesa para escolher a jóia que
assentasse bem com os vestidos.
Os melhores
cabeleireiros e manicuras foram chamados, e, o dia inteirinho, as
moças passaram preparando-se.
Gata Borralheira
ajudava-as em tudo. Passava os vestidos e as fitas,escovava-lhes os
sapatos, ajudava-as a pentear-se e enfeitava-as o mais que podia.
Ao ver as moças tão
bonitas, teve os olhos cheios de lágrimas, lembrando-se de que, se
sua mãe estivesse viva, também estaria, — quem sabe? — mais
bonita do que elas.
Vendo lágrimas nos
olhos de Maria, Ricardina disse-lhe:
— Ah! Também você
queria ir ao baile? Ora essa! Era o que faltava! O Príncipe Formoso
dançar com a Gata Borralheira!
Deram todas uma risada!
Mas Ricardina disse:
— Está bem! Se
conseguir separar os grãos de feijão, que estão misturados com as
lentilhas na despensa, poderá ir.
Gata Borralheira, mais
do que depressa, correu para a despensa, e que viu? Um saco de feijão
misturado com outro de lentilhas!
Não desanimou, porém.
Chegou à janela e gritou:
— Passarinhos!
Passarinhos! Pombinhas! Andorinhas, minhas amigas! Venham todos!
Venham ajudar-me a separar o feijão das lentilhas.
Duas pombinhas brancas
apareceram na janela da cozinha, chegaram depois as andorinhas e
todos os passarinhos. Num instante, fizeram a separação dos grãos.
Muito contente, Gata
Borralheira chamou Ricardina para mostrar que tudo estava pronto,
certa de obter licença para ir ao baile.
Ricardina admirou-se da
rapidez com que Gata Borralheira fizera o trabalho e, sem desconfiar
de coisa alguma, disse:
— De qualquer
maneira, você não poderá ir ao baile, Maria. Não há tempo! As
meninas levaram dias em arranjos. Seria uma vergonha, levar você mal
arrumada.
Virando-lhe as costas,
Ricardina e suas filhas saíram para tomar a carruagem que esperava á
porta, para as levar ao palácio do Rei Fernando.
III
Gata Borralheira voltou
para o seu cantinho no borralho e pôs-se a chorar.
De repente ouviu um
ruído e — oh! Surpresa! — a Fada Belmira, na sua frente,
dizia-lhe:
— Eu sei porque você
chora, Maria. Quer ir ao baile, não é? Olhe! Vá depressa ao
quintal e traga-me uma abóbora.
Gata Borralheira correu
e foi diretamente à aboboreira. Apanhou uma abóbora e levou-a à
sua madrinha, sem saber o que teria ela com o baile.
— Agora, Maria,
traga-me duas lagartixas que estão perto das pedras que rodeiam a
fonte.
Num instante, Gata
Borralheira levantava as pedras e apanhava as lagartixas inquietas
numa garrafa que levou à sua madrinha.
A Fada Belmira tirou as
pevides da abóbora e foi marcando nela a boléia, as janelas e as
portas.
— Falta-me ainda uma
coisa, Maria! Veja se arranja alguns ratos.
Maria foi direta à
despensa onde apanhou dois, ainda vivos, da ratoeira em que acabavam
de cair.
Levando a abóbora e a
garrafa com as lagartixas, desceu até os portões de entrada.
Aí, ao toque mágico
da varinha — oh! Maravilhas! — a abóbora se transformou numa
carruagem dourada, belíssima. As lagartixas, em belos cavalos
brancos de narinas vermelhas e crinas longas; os ratos eram elegantes
cocheiros, vestidos com uniformes pretos de frisos e botões
dourados.
— Agora, Maria,
traga-me três sapos que estão cochilando à beira do repuxo.
Gata Borralheira correu
e voltou com os sapos que piscavam dentro de uma cestinha de arame.
Tocados pela varinha da Fada Belmira, transformaram-se em lacaios de
roupas de veludo e sapatos pretos de fivelas douradas, que se puseram
junto da porta da carruagem, tão corretos, como se nunca houvessem
feito outra coisa na vida.
Gata Borralheira estava
tão confusa com todas aquelas coisas maravilhosas que acabavam de
acontecer, quando viu seus vestidos se transformarem em outros,
belíssimos, do mais rico tecidos, semeados de pedrarias que
brilhavam de mil cores. Seus tamancos transformaram-se em sapatinhos
de cristal, riquíssimos. Toda ela se transformara na mais bela moça
que se pode imaginar.
Antes de tomar a
carruagem, a fada lhe recomendou:
— Menina, antes da
última pancada da meia-noite, corra para a carruagem. Senão, os
seus vestidos bonitos se tornarão nos seus trapos de todo dia e a
carruagem se transformará em abóbora, os cocheiros em ratos, os
lacaios em sapos, os cavalos brancos em lagartixas.
Gata Borralheira
prometeu à madrinha tudo, tudo, e, sorrindo de felicidade, partiu
para o palácio.
IV
O Príncipe Fernando, a
quem foram avisar de que acabava de chegar uma princesa desconhecida,
muito formosa, correu para recebe-la. Conduziu-a ao salão de baile.
Fez-se um grande silêncio na hora em que entraram no salão, pois
todos ficaram admirados com a beleza e a graça da princesa
desconhecida. Só se ouvia um murmúrio confuso.
— Que beleza! O
Príncipe Fernando, durante todo o baile, não procurou mais ninguém.
