quinta-feira, 1 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO II -- BRANCA DE NEVE


BRANCA DE NEVE

Longe, muito longe daqui, vivia uma rainha muito bela e boa que, para ser completamente feliz, só precisava de uma coisa: ter filhos.
Numa tarde fria de inverno, a rainha bordava num bastidor de ébano, junto de uma janela. Tempos em tempos, olhava, pela janela aberta, os campos, as árvores e as montanhas, tudo branco de neve. Distraída, espetou o dedo, e uma pequenina gota de sangue brotou.
Ah! Quem me dera ter uma filha tão branca como a neve, cujos cabelos fossem pretos, como o ébano, e de lábios tão vermelhos como este sangue!
Não tardou muito, e os desejos da rainha foram satisfeitos. Nasceu-se uma linda menina, como imaginara. Tinha as faces níveas, cabelos pretos e lábios rubros. Chamaram-na logo Branca de Neve.
Infelizmente a rainha morreu poucos dias depois de nascida a menina.
Passada algum tempo, o rei casou-se com uma mulher de grande beleza, mas muito orgulhosa, e, dizem, um pouco bruxa e um pouco feiticeira. Costumava fechar-se no seu quarto, onde nunca ninguém pusera os pés, para perguntar a seu espelho mágico:
“Dizei-me, espelhinho, com toda a franqueza:
Quem é, neste mundo, que tem mais beleza?”
O espelho sempre lhe respondia da mesma maneira, sem mentir.
“Rainha, sois a bela, com certeza”
Entretanto, Branca de Neve crescera. Tornava-se dia a dia mais linda.
Sentando-se a orgulha rainha, uma noite, diante do espelho mágico, perguntou-lhe, como costumava fazer:
“Dizei-me, espelhinho, com toda a franqueza:
Quem é, neste mundo, que tem mais beleza?”
O espelho, desta vez, respondeu-lhe:
“Não, não sois a mais bela, com certeza:
Branca de Neve tem maior beleza!”
A rainha irou-se ao extremo, ao ouvir essas palavras de seu espelho, principalmente porque ele só falava a verdade. Passou a noite atormentada e, afinal, no dia seguinte, não se contendo de inveja, chamou uma das aias da menina e disse-lhe:
— Amanhã, ao amanhecer, vá em companhia de meu fiel escudeiro, Ambrósio, à Floresta dos Mistérios. Leve com você Branca de Neve. Deixe-a perto do rio de águas turvas que sai de uma grota de uma das sete montanhas. Ao beber a água, a menina se transformará numa veadinha, porque as águas desse rio foram há pouco encantadas pelo Mágico-Mor.
A aia retirou-se em prantos, porque sabia que as ordens da rainha só podiam ser cumpridas, quaisquer que fossem. Levantou-se cedo e foi despertar Branca de Neve que dormia profundamente num leito macio de rendas e cambraia. Parou um pouco junto do leito a contempla-la, enquanto disfarçava as lágrimas.
Voltando-se para a imagem da Virgem Maria, que estava à cabeceira da mesinha, pediu-lhe com fervor que acompanhasse os passos da princesinha.
Branca de Neve, sem desconfiar de tão perversa intenção, vestiu-se alegremente e partiu para a floresta. A manhã estava bela. A floresta a encantava com as borboletas que voavam por toda a parte e os passarinhos que gorjeavam, fazendo um verdadeiro concerto de vozes. Mas os criados da rainha se distanciavam cada vez mais da água fatídica, desviando-a para a encosta da montanha, do lado oposto ao rio de águas turvas. Num certo momento, vendo a menina bem entretida, voltaram, deixando-a sozinha a brincar com um filhote de coelho.

II

Branca de Neve custou perceber que ficara abandonada no meio da pavorosa mata. Deitou-se a correr. Corria sem reparar onde pisava, apavorada com o menor ruído. Os animais ferozes passavam por ela e afastavam-se, sem lhe fazer mal. Ia nesta carreira, resolvida a não parar nunca, quando avistou, já ao escurecer, uma casinha pequenina, muito pequenina.
Branca de Neve estava cansada, tinha fome, sede e sono. Dirigiu-se para a casinha e espiou lá dentro, por uma das janelas.
Todos os trastes eram pequeninos. A mesinha estava posta, sete pratinhos, sete talherzinhos e sete copinhos, sobre uma toalha muito alva. Branca de Neve comeu um pouco de cada pratinho, bebeu um pouco de cada copinho e depois, foi deitar-se numa das caminhas que estavam noutro aposento.
Fez sua oração e adormeceu logo. Os donos da casinha eram os sete pequeninos mineiros, os anõezinhos da montanha. Chegaram àquela hora, cada um com sua lanternazinha acesa. Perceberam, ao entrar, que alguém havia estado ali. Começaram a correr a casa e deram com Branca de Neve deitada na caminha de um deles. Reuniram-se todos em torno do leito, onde Branca de Neve dormia, e, levantando as lanternazinhas contemplavam, com muda surpresa, a linda menina. Desconfiados dos motivos que a levaram ali, afastaram-se pé ante pé, sem fazer o menor ruído para não lhe perturbarem o sono.

III

No dia seguinte, Branca de Neve, ao despertar, viu os sete anõezinhos, que não conhecia. Teve medo. Disseram-lhe, porém, que nada receasse e que lhes contasse sua história.
Branca de Neve contou-lhes o que lhe havia acontecido, sem desconfiar do motivo por que a deixaram na floresta. Os anõezinhos, porém, adivinharam tudo, e disseram-lhe:
— Fique conosco, Branca de Neve.
— Sim, obrigada, anõezinhos. Fico, sim. Cuidarei da casinha de vocês, farei a comida, arranjarei a roupa, tecerei suas meias, e de tudo hei-de cuidar, muito direitinho.
Os anõezinhos despediram-se de Branca de Neve e saíram para a montanha.
O dia inteirinho Branca de Neve passou em arrumações. Preparou a comida, pôs a mesa e, à noite, quando os anõezinhos chegaram, estava tudo pronto, tudo arrumadinho, e a comida bem gostosa.
Assim, Branca de Neve vivia entre os anões.
Mas um dia, a rainha, lá no seu castelo, pondo-se diante do espelho, interrogou-o:
“Dizei-me espelhinho, com toda franqueza:
Quem é, neste mundo, que tem mais beleza?”
O espelho respondeu com sua voz alta e grossa:
“Aqui, sois vós a mais bela, com certeza!
Mas longe, nas montanhas entre os anões,
Branca de Neve está que tem mais beleza”.
A rainha assustou-se com essa resposta, e, num momento, planejou mil coisas, para se ver livre da menina. Desceu as escadarias, entrou em seu gabinete, fechou-se lá, horas e horas a fio. Quando saiu, levava uma caixa verde com um conteúdo misterioso.
Entrou nos seus aposentos, disfarçou-se rapidamente em velha mercadora e partiu a caminho da casa dos anões. Ao transpor as sete montanhas, avistou, numa encosta verde, a casinha que procurava, rodeada de árvores altas.
Apressou o passo e chegou. Bateu na porta, gritando:
— Querem comprar objetos bonitos?
Os anõezinhos haviam proibido a Branca de Neve de abrir a porta a quem quer que fosse pois tinham certeza de a rainha cruel vir persegui-la.
— Veja esta cadeia de ouro e esta pulseira! — disse a pérfida mercador, metendo a cabeça pela janela da sala, onde Branca de Neve tecia um pé de meia.
— Veja este formoso colar! Quer Experimenta-lo?
Sem esperar a resposta, a mercadora jogou sobre Branca de Neve o conteúdo da caixinha verde, um pó mágico, que tinha o poder de transformar a menina em um pássaro cantor.
Branca de Neve levantou-se bruscamente: ainda assim, foi atingida por um pouco de pó.
Estremeceu e caiu.
A rainha retirou-se na mata.
Um pássaro, batendo as asas, cantou triste e sonoramente.
Supondo que fosse o efeito de sua magia que transformara Branca de Neve naquele pássaro que cantava, enchendo a mata de sons maviosos, a rainha respirou aliviada.



IV

A tarde caía.
Os anõezinhos não tardaram a chegar. Encontraram a casa fechada, escura e silenciosa. Arrombaram a porta e deram com Branca de Neve caída debaixo da janela.
Como soubessem o segredo da bruxaria, e percebendo o pó amarelado espalhado no chão, desconfiaram do que podia ser e fizeram Branca de Neve engolir algumas gotas de licor. Lentamente, Branca de Neve foi retornando à vida, mas pouco se lembrou do acontecido, para contar aos anõezinhos.
— Fique certa de que esta mercadora não é outra pessoa, senão a sua inimiga, a pérfida rainha. Tome cuidado! Ela é terrível feiticeira!
Era noite profunda, quando a rainha chegou ao palácio.
Entrou nos seus aposentos e, antes mesmo de tirar os disfarces de mercadora, sentou-se em frente ao espelho e perguntou-lhe:
“Dizei-me espelhinho, com toda a franqueza:
Quem é, neste mundo, que tem mais beleza?”
O espelho respondeu-lhe com uma voz pausada e grossa:
“Aqui vós sois a mais bela, com certeza!
Mas longe, longe, na casa dos anões,
Branca de Neve está que tem mais beleza!”
A rainha estremeceu de raiva. Não! Não era possível!
— Ah! Sei muitas outras coisas de que ninguém sabe. Hão-de ver! disse ela. Desceu rapidamente as escadas, abriu seu gabinete e, remexendo nos seus guardados de bruxa e feiticeira, tirou de lá uma maçã de prodigioso poder. Por fim, disfarçou-se o mais que pôde, e, tomando uma cesta e um bastão, partiu a caminho da casinha dos anões, sem mesmo temer a noite com seus pavores.
A manhã surgia, quando a rainha transpôs as sete montanhas. Desceu a encosta e avistou os anõezinhos que se sumiam à distância, cantando alegres, no seu caminho para a mina.
A rainha-bruxa correu e bateu na porta da casinha dos anões, perguntando:
— Frutas! Quem compra frutas?
— Não! Não compramos frutas! Respondeu Branca de Neve, lá de dentro!
— Oh! Maçãs vermelhas como os lábios da menina! Compre uma! Uma só.
— Não! Não tenho dinheiro!
— Não é preciso, menina! Vejo que você não tem mesmo dinheiro para compra-las! Não faz mal! Deixo-lhe um a aqui na janela. De outra vez, ficará freguesa!
Com passos trôpegos, partiu a rainha-bruxa, deixando, na janela, a maçã.
Branca de Neve que gostava muito de maçãs, disse:
— Oh! Tão bonita! Há quanto tempo não vejo uma maçã como esta!
Dizendo isto, Branca de Neve deu uma dentada na maçã e, na mesma hora, caiu desmaiada.
Ao chegar a casa, a malvada rainha correu para o espelho, e perguntou-lhe aflita:
“Dizei-me, espelhinho, com toda a presteza:
Quem é, neste mundo, que tem mais beleza?”
O espelho, afinal, respondeu-lhe:
“Rainha, sois a mais bela, com certeza!”
A rainha deu uma gargalhada que ressoou pelos corredores do palácio.
Ah! Até que enfim!
Àquela hora os anõezinhos voltavam da mina.
Escurecia. De longe, perceberam a casinha escura. Apressaram os passos e chegaram logo. Bateram na porta e, não obtendo resposta, arrombaram-na. Branca de Neve estava estendida no chão, desmaiada.
Ficaram desconsolados. Trouxeram-lhe o licor mágico e outras drogas contra as piores feitiçarias. Tudo em vão. Branca de Neve continuava fria e inanimada.
Bem sabiam. Devia ser o efeito da maçã dos sete males. Tanto pior! Onde encontrar o Elixir Maravilhoso, que era o único recurso contra tal feitiçaria? Que fazer?
Branca de Neve, estendida na cama, parecia dormir. Choravam-na os anõezinhos, seus amigos, os passarinhos, os coelhinhos e veadinhos da floresta. Choraram-na dias e dias seus amigos. e a natureza chorava-a com lágrimas de neve, que cobriram as montanhas, as árvores e deixaram tudo branco como se estivesse estendendo um véu sobre todos os arredores da casinha.
Os anões, inconsoláveis, mandaram fazer um esquife de cristal, onde colocaram e no qual fizeram inscrever as seguintes palavras:
“Aqui dorme uma princesa real, que só será despertada pelo Elixir Maravilhoso contra os sete males.”
O esquife foi colocado na gruta das sete montanhas, e os anões o vigiavam, dia e noite, ora uns ora outros.

V

Passaram-se meses. Passaram-se anos. Branca de Neve permanecia linda, com as faces muito brancas e os lábios rubros. Os anõezinhos pediram a todos os anõezinhos da terra que descobrissem o Elixir Maravilhoso, contra os sete males, o único meio de fazer Branca de Neve retornar à vida.
Mas nada!
Um dia, porém, o filho de um rei rico e poderoso perdeu-se numa caçada. Andando aqui e ali, foi dar à gruta de uma das sete montanhas. Entrou. Deu com o esquife e ficou maravilhado com a beleza de Branca de Neve. Ficou sabendo, pelos anõezinhos, a história de sua vida. O príncipe disse aos anõezinhos:
— Tenho na corte um bruxo que de lá não sai, mas possui toda sorte de drogas mágicas. Levemos Branca de Neve até lá e experimentemos uma por uma daquelas drogas. Quem sabe se não encontraremos com ele o elixir contra os sete males?
Os anõezinhos, animados com esta idéia, resolveram levar o esquife de Branca de Neve ao palácio do rei, pai do jovem príncipe.
Fez-se o cortejo. Os anõezinhos puseram-se na frente com suas lanterninhas. No meio, ia o esquife, conduzido por guardas do príncipe e, atrás, seguia o príncipe, rodeado de sua matilha de cães de caça.
Caminharam, caminharam. Não havia ainda transposto as sete montanhas, quando um guarda tropeçou numa raiz. Com o choque, o esquife sacudiu-se, e o pedaço de maçã dos sete males, que ficara preso na garganta de Branca de Neve, saltou.
Imediatamente Branca de Neve abriu os olhos.
— Oh! Meu Deus! Onde estou eu?! — disse ela.
Todos se acercaram do esquife de Branca de Neve.
Vendo os anõezinhos sorrindo de satisfação, Branca de Neve tranqüilizou-se. O príncipe, encantado com a beleza e a doçura da princesa, disse-lhe:
— Estamos a caminho do palácio de meu pai! Agora, vai deixar a casinha dos anões, para ser a esposa do príncipe herdeiro do mais rico reino da terra.
Branca de Neve ficou sabendo, então, o que se passara. Voltaram à casa dos anõezinhos, enquanto esperavam a carruagem, para conduzi-los ao palácio.
O casamento foi marcado poucos dias depois, para que os anõezinhos a ele pudessem assistir.
Naquela hora, naquela mesmíssima hora, a rainha cruel, pondo-se em frente do espelho, perguntava-lhe:
“Dizei-me, espelhinho, quem tem mais beleza?”
E o espelho respondia-lhe:
“Aqui vós sois a mais bela, com certeza!
Mas a noiva do príncipe do reino vizinho possui mais beleza!”
A rainha não compreendera bem as palavras do seu espelho. Ainda preocupada com o que acabara de ouvir, recebeu uma mensagem do Rei Augusto, do reino vizinho, que a convidava para os festejos de casamento de seu filho, o Príncipe Rolando.
Afinal, ia conhecer aquela que era a mais linda da Terra.
A rainha vestiu-se maravilhosamente e partiu com sua comitiva.
Ao entrar no salão, preparado para as festas do casamento, reconheceu a noiva — Branca de Neve — riquissimamente vestida e ostentando na cabeça a coroa deslumbrante de rainha. Olhou-a: Branca de Neve estava bela, estava muito bela!
A rainha cruel quedou-se um momento a contempla-la. A fisionomia de Branca de Neve era serena e doce como a dos anjos.
Branca de Neve viu-a, reconheceu-a e sorriu-lhe. Já havia perdoado à rainha todos os males sofridos.
Entretanto, a rainha sentiu-se nesta hora tão mesquinha, tão má que, pela primeira vez em sua vida, sentiu lágrimas nos olhos e chorou.
Aproximou-se, depois, de Branca de Neve, com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar, e disse-lhe docemente:
— Perdoe-me, Branca de Neve, sim?
— Oh! Já lhe perdoei! — disse Branca de Neve.
E, tirando do seu pescoço um riquíssimo colar de pérolas, colocou-o no pescoço da rainha, sua madrasta. Esta, comovida, tirou sua pulseira de brilhantes e colocou-as em Branca de Neve, abraçando-a ternamente.
Desceu as escadas. Tomou sua carruagem e voltou sozinha para o seu palácio.
Dizem que nunca mais saiu e se tornou boa, boa, muito boa.
Por sua vez, Branca de Neve viveu muitos anos muito feliz. Nunca deixou de estimar os seus anõezinhos que a haviam aconselhado e protegido na hora da desgraça, e que continuavam a aconselha-la e a protege-la na hora da felicidade.




Nenhum comentário:

Postar um comentário