terça-feira, 6 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO III -- A PRINCESA SILENCIOSA


A PRINCESA SILENCIOSA

Era uma vez o filho de um rei que passava os dias brincando com uma bola de ouro.
Aconteceu que uma tarde, achando-se no jardim entregue ao seu brinquedo favorito, veio uma anciã encher o cântaro na fonte que havia junto do palácio, e o príncipe, casualmente, quebrou-lho com a sua bola.
Foi a velhinha comprar novo cântaro, e o príncipe, já agora de propósito, arremessou-lhe a bola e partiu-o.
Tristemente, sem se queixar, a anciã, não tendo mais dinheiro algum, foi comprar fiado um outro cântaro e tornou a aproximar-se da fonte. Mal o havia enchido quando o príncipe lhe atirou com a sua bola de ouro e o fez em pedaços.
Antes insolência tamanha e tamanha falta de respeito à velhice, ela exclamou, voltando-se para o moço filho do rei:
— Tudo esperava de ti, pois há muito que te conheço. Permitam, porém, os Gênios, que te inflames de amor pela Princesa Silenciosa.
E desapareceu.
Logo no dia seguinte o príncipe começou a empalidecer e enfermar de tal modo, que dentro em poucas semanas não pôde mais erguer-se do leito.
Desesperava-se o rei sem atinar com a misteriosa doença do filho. Doutores de todo o mundo desfilaram pelo palácio, e nenhum deles descobriu o mal que atormentava o herdeiro do trono.
Varias vezes o rei o interrogou a fim de ver se ele obtinha algum indicio que o levasse a achar a causa de tão estranha doença. Em vão. O príncipe negava-se a falar.
Mas o pai tanto fez, tanto fez, que por fim ele narrou a aventura dos três cântaros quebrados à velhinha, e a maldição que esta lhe lançara. Pediu em seguida licença para partir e correr mundo até encontrar a Princesa Silenciosa. O rei consentiu, ordenando, todavia, ao seu primeiro ministro que seguisse o príncipe em tão venturosa e extraordinária viagem.
Durante muito tempo caminharam os dois sem trégua através de reinos e de impérios. Pararam, finalmente, no sopé de um monte elevadíssimo, cujo píncaro chegava até ao sol. Estavam-no contemplando, cheios de admiração, quando lhes apareceu um simpático velhinho.
— Para onde ides viajantes?
— Andamos à procura da Princesa Silenciosa.
E contaram a história dos três cântaros quebrados e a maldição lançada pela velha.
— Este monte que vedes é justamente o Monte da Princesa Silenciosa, uma criatura formosíssima. Touca-se com sete véus. Em volta dela há sempre uma auréola de luz, que provem da irradiação da sua beleza.
Não lhe perguntaram os viajantes o lugar em que ela morava.
Segundo o velhinho, porém, necessitariam de certa de seis meses até poder chegar à sua residência, onde segundo ouvira dizer, muitos homens tinham morrido sem conseguir obter uma única palavra da sua boca.
Tão fatais noticias não desanimaram, todavia, o príncipe; antes o fizeram continuar a jornada, com maior brio e coragem mais destemida.
Depois de muito caminhar chegaram ao cume de outro monte. Ali souberam que uma das vertentes era rubra com sangue. Caminharam mais e entraram num povoado.
Disse, então, o príncipe ao ministro:
— Sinto-me desfalecido de cansaço! Repousemos aqui! E inquiramos notícias da Princesa Silenciosa.
Assim fizeram. Dirigiram-se á loja de um mercador, o qual vendo que os visitantes não eram do país, lhes ofereceu cordial hospitalidade.
O príncipe agradeceu, e perguntou por que motivo uma das ladeiras do último monte que tinham subido era vermelha como sangue.
— Este monte dista cinquenta léguas do palácio da Princesa Silenciosa. A encosta de que falais é toda de cristal branco, mas fica vermelha com o reflexo dos lábios da princesa, tão rubros e brilhantes eles são. É uma criatura formosíssima. Guarda-a, porém, uma aia terrível, cujos pés repousam habitualmente sobre caveiras humanas. Em volta dela há sempre uma auréola de luz, que provem da irradiação da sua beleza. Muitos homens já perderam a vida por querer escutar uma palavra da sua boca.
Ouvindo isto, o príncipe continuou a jornada, com maior brio e coragem mais destemida.
Após vários dias de caminho chegaram, enfim, a outro monte, no cimo do que se erguia o castelo da Princesa Silenciosa.
Acercando-se dele, viram que era todo construído de crânios humanos.
Disse o príncipe ao ministro:
— São, decerto, as cabeças dos que morreram, esperando ouvir uma palavra da boca vermelha da princesa.
Antes de entrar no castelo acamparam uns dias nas imediações, e dormiram sobre as suas capas. Durante a noite só escutaram choro convulso e lamentações desgarradas, — vozes que gritavam de longe e de todos os lados:
— Ai! Meu filho! Meu filho querido!
— Oh! Meu irmão! Irmão de minha alma!
Intrigado, o príncipe um dia perguntou o que era aquilo a um habitante do lugar.
— São as vozes das mães e das irmãs dos que morreram por querer escutar uma palavra da Princesa Silenciosa.
Ouvindo isto o príncipe dirigiu-se para o castelo com maior brio e coragem mais destemida.
No caminho encontrou um homem que trazia um canário numa gaiola. Cantava o pássaro tão primorosamente que o jovem se resolve a comprá-lo e a leva-o consigo.
Comprou-o e continuou a andar, entristecido, pensando que talvez em breve teria de morre se não conseguisse obter uma palavra da boca da Princesa Silenciosa.
— Por que estás triste, mancebo? Que te preocupa? — indagou o pássaro.
O príncipe estremeceu, não sabendo se tinha na mão um canário ou um gênio. Finalmente acalmou-se e contou-lhe a sua aventura.
— Não te aflijas!
— Não te aflijas! É muito fácil de conseguir o que desejas. A princesa falará. Apresenta-te esta mesma noite no palácio e leva-me contigo. Ela touca-se com sete véus, e em volta dela há sempre uma aureola de luz que provém de sua beleza. Quando chegares, coloca-me, sem que ela me veja, perto do lustre do seu quarto, e pergunta-lhe depois como vai passando. Ela não te responderá. Dirás então: “Já que não quereis falar comigo, falarei com o lustre de vosso quarto”. Assim, tu falarás e eu responderei.
O príncipe seguiu este conselho ao pé da letra. Tirou o canário da gaiola, meteu-o no bolso e dirigiu-se imediatamente ao castelo.
Avisado o rei, — pai da Princesa Silenciosa — que um mancebo pretendia ver sua filha, mandou-o vir à sua presença, e comunicou a decisão em que estava de a dar em casamento a quem fosse capaz de a fazer falar.
— Vai, tenta, — ousado aventureiro!! Se, porém, não fores bem sucedido, mandar-te-ei cortar a cabeça.
Encaminhou-se o príncipe, ao anoitecer, para os aposentos da princesa, a qual o esperava disposta a não dizer uma única palavra, fosse pelo que fosse. Antes de entrar passou pela aia terrível, que estava sentada numa cadeira, com uma rosa mágica na mão, e repousava os pés sobre caveiras humanas.
Chegando ao quarto da princesa soltou o canário, que voou, sem ela pressentir, e pousou em cima do lustre. Em seguida, voltando-se para a bela Silenciosa, perguntou, com uma grande vênia:
— Como ides, senhora?
Não obteve a mínima resposta.
— Não quereis falar comigo? Bem! Falarei com o lustre do vosso quarto.
Dizendo isto, voltou-se para o lustre e pôs-se a conversar com ele.
— Como estás, ó lustre?
— Muito bem, muito obrigado! Há longos anos que ninguém me dirige a palavra. Certamente alguma boa fada te envia para conversares comigo. Oh! Como sou feliz! Queres entreter-me contando-me uma história?
— Quero. Vou-te contar uma história de Sucna Murga.
— Não! Essa é uma história muito bonita, mas eu já a sei. Além disso é muito grande. Não sabes nenhuma história pequena?
— Pequena? Parece-me que não...
— Nesse caso vou eu contar-te uma. Era uma vez um rei que tinha uma filha de singular formosura. Três príncipes desejavam casar-se com ela, e o pai não sabendo como decidir, chamou-os a todos três e disse: “Darei a mão de minha filha aquele dentre vós que, daqui a um ano e um dia, seja capaz de praticar uma ação qualquer, mais extraordinária do que as praticadas pelos outros dois”.
Os príncipes concordaram e decidiram-se animosamente a correr mundo. Chegados daí a três meses juntos a uma fonte de onde partiam três caminhos, cada qual tomou o seu e combinaram regressar aquele mesmo sitio depois de passado meio ano.
Seguiu cada uma para o seu lado, e justamente depois de meio ano chegaram de volta todos três.
Indagaram então uns dos outros o que tinham conseguido de extraordinário durante todo esse tempo.
Tinham conseguido pouca coisa, como se verá...
Um declarou que era capaz de ver qualquer objeto à distancia de mil léguas com um óculo mágico que trazia.
Outro disse que era capaz de se transportar num minuto a qualquer parte, por mais longe que fosse, proferindo apenas uma palavra cabalística.
E outro informou ter adquirido certo remédio maravilhoso que, dado a uma pessoa na hora da morte, a fazia recuperar imediatamente a saúde.
— Vejamos como está passando a nossa princesa, — disse o do óculo. E assentando-se em direção ao palácio do rei, que ficava a duzentas léguas de distância, empalideceu mortalmente.
— O que há? — perguntaram, aflitos, os outros dois.
— A princesa está à morte.
— Salvemo-la! Disse o que se podia transportar num minuto a qualquer parte.
Pedindo o remédio maravilhoso, voou num instante ao palácio, deu-o a beber à princesa e ela ficou boa no mesmo momento.
Ao chegar a este ponto o canário perguntou ao príncipe:
— Qual dos três pretendentes mereceu a mão da princesa disputada?
— O do óculo, respondeu o príncipe.
— Nunca! Nunca! O do remédio maravilhoso, — esse sim que a mereceu!
E entraram a discutir acaloradamente, cada qual pelo seu príncipe, sem jamais falar do terceiro, o que voara proferindo uma palavra cabalística.
Não podendo mais conter-se, a Princesa Silenciosa exclamou:
— Loucos que sois! O mais indicado para esposo da princesa foi aquele dos três que pode chegar a tempo de lhe dar o remédio justamente na hora da morte. A duzentas léguas de distância como estavam, de que servia o óculo? De que valia o remédio? Por mais que os seu possuidor corresse com ele, chegaria meses depois de ela estar enterrada.
O rei foi informado de que filha, a Princesa Silenciosa, tinha quebrado o silêncio. Ela, porém, protestou declarando que fora vítima de uma astúcia e que não consentiria em casar-se com o príncipe sem que ele a fizesse falar três vezes.
Desesperançado, o príncipe voltou para casa e consultou o canário.
— Ela gosta muito de ti, mas finge que esta furiosa, — disse este — e mandou que lhe tirassem o lustre do quarto. Quando voltares a sua presença põe-me junto da parede, por detrás de um reposteiro.
O príncipe assim fez. Conduzido novamente ante a princesa, saúdo-a respeitosamente:
— Não queres falar comigo? bem! Falarei com a parede de vosso quarto.
— Ola parede! Queres contar-me uma história?
— Com muito gosto, — respondeu o canário, oculto por detrás do reposteiro. Era uma vez uma donzela riquíssima que tinha três namorados “Alberto, João e Antônio. Não sabendo com qual dos três devia casar-se por ignorar qual dos três a amava mais, convidou-os a virem a sua casa a horas diferentes e disse a cada um deles:
— Ai de mim! Meu pai acaba de falecer deixando-me cheia de dívidas. Como andavam enganados os que me supunham rica! Nada tenho. Estou até sem dinheiro para fazer o enterro. Alguns criados vieram aqui agora mesmo e disseram que me levariam todos os móveis de casa e me poriam na rua se eu não lhes pagasse ainda hoje, o mais depressa possível. Serás capaz de, com toda urgência, me conseguir dez moedas de ouro?
O pai não tinha morrido. Tudo era plano dela para fortuna.
Alberto, um dos três, logo ao sair à rua encontrou uma bolsa com cinqueta moedas de ouro e veio imediatamente trazer-lha.
Antônio, filho de um mercador muito rico, pediu dinheiro ao pai, que lho negou. Ele entristeceu-se. Mas correu depressa a um ourives, vendeu o seu melhor anel por cem moedas e levou-as à namorada.
João, coitado! Era muito pobre. Procurou por todos os meios obter algum dinheiro. Nada conseguido depois de tentar em vão todos os recurso, alugou-se como escravo por dez moedas de ouro e mandou entregar à namorada essa quantia.
— Qual dos três manifestou maior dedicação?
— Alberto, que foi o primeiro de todos a trazer o dinheiro, — respondeu o príncipe.
— Nada disso! — replicou o canário — quem deu mais prova de amor foi Antônio, que cem moedas de ouro obteve e cem moedas de ouro foi levar. No entanto, ela pedira apenas dez!
E empenharam-se a discutir sobre o caso, — o príncipe e o canário, — pondo grande cuidado em não citar a propósito de coisa alguma o nome de João.
A princesa, que tudo ouvira muito atentamente, estava desesperada porque não se referiam a ele, como se porventura o seu ato não houvesse sido mais meritório que os dos outros. Acabou, afinal, por protestar em favor de João!
O rei ficou admirado ao saber que sua filha tinha falado pela segunda vez. Faltava só mais uma. Encontrando-me nesse dia no palácio, ele bateu-me no ombro e ponderou:
— Meu caro Gondim! Acho que este príncipe é bem mais inteligente do que todos os outros que tem vindo até agora ao meu reino com a esperança de obter a mão de minha filha obrigando-a a falar.
— Assim me quer parecer, Majestade! Penso que este acabará casando-se com ela.
— Talvez, quem sabe?
A Princesa Silenciosa fingia estar louca de furor por ter falado pela segunda vez.
— Agora, — disse o canário ao príncipe, — coloca-me atrás da porta do quarto dela sem que ela dê por isso. Depois, trava conversa com a porta.
O príncipe seguiu de bom grado esse conselho. Quando se tornou a avistar com a princesa, curvou-se respeitosamente, saudando-a:
— Como ides, senhora?
Não obteve a mínima resposta.
— Não quereis falar comigo? Bem! Falarei com a porta do vosso quarto.
E voltando-se para a porta, pediu amavelmente:
— Porta! Contar-me uma história?
— De muito bom grado, senhor! De muito bom grado!
E contou:
Viajavam juntos, certa vez, um escultor, um alfaiate e um estudante de Direito. Chegando a uma cidade, tomaram cômodo na mesma pousada, e cada qual se entregou ao seu trabalho.
Uma noites, enquanto os outros dois estavam dormindo, o escultor saiu bebeu uma xícara de café, fumou no seu cachimbo e, para distrair, pegou numa porção de barro e compôs lindíssima estatua de mulher, que colocou no lugar mais visível da habitação.
E foi-se deitar.
Daí a pouco o alfaiate despertou e, vendo tão linda estátua de mulher, fez-lhe imediatamente um vestido formosíssimo e retirou-se para o seu quarto.
Passada uma hora, o estudante acordou e ficou maravilhado contemplando aquele prodígio de estátua e aquele encanto de vestido. Invocou então um Gênio seu amigo e pediu-lhe que infundisse, ao barro, vida e cor humanas. O Gênio acedeu. Logo a estátua se transformou numa jovem de radiante beleza, que cumprimentou o estudante e se foi reclinar num sofá.
Pela manhã, quando os outros dois acordaram, formou-se grande contenda para saber qual dos três era mais digno de merecer gratidão daquela moça, tão bem vestida e tão linda.
E na realidade, — interrogou o canário, — qual dos três era o mais digno? Eu sou pelo escultor.
— E eu pelo alfaiate.
Começou a disputa entre os dois, e cada qual apresentava as suas razões, — um pelo alfaiate e outro pelo escultor, sem nomear para coisa alguma o estudante de Direito.
A princesa não pôde reprimir-se e exclamou:
— Sois uns loucos! Sempre desvairais! Quem, senão o estudante, era mais digno da sua gratidão? Sem vida ela não seria mulher: seria apenas uma estátua.
O rei foi avisado de que sua filha falara pela terceira vez. Foi eu que lhe levei a notícia.
O casamento realizou-se com grande pompa. Duraram os festejos quarenta dias e quarenta noites.
A anciã a quem o príncipe quebrara os três cântaros e que era uma boa fada, apareceu em palácio e trouxe um belo presente aos noivos. Ela era madrinha do príncipe, e quisera somente corrigi-lo de sua má índole fazendo-o passar por todos aqueles trabalhos. Fora ela ainda que se transformara em canário e o salvara da morte certa que o esperava, se ele não conseguisse fazer falar a Princesa Silenciosa. Mas (cá entre nós... a princesa só falou porque gostava muito dele).
O príncipe voltou para a corte de seu pai, onde ainda hoje vive com a esposa, considerando-se a criatura mais feliz de todo o mundo.






Nenhum comentário:

Postar um comentário