quinta-feira, 1 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO II -- A GATA BORRALHEIRA


A GATA BORRALHEIRA

I
Há muitos anos, num palácio muito rico, uma rainha, sentindo-se às portas da morte, chamou sua única filha e disse-lhe:
— Minha filha, sinto que vou morrer, seja sempre boa e caridosa, para que Deus a ajude.
Acabando de dizer estas palavras, morreu.
A menina, que se chamava Maria, chorou muito a falta de sua mãe. A promessa de velar por ela, todavia, consolou muito a pobre menina.
Passado algum tempo, o pai de Maria casou-se com uma senhora muito bela, Ricardina, que tinha duas filhas, lindas de rosto, mas de perverso coração.
A vida de Maria tornou-se um tormento, desde aquele dia.
As moças trocaram seus lindos vestidos e sapatos por outros grosseiros e feios.
Maria era obrigada a fazer os mais rudes trabalhos, desde o romper da aurora até ao anoitecer. Acendia o fogo, lavava roupa, cozinhava, fazia outros serviços caseiros. Nem cama tinha a pobrezinha, que dormia num canto do fogão, no borralho, lugar em que as gatinhas gostavam de dormir. Daí lhe veio o nome de Gata Borralheira.
Entretanto, Maria recordava-se das últimas palavras de sua mãe e continuava boa e caridosa.
Nas horas mais tristes de sua vida, ia chorar junto ao túmulo de sua mãe.
Num dia desses, em que soluçava sem consolo, apareceu-lhe uma linda moça que lhe disse:
— Maria, sou a Fada Belmira, sua madrinha. Continue a ser boa, e, de hoje em diante, aparecerei sempre para a consolar. Coragem, Maria! Sempre Deus protege os bons.
A fada desapareceu.

II
Maria continuava sua triste vida, quando, um dia, chegou ao palácio um emissário do Rei Fernando, convidando-a e às filhas de Ricardina para uma festa em que seria escolhida a esposa para seu filho, o Príncipe Fernando.
As duas moças ficaram contentíssimas com o convite, esperançosas de que uma delas seria a escolhida.
Puseram a arrumar-se. Abriram baús de onde tiraram riquíssimos vestidos de seda. Despejavam seus cofres sobre a mesa para escolher a jóia que assentasse bem com os vestidos.
Os melhores cabeleireiros e manicuras foram chamados, e, o dia inteirinho, as moças passaram preparando-se.
Gata Borralheira ajudava-as em tudo. Passava os vestidos e as fitas,escovava-lhes os sapatos, ajudava-as a pentear-se e enfeitava-as o mais que podia.
Ao ver as moças tão bonitas, teve os olhos cheios de lágrimas, lembrando-se de que, se sua mãe estivesse viva, também estaria, — quem sabe? — mais bonita do que elas.
Vendo lágrimas nos olhos de Maria, Ricardina disse-lhe:
— Ah! Também você queria ir ao baile? Ora essa! Era o que faltava! O Príncipe Formoso dançar com a Gata Borralheira!
Deram todas uma risada!
Mas Ricardina disse:
— Está bem! Se conseguir separar os grãos de feijão, que estão misturados com as lentilhas na despensa, poderá ir.
Gata Borralheira, mais do que depressa, correu para a despensa, e que viu? Um saco de feijão misturado com outro de lentilhas!
Não desanimou, porém. Chegou à janela e gritou:
— Passarinhos! Passarinhos! Pombinhas! Andorinhas, minhas amigas! Venham todos! Venham ajudar-me a separar o feijão das lentilhas.
Duas pombinhas brancas apareceram na janela da cozinha, chegaram depois as andorinhas e todos os passarinhos. Num instante, fizeram a separação dos grãos.
Muito contente, Gata Borralheira chamou Ricardina para mostrar que tudo estava pronto, certa de obter licença para ir ao baile.
Ricardina admirou-se da rapidez com que Gata Borralheira fizera o trabalho e, sem desconfiar de coisa alguma, disse:
— De qualquer maneira, você não poderá ir ao baile, Maria. Não há tempo! As meninas levaram dias em arranjos. Seria uma vergonha, levar você mal arrumada.
Virando-lhe as costas, Ricardina e suas filhas saíram para tomar a carruagem que esperava á porta, para as levar ao palácio do Rei Fernando.


III

Gata Borralheira voltou para o seu cantinho no borralho e pôs-se a chorar.
De repente ouviu um ruído e — oh! Surpresa! — a Fada Belmira, na sua frente, dizia-lhe:
— Eu sei porque você chora, Maria. Quer ir ao baile, não é? Olhe! Vá depressa ao quintal e traga-me uma abóbora.
Gata Borralheira correu e foi diretamente à aboboreira. Apanhou uma abóbora e levou-a à sua madrinha, sem saber o que teria ela com o baile.
— Agora, Maria, traga-me duas lagartixas que estão perto das pedras que rodeiam a fonte.
Num instante, Gata Borralheira levantava as pedras e apanhava as lagartixas inquietas numa garrafa que levou à sua madrinha.
A Fada Belmira tirou as pevides da abóbora e foi marcando nela a boléia, as janelas e as portas.
— Falta-me ainda uma coisa, Maria! Veja se arranja alguns ratos.
Maria foi direta à despensa onde apanhou dois, ainda vivos, da ratoeira em que acabavam de cair.
Levando a abóbora e a garrafa com as lagartixas, desceu até os portões de entrada.
Aí, ao toque mágico da varinha — oh! Maravilhas! — a abóbora se transformou numa carruagem dourada, belíssima. As lagartixas, em belos cavalos brancos de narinas vermelhas e crinas longas; os ratos eram elegantes cocheiros, vestidos com uniformes pretos de frisos e botões dourados.
— Agora, Maria, traga-me três sapos que estão cochilando à beira do repuxo.
Gata Borralheira correu e voltou com os sapos que piscavam dentro de uma cestinha de arame. Tocados pela varinha da Fada Belmira, transformaram-se em lacaios de roupas de veludo e sapatos pretos de fivelas douradas, que se puseram junto da porta da carruagem, tão corretos, como se nunca houvessem feito outra coisa na vida.
Gata Borralheira estava tão confusa com todas aquelas coisas maravilhosas que acabavam de acontecer, quando viu seus vestidos se transformarem em outros, belíssimos, do mais rico tecidos, semeados de pedrarias que brilhavam de mil cores. Seus tamancos transformaram-se em sapatinhos de cristal, riquíssimos. Toda ela se transformara na mais bela moça que se pode imaginar.
Antes de tomar a carruagem, a fada lhe recomendou:
— Menina, antes da última pancada da meia-noite, corra para a carruagem. Senão, os seus vestidos bonitos se tornarão nos seus trapos de todo dia e a carruagem se transformará em abóbora, os cocheiros em ratos, os lacaios em sapos, os cavalos brancos em lagartixas.
Gata Borralheira prometeu à madrinha tudo, tudo, e, sorrindo de felicidade, partiu para o palácio.

IV

O Príncipe Fernando, a quem foram avisar de que acabava de chegar uma princesa desconhecida, muito formosa, correu para recebe-la. Conduziu-a ao salão de baile. Fez-se um grande silêncio na hora em que entraram no salão, pois todos ficaram admirados com a beleza e a graça da princesa desconhecida. Só se ouvia um murmúrio confuso.
— Que beleza! O Príncipe Fernando, durante todo o baile, não procurou mais ninguém.
Entretida, Gata Borralheira esqueceu-se do tempo.
De repente, olhou o relógio grande da sala que marcava quinze minutos para meia-noite.
Escapou, e, descendo rapidamente as escadas, alcançou a porta. Tomou a carruagem e partiu.
O Príncipe procurou a fugitiva, sem perceber a maneira rápida como escapara.
Gata Borralheira, ao chegar em casa, antes mesmo de abrir a porta, ouviu as badaladas da meia-noite e, por encanto, tudo voltou ao que era antes e cada coisa ao seu lugar. A carruagem virou abóbora que foi para junto da aboboreira. Lacaios, cavalos e cocheiros voltaram à sua primeira forma, cada um em seu lugar, como dantes. Ela própria se viu com seus trapos.
Sentou-se, então, no borralho e começou a recordar-se do que se passara.
De repente, bateram na porta.
Borralheira correu para abri-la. Eram as duas irmãs e Ricardina, que chegavam. Uma delas, foi logo dizendo:
— Ah! Borralheira! Apareceu no baile uma princesa, linda, riquissimamente vestida. Parecia mais uma fada do que uma princesa. O Príncipe Fernando ficou de tal maneira impressionado, que não dançou mais, depois que ela partiu.
Borralheira mal se continha de alegria, mas calou-se, com medo de que desconfiassem de alguma coisa.
Dias após, houve outro baile, e, logo que as duas moças partiram com sua mãe, Borralheira, sentada no canto do fogão, esperava a madrinha. Eis que ela aparece e transforma os vestidos de Borralheira em outros mais lindos do que os do primeiro baile.
Carruagem, lacaios, cocheiros e cavalos, a uma palavra da fada e a um golpe da varinha de condão, puseram-se à porta, prontos para a conduzirem ao palácio.
Embora prometesse à madrinha que estaria de volta antes da meia-noite, ao entrar na carruagem, ouviu ainda a recomendação:
— Cuidado, Maria! Preste atenção no relógio. Olhe que poderá ter uma grande decepção!
Maria prometeu tudo e partiu, atirando-lhe beijos da porta da carruagem.
Durante o baile, Gata Borralheira encantava a todos pela beleza, pela graça e pela riqueza de seu vestido.
Num certo momento, sentou-se entre as duas irmãs que se admiraram de que a princesa as chamasse pelo nome. Mas estavam longe de desconfiar que pudesse ser Gata Borralheira a lindíssima jovem.
O Príncipe não se afastava dela um minuto, com medo de que escapasse, como no baile anterior.
Gata Borralheira distraiu-se, e por isso, levou um grande susto ao ouvir a primeira badalada da meia-noite. Correndo mais depressa do que uma corça, atravessou o salão. Desceu as escadarias e, na pressa, deixou cair um pé de sapato na escada.
O Príncipe, que corria atrás, abaixou-se para apanhar o sapatinho.
Foi sorte de Gata Borralheira! Enquanto isso, chegou à porta do palácio e, aí —que decepção! — carruagem, lacaios, cocheiros e cavalos, tudo havia desaparecido. Suas vestes, na mesma hora se transformaram nas mesmas rotas e velhas que usava antes do toque da varinha mágica.
Resfolegante de susto e pressa, saiu Gata Borralheira pelos caminhos desertos e escuros, até sua casa.
O Príncipe, que corria atrás dela, indagou dos guardas se não haviam visto sair uma princesa.
— Uma princesa, não, — responderam-lhe. Vimos uma pobre menina de tamancos e de vestidos rotos que não sabemos como conseguira entrar.
O Príncipe Fernando não conseguira dormir a noite e, cedo, despertou seus cortesãos para que fossem de casa em casa experimentar o sapatinho de cristal em todas as moças do lugar, porque resolvera casar-se com aquela a quem o sapatinho servisse.
De porta em porta, desde a manhã até à tarde, os cortesãos experimentavam o sapato em todas as moças dignas de ser esposas do Príncipe.
Voltaram desanimados, à noite, mas o Príncipe pediu-lhes que experimentassem o sapatinho também nas camponesas e nas criadas, porque era certo de que havia de servir em algum pé. Ele próprio saiu acompanhando os cortesãos que experimentavam o sapatinho em todas as moças, fossem pobres, fossem ricas.
Bateram à porta da casa de Gata Borralheira, pedindo que chamassem a criada. Deram um risada, achando absurda a idéia de vir Gata Borralheira a experimentar o sapatinho de cristal. Porque o Príncipe insistisse, chamaram-na, então. Mas, que admiração! Gata Borralheira surgiu à porta tão linda como nunca se apresentara antes.
O Príncipe olhou-a encantado. Gata Borralheira nem precisou experimentar o sapatinho de cristal, porque má estava calçada com o outro pé.
Assim vestida, belíssima, Gata Borralheira partiu para o palácio com o Príncipe Fernando, para ser apresentada aos soberanos, seus pais, como a escolhida para a sua esposa.
As filhas de Ricardina compreenderam que a felicidade de Gata Borralheira era o prêmio da sua grande bondade.
Resolveram ser boas e dizem que, mais tarde, também se casaram com ricos príncipes, casamentos arranjados por Gata Borralheira.
E foram muito felizes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário