ARAPUSCA, A RAINHA
NEGRA
Deu-se outrora um
acontecimento maravilhoso, — coisa jamais vista nem sabida! Se
vocês querem saber que coisa foi, escutem a história que vou
principiar a contar.
Era uma vez um rei,
poderosíssimo e aguerrido nos combates. Tinha passado a vida em
lutas incessantes e conquistado todos os reinos vizinhos. Dos seus
três filhos, um (o mais novo), era mais belo e mais forte do que os
outros, embora todos fossem robustos e audazes.
Um dia, sentindo-se
morrer, chamou-os o rei a todos três e disse-lhes:
— Eis chegado o meu
último instante. Continuai combatendo contra os monarcas vizinhos e
alargando os limites do reino, mas acautelai-vos da rainha Arapusca,
pois os que intentam penetrar nos seus domínios onde o sol claro se
põe, numa mais podem voltar. Por lá ficam, por lá deixam os ossos!
E morreu.
Os três irmãos
decidiram reinar juntos, pois amavam-se cordialmente e não se
queriam separar. Deliberaram, porém, atacar o reino de Arapusca, a
Rainha Negra, na persuasão de que seu pai os quisera apenas
intimidar com o que disse à hora da morte. Bem sabiam eles que para
os lados desse triste país onde o sol se punha, existiam somente
campos talados e cidades desertas.
Assim, ficou resolvido
que iria primeiro o príncipe mais velho, com uma poderosa hoste de
soldados, invadir as terras de Arapusca. Se alguma coisa de mau lhe
acontecesse e ele não pudesse regressar passado um ano e um dia, o
príncipe do meio partiria então. E se o príncipe do meio não
voltasse, o mais novo dos três, passado um ano e um dia, marcharia
com o seu terço de guerra.
Juntaram imediatamente
um numeroso exército, em que os soldados eram tantos como as areias
do mar. o príncipe mais velho assumiu o comando e, depois de dizer
adeus aos irmãos, avançou em direção ao país da Rainha Negra,
afastando-se longamente das fronteiras, um bocadinho hoje, um
bocadinho amanhã, até que chegou a muitas léguas de distância.
Quanto mais andavam,
com a esperança de encontrar o exército de Arapusca, tanto mais iam
ficando desolados, pois só viam campos desertos, sem uma gota d’água
e sem um folha verde nas árvores despidas. Os pobres soldados
morriam de sede! Pereciam às centenas, à medida que os dias
passavam.
Subitamente, avistaram
ao longe um palácio rutilante como o sol, que iluminava com o seu
fulgor mais de vinte léguas ao redor.
O príncipe organizou
sem perda de tempo as forças para o ataque, mas em vão. O belo
palácio estava completamente vazio, nem sombras de gente nele havia!
Mas que suntuoso edifício! As paredes de todos os quartos cintilavam
como a luz do dia! Os umbrais das portas e os peitoris das janelas,
cravados de pérolas e diamantes formosíssimos encantavam quem quer
que os contemplasse. E que dizer de grandes mesas que se alongavam na
sala de jantar, repletas de belas iguarias e de vinhos generosos?
Não vale a pena que me
detenha na descrição da adega. Bastará dizer-lhes que era tão
grande, tão grande, que nela se poderia passear à vontade durante
três dias ou mais, embora estivesse cheia de pipas de vinho como a
arca do pai Noé. Os soldados beberam de tal maneira que por fim
ficaram tontos e não sabiam mais o que falavam. Caíram depois num
sono grande, e o príncipe também.
Lá pelo meio da noite
apareceu uma bela mulher voando com uma espada na mão direita. Era
tão bonita, que as pessoas que a olhavam como que perdiam a fala,
maravilhadas de tanta formosura. E fez tamanho barulho ao chegar ao
palácio, que todos os que estavam dormindo imediatamente acordaram,
e ficaram imóveis no chão se poderem mexer. Então, brandindo a
espada que trazia na mão direita, ela atravessou o coração de uns,
a outros cortou a cabeça, e em seguida empilhou os cadáveres atrás
do palácio. Depois lavou o sangue que escorrera no pavimento de
mármore, e foi à adega fechar as torneiras das pipas que os
soldados haviam deixado abertas.
Sentindo-se fatigada,
sentou-se durante uma hora e ceou. Ao apontar do dia deu uma volta
pelo palácio e, depois de ver que não ficava ninguém com vida,
pegou na espada e retirou-se voando.
Os dois irmãos do
príncipe mais velho esperaram por ele em vão um ano e um dia.
Findo esse tempo, o
príncipe do meio reuniu uma hoste formidável, caminhou em direção
ao reino de Arapusca e deu com o mesmo palácio, onde tudo se passou
da mesma forma como se havia passado com o seu primeiro irmão.
Após um ano e um dia o
príncipe mais novo marchou à frente de um exército de cem mil
homens e seguiu para o reino de Arapusca. Chegado ao tal palácio, os
seu soldados entraram e começaram a embriagar-se, exatamente como os
outros que tinham vindo antes. Ele, porém, em vez de fazer como os
seus irmãos, matou a sede bebendo água. E quando viu os soldados
caírem cambaleando no chão, subiu ao topo de uma árvore alta que
dominava todo o espaço a uma distância de dez léguas e escondeu-se
entre a folhagem densa. De forma que tudo podia ver sem ser visto por
ninguém.
Assim fiou o dia
inteiro. Ao descer da noite, ouviu um ