A PRINCESA SILENCIOSA
Era uma vez o filho de
um rei que passava os dias brincando com uma bola de ouro.
Aconteceu que uma
tarde, achando-se no jardim entregue ao seu brinquedo favorito, veio
uma anciã encher o cântaro na fonte que havia junto do palácio, e
o príncipe, casualmente, quebrou-lho com a sua bola.
Foi a velhinha comprar
novo cântaro, e o príncipe, já agora de propósito, arremessou-lhe
a bola e partiu-o.
Tristemente, sem se
queixar, a anciã, não tendo mais dinheiro algum, foi comprar fiado
um outro cântaro e tornou a aproximar-se da fonte. Mal o havia
enchido quando o príncipe lhe atirou com a sua bola de ouro e o fez
em pedaços.
Antes insolência
tamanha e tamanha falta de respeito à velhice, ela exclamou,
voltando-se para o moço filho do rei:
— Tudo esperava de
ti, pois há muito que te conheço. Permitam, porém, os Gênios, que
te inflames de amor pela Princesa Silenciosa.
E desapareceu.
Logo no dia seguinte o
príncipe começou a empalidecer e enfermar de tal modo, que dentro
em poucas semanas não pôde mais erguer-se do leito.
Desesperava-se o rei
sem atinar com a misteriosa doença do filho. Doutores de todo o
mundo desfilaram pelo palácio, e nenhum deles descobriu o mal que
atormentava o herdeiro do trono.
Varias vezes o rei o
interrogou a fim de ver se ele obtinha algum indicio que o levasse a
achar a causa de tão estranha doença. Em vão. O príncipe
negava-se a falar.
Mas o pai tanto fez,
tanto fez, que por fim ele narrou a aventura dos três cântaros
quebrados à velhinha, e a maldição que esta lhe lançara. Pediu em
seguida licença para partir e correr mundo até encontrar a Princesa
Silenciosa. O rei consentiu, ordenando, todavia, ao seu primeiro
ministro que seguisse o príncipe em tão venturosa e extraordinária
viagem.
Durante muito tempo
caminharam os dois sem trégua através de reinos e de impérios.
Pararam, finalmente, no sopé de um monte elevadíssimo, cujo píncaro
chegava até ao sol. Estavam-no contemplando, cheios de admiração,
quando lhes apareceu um simpático velhinho.
— Para onde ides
viajantes?
— Andamos à procura
da Princesa Silenciosa.
E contaram a história
dos três cântaros quebrados e a maldição lançada pela velha.
— Este monte que
vedes é justamente o Monte da Princesa Silenciosa, uma criatura
formosíssima. Touca-se com sete véus. Em volta dela há sempre uma
auréola de luz, que provem da irradiação da sua beleza.
Não lhe perguntaram os
viajantes o lugar em que ela morava.
Segundo o velhinho,
porém, necessitariam de certa de seis meses até poder chegar à sua
residência, onde segundo ouvira dizer, muitos homens tinham morrido
sem conseguir obter uma única palavra da sua boca.
Tão fatais noticias
não desanimaram, todavia, o príncipe; antes o fizeram continuar a
jornada, com maior brio e coragem mais destemida.
Depois de muito
caminhar chegaram ao cume de outro monte. Ali souberam que uma das
vertentes era rubra com sangue. Caminharam mais e entraram num
povoado.
Disse, então, o
príncipe ao ministro:
— Sinto-me
desfalecido de cansaço! Repousemos aqui! E inquiramos notícias da
Princesa Silenciosa.
Assim fizeram.
Dirigiram-se á loja de um mercador, o qual vendo que os visitantes
não eram do país, lhes ofereceu cordial hospitalidade.
O príncipe agradeceu,
e perguntou por que motivo uma das ladeiras do último monte que
tinham subido era vermelha como sangue.
— Este monte dista
cinquenta léguas do palácio da Princesa Silenciosa. A encosta de
que falais é toda de cristal branco, mas fica vermelha com o reflexo
dos lábios da princesa, tão rubros e brilhantes eles são. É uma
criatura formosíssima. Guarda-a, porém, uma aia terrível, cujos
pés repousam habitualmente sobre caveiras humanas. Em volta dela há
sempre uma auréola de luz, que provem da irradiação da sua beleza.
Muitos homens já perderam a vida por querer escutar uma palavra da
sua boca.
Ouvindo isto, o
príncipe continuou a jornada, com maior brio e coragem mais
destemida.
Após vários dias de
caminho chegaram, enfim, a outro monte, no cimo do que se erguia o
castelo da Princesa Silenciosa.
Acercando-se dele,
viram que era todo construído de crânios humanos.
Disse o príncipe ao
ministro:
— São, decerto, as
cabeças dos que morreram, esperando ouvir uma palavra da boca
vermelha da princesa.
Antes de entrar no
castelo acamparam uns dias nas imediações, e dormiram sobre as suas
capas. Durante a noite só escutaram choro convulso e lamentações
desgarradas, — vozes que gritavam de longe e de todos os lados:
— Ai! Meu filho! Meu
filho querido!
— Oh! Meu irmão!
Irmão de minha alma!
Intrigado, o príncipe
um dia perguntou o que era aquilo a um habitante do lugar.
— São as vozes das
mães e das irmãs dos que morreram por querer escutar uma palavra da
Princesa Silenciosa.
Ouvindo isto o príncipe
dirigiu-se para o castelo com maior brio e coragem mais destemida.
No caminho encontrou um
homem que trazia um canário numa gaiola. Cantava o pássaro tão
primorosamente que o jovem se resolve a comprá-lo e a leva-o
consigo.
Comprou-o e continuou a
andar, entristecido, pensando que talvez em breve teria de morre se
não conseguisse obter uma palavra da boca da Princesa Silenciosa.
— Por que estás
triste, mancebo? Que te preocupa? — indagou o pássaro.
O príncipe estremeceu,
não sabendo se tinha na mão um canário ou um gênio. Finalmente
acalmou-se e contou-lhe a sua aventura.
— Não te aflijas!
— Não te aflijas! É
muito fácil de conseguir o que desejas. A princesa falará.
Apresenta-te esta mesma noite no palácio e leva-me contigo. Ela
touca-se com sete véus, e em volta dela há sempre uma aureola de
luz que provém de sua beleza. Quando chegares, coloca-me, sem que
ela me veja, perto do lustre do seu quarto, e pergunta-lhe depois
como vai passando. Ela não te responderá. Dirás então: “Já que
não quereis falar comigo, falarei com o lustre de vosso quarto”.
Assim, tu falarás e eu responderei.
O príncipe seguiu este
conselho ao pé da letra. Tirou o canário da gaiola, meteu-o no
bolso e dirigiu-se imediatamente ao castelo.
Avisado o rei, — pai
da Princesa Silenciosa — que um mancebo pretendia ver sua filha,
mandou-o vir à sua presença, e comunicou a decisão em que estava
de a dar em casamento a quem fosse capaz de a fazer falar.
— Vai, tenta, —
ousado aventureiro!! Se, porém, não fores bem sucedido,
mandar-te-ei cortar a cabeça.
Encaminhou-se o
príncipe, ao anoitecer, para os aposentos da princesa, a qual o
esperava disposta a não dizer uma única palavra, fosse pelo que
fosse. Antes de entrar passou pela aia terrível, que estava sentada
numa cadeira, com uma rosa mágica na mão, e repousava os pés sobre
caveiras humanas.
Chegando ao quarto da
princesa soltou o canário, que voou, sem ela pressentir, e pousou em
cima do lustre. Em seguida, voltando-se para a bela Silenciosa,
perguntou, com uma grande vênia:
— Como ides, senhora?
Não obteve a mínima
resposta.
— Não quereis falar
comigo? Bem! Falarei com o lustre do vosso quarto.
Dizendo isto, voltou-se
para o lustre e pôs-se a conversar com ele.
— Como estás, ó
lustre?
— Muito bem, muito
obrigado! Há longos anos que ninguém me dirige a palavra.
Certamente alguma boa fada te envia para conversares comigo. Oh! Como
sou feliz! Queres entreter-me contando-me uma história?
— Quero. Vou-te
contar uma história de Sucna Murga.
— Não! Essa é uma
história muito bonita, mas eu já a sei. Além disso é muito
grande. Não sabes nenhuma história pequena?
— Pequena? Parece-me
que não...
— Nesse caso vou eu
contar-te uma. Era uma vez um rei que tinha uma filha de singular
formosura. Três príncipes desejavam casar-se com ela, e o pai não
sabendo como decidir, chamou-os a todos três e disse: “Darei a mão
de minha filha aquele dentre vós que, daqui a um ano e um dia, seja
capaz de praticar uma ação qualquer, mais extraordinária do que as
praticadas pelos outros dois”.
Os príncipes
concordaram e decidiram-se animosamente a correr mundo. Chegados daí
a três meses juntos a uma fonte de onde partiam três caminhos, cada
qual tomou o seu e combinaram regressar aquele mesmo sitio depois de
passado meio ano.
Seguiu cada uma para o
seu lado, e justamente depois de meio ano chegaram de volta todos
três.
Indagaram então uns
dos outros o que tinham conseguido de extraordinário durante todo
esse tempo.
Tinham conseguido pouca
coisa, como se verá...
Um declarou que era
capaz de ver qualquer objeto à distancia de mil léguas com um óculo
mágico que trazia.
Outro disse que era
capaz de se transportar num minuto a qualquer parte, por mais longe
que fosse, proferindo apenas uma palavra cabalística.
E outro informou ter
adquirido certo remédio maravilhoso que, dado a uma pessoa na hora
da morte, a fazia recuperar imediatamente a saúde.
— Vejamos como está
passando a nossa princesa, — disse o do óculo. E assentando-se em
direção ao palácio do rei, que ficava a duzentas léguas de
distância, empalideceu mortalmente.
— O que há? —
perguntaram, aflitos, os outros dois.
— A princesa está à
morte.
— Salvemo-la! Disse o
que se podia transportar num minuto a qualquer parte.
Pedindo o remédio
maravilhoso, voou num instante ao palácio, deu-o a beber à princesa
e ela ficou boa no mesmo momento.
Ao chegar a este ponto
o canário perguntou ao príncipe:
— Qual dos três
pretendentes mereceu a mão da princesa disputada?
— O do óculo,
respondeu o príncipe.
— Nunca! Nunca! O do
remédio maravilhoso, — esse sim que a mereceu!
E entraram a discutir
acaloradamente, cada qual pelo seu príncipe, sem jamais falar do
terceiro, o que voara proferindo uma palavra cabalística.
Não podendo mais
conter-se, a Princesa Silenciosa exclamou:
— Loucos que sois! O
mais indicado para esposo da princesa foi aquele dos três que pode
chegar a tempo de lhe dar o remédio justamente na hora da morte. A
duzentas léguas de distância como estavam, de que servia o óculo?
De que valia o remédio? Por mais que os seu possuidor corresse com
ele, chegaria meses depois de ela estar enterrada.
O rei foi informado de
que filha, a Princesa Silenciosa, tinha quebrado o silêncio. Ela,
porém, protestou declarando que fora vítima de uma astúcia e que
não consentiria em casar-se com o príncipe sem que ele a fizesse
falar três vezes.
Desesperançado, o
príncipe voltou para casa e consultou o canário.
— Ela gosta muito de
ti, mas finge que esta furiosa, — disse este — e mandou que lhe
tirassem o lustre do quarto. Quando voltares a sua presença põe-me
junto da parede, por detrás de um reposteiro.
O príncipe assim fez.
Conduzido novamente ante a princesa, saúdo-a respeitosamente:
— Não queres falar
comigo? bem! Falarei com a parede de vosso quarto.
— Ola parede! Queres
contar-me uma história?
— Com muito gosto, —
respondeu o canário, oculto por detrás do reposteiro. Era uma vez
uma donzela riquíssima que tinha três namorados “Alberto, João e
Antônio. Não sabendo com qual dos três devia casar-se por ignorar
qual dos três a amava mais, convidou-os a virem a sua casa a horas
diferentes e disse a cada um deles:
— Ai de mim! Meu pai
acaba de falecer deixando-me cheia de dívidas. Como andavam
enganados os que me supunham rica! Nada tenho. Estou até sem
dinheiro para fazer o enterro. Alguns criados vieram aqui agora mesmo
e disseram que me levariam todos os móveis de casa e me poriam na
rua se eu não lhes pagasse ainda hoje, o mais depressa possível.
Serás capaz de, com toda urgência, me conseguir dez moedas de ouro?
O pai não tinha
morrido. Tudo era plano dela para fortuna.
Alberto, um dos três,
logo ao sair à rua encontrou uma bolsa com cinqueta moedas de ouro e
veio imediatamente trazer-lha.
Antônio, filho de um
mercador muito rico, pediu dinheiro ao pai, que lho negou. Ele
entristeceu-se. Mas correu depressa a um ourives, vendeu o seu melhor
anel por cem moedas e levou-as à namorada.
João, coitado! Era
muito pobre. Procurou por todos os meios obter algum dinheiro. Nada
conseguido depois de tentar em vão todos os recurso, alugou-se como
escravo por dez moedas de ouro e mandou entregar à namorada essa
quantia.
— Qual dos três
manifestou maior dedicação?
— Alberto, que foi o
primeiro de todos a trazer o dinheiro, — respondeu o príncipe.
— Nada disso! —
replicou o canário — quem deu mais prova de amor foi Antônio, que
cem moedas de ouro obteve e cem moedas de ouro foi levar. No entanto,
ela pedira apenas dez!
E empenharam-se a
discutir sobre o caso, — o príncipe e o canário, — pondo grande
cuidado em não citar a propósito de coisa alguma o nome de João.
A princesa, que tudo
ouvira muito atentamente, estava desesperada porque não se referiam
a ele, como se porventura o seu ato não houvesse sido mais meritório
que os dos outros. Acabou, afinal, por protestar em favor de João!
O rei ficou admirado ao
saber que sua filha tinha falado pela segunda vez. Faltava só mais
uma. Encontrando-me nesse dia no palácio, ele bateu-me no ombro e
ponderou:
— Meu caro Gondim!
Acho que este príncipe é bem mais inteligente do que todos os
outros que tem vindo até agora ao meu reino com a esperança de
obter a mão de minha filha obrigando-a a falar.
— Assim me quer
parecer, Majestade! Penso que este acabará casando-se com ela.
— Talvez, quem sabe?
A Princesa Silenciosa
fingia estar louca de furor por ter falado pela segunda vez.
— Agora, — disse o
canário ao príncipe, — coloca-me atrás da porta do quarto dela
sem que ela dê por isso. Depois, trava conversa com a porta.
O príncipe seguiu de
bom grado esse conselho. Quando se tornou a avistar com a princesa,
curvou-se respeitosamente, saudando-a:
— Como ides, senhora?
Não obteve a mínima
resposta.
— Não quereis falar
comigo? Bem! Falarei com a porta do vosso quarto.
E voltando-se para a
porta, pediu amavelmente:
— Porta! Contar-me
uma história?
— De muito bom grado,
senhor! De muito bom grado!
E contou:
Viajavam juntos, certa
vez, um escultor, um alfaiate e um estudante de Direito. Chegando a
uma cidade, tomaram cômodo na mesma pousada, e cada qual se entregou
ao seu trabalho.
Uma noites, enquanto os
outros dois estavam dormindo, o escultor saiu bebeu uma xícara de
café, fumou no seu cachimbo e, para distrair, pegou numa porção de
barro e compôs lindíssima estatua de mulher, que colocou no lugar
mais visível da habitação.
E foi-se deitar.
Daí a pouco o alfaiate
despertou e, vendo tão linda estátua de mulher, fez-lhe
imediatamente um vestido formosíssimo e retirou-se para o seu
quarto.
Passada uma hora, o
estudante acordou e ficou maravilhado contemplando aquele prodígio
de estátua e aquele encanto de vestido. Invocou então um Gênio seu
amigo e pediu-lhe que infundisse, ao barro, vida e cor humanas. O
Gênio acedeu. Logo a estátua se transformou numa jovem de radiante
beleza, que cumprimentou o estudante e se foi reclinar num sofá.
Pela manhã, quando os
outros dois acordaram, formou-se grande contenda para saber qual dos
três era mais digno de merecer gratidão daquela moça, tão bem
vestida e tão linda.
E na realidade, —
interrogou o canário, — qual dos três era o mais digno? Eu sou
pelo escultor.
— E eu pelo alfaiate.
Começou a disputa
entre os dois, e cada qual apresentava as suas razões, — um pelo
alfaiate e outro pelo escultor, sem nomear para coisa alguma o
estudante de Direito.
A princesa não pôde
reprimir-se e exclamou:
— Sois uns loucos!
Sempre desvairais! Quem, senão o estudante, era mais digno da sua
gratidão? Sem vida ela não seria mulher: seria apenas uma estátua.
O rei foi avisado de
que sua filha falara pela terceira vez. Foi eu que lhe levei a
notícia.
O casamento realizou-se
com grande pompa. Duraram os festejos quarenta dias e quarenta
noites.
A anciã a quem o
príncipe quebrara os três cântaros e que era uma boa fada,
apareceu em palácio e trouxe um belo presente aos noivos. Ela era
madrinha do príncipe, e quisera somente corrigi-lo de sua má índole
fazendo-o passar por todos aqueles trabalhos. Fora ela ainda que se
transformara em canário e o salvara da morte certa que o esperava,
se ele não conseguisse fazer falar a Princesa Silenciosa. Mas (cá
entre nós... a princesa só falou porque gostava muito dele).
O príncipe voltou para
a corte de seu pai, onde ainda hoje vive com a esposa,
considerando-se a criatura mais feliz de todo o mundo.
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