Entretida, Gata
Borralheira esqueceu-se do tempo.
De repente, olhou o
relógio grande da sala que marcava quinze minutos para meia-noite.
Escapou, e, descendo
rapidamente as escadas, alcançou a porta. Tomou a carruagem e
partiu.
O Príncipe procurou a
fugitiva, sem perceber a maneira rápida como escapara.
Gata Borralheira, ao
chegar em casa, antes mesmo de abrir a porta, ouviu as badaladas da
meia-noite e, por encanto, tudo voltou ao que era antes e cada coisa
ao seu lugar. A carruagem virou abóbora que foi para junto da
aboboreira. Lacaios, cavalos e cocheiros voltaram à sua primeira
forma, cada um em seu lugar, como dantes. Ela própria se viu com
seus trapos.
Sentou-se, então, no
borralho e começou a recordar-se do que se passara.
De repente, bateram na
porta.
Borralheira correu para
abri-la. Eram as duas irmãs e Ricardina, que chegavam. Uma delas,
foi logo dizendo:
— Ah! Borralheira!
Apareceu no baile uma princesa, linda, riquissimamente vestida.
Parecia mais uma fada do que uma princesa. O Príncipe Fernando ficou
de tal maneira impressionado, que não dançou mais, depois que ela
partiu.
Borralheira mal se
continha de alegria, mas calou-se, com medo de que desconfiassem de
alguma coisa.
Dias após, houve outro
baile, e, logo que as duas moças partiram com sua mãe, Borralheira,
sentada no canto do fogão, esperava a madrinha. Eis que ela aparece
e transforma os vestidos de Borralheira em outros mais lindos do que
os do primeiro baile.
Carruagem, lacaios,
cocheiros e cavalos, a uma palavra da fada e a um golpe da varinha de
condão, puseram-se à porta, prontos para a conduzirem ao palácio.
Embora prometesse à
madrinha que estaria de volta antes da meia-noite, ao entrar na
carruagem, ouviu ainda a recomendação:
— Cuidado, Maria!
Preste atenção no relógio. Olhe que poderá ter uma grande
decepção!
Maria prometeu tudo e
partiu, atirando-lhe beijos da porta da carruagem.
Durante o baile, Gata
Borralheira encantava a todos pela beleza, pela graça e pela riqueza
de seu vestido.
Num certo momento,
sentou-se entre as duas irmãs que se admiraram de que a princesa as
chamasse pelo nome. Mas estavam longe de desconfiar que pudesse ser
Gata Borralheira a lindíssima jovem.
O Príncipe não se
afastava dela um minuto, com medo de que escapasse, como no baile
anterior.
Gata Borralheira
distraiu-se, e por isso, levou um grande susto ao ouvir a primeira
badalada da meia-noite. Correndo mais depressa do que uma corça,
atravessou o salão. Desceu as escadarias e, na pressa, deixou cair
um pé de sapato na escada.
O Príncipe, que corria
atrás, abaixou-se para apanhar o sapatinho.
Foi sorte de Gata
Borralheira! Enquanto isso, chegou à porta do palácio e, aí —que
decepção! — carruagem, lacaios, cocheiros e cavalos, tudo havia
desaparecido. Suas vestes, na mesma hora se transformaram nas mesmas
rotas e velhas que usava antes do toque da varinha mágica.
Resfolegante de susto e
pressa, saiu Gata Borralheira pelos caminhos desertos e escuros, até
sua casa.
O Príncipe, que corria
atrás dela, indagou dos guardas se não haviam visto sair uma
princesa.
— Uma princesa, não,
— responderam-lhe. Vimos uma pobre menina de tamancos e de vestidos
rotos que não sabemos como conseguira entrar.
O Príncipe Fernando
não conseguira dormir a noite e, cedo, despertou seus cortesãos
para que fossem de casa em casa experimentar o sapatinho de cristal
em todas as moças do lugar, porque resolvera casar-se com aquela a
quem o sapatinho servisse.
De porta em porta,
desde a manhã até à tarde, os cortesãos experimentavam o sapato
em todas as moças dignas de ser esposas do Príncipe.
Voltaram desanimados, à
noite, mas o Príncipe pediu-lhes que experimentassem o sapatinho
também nas camponesas e nas criadas, porque era certo de que havia
de servir em algum pé. Ele próprio saiu acompanhando os cortesãos
que experimentavam o sapatinho em todas as moças, fossem pobres,
fossem ricas.
Bateram à porta da
casa de Gata Borralheira, pedindo que chamassem a criada. Deram um
risada, achando absurda a idéia de vir Gata Borralheira a
experimentar o sapatinho de cristal. Porque o Príncipe insistisse,
chamaram-na, então. Mas, que admiração! Gata Borralheira surgiu à
porta tão linda como nunca se apresentara antes.
O Príncipe olhou-a
encantado. Gata Borralheira nem precisou experimentar o sapatinho de
cristal, porque má estava calçada com o outro pé.
Assim vestida,
belíssima, Gata Borralheira partiu para o palácio com o Príncipe
Fernando, para ser apresentada aos soberanos, seus pais, como a
escolhida para a sua esposa.
As filhas de Ricardina
compreenderam que a felicidade de Gata Borralheira era o prêmio da
sua grande bondade.
Resolveram ser boas e
dizem que, mais tarde, também se casaram com ricos príncipes,
casamentos arranjados por Gata Borralheira.
E foram muito felizes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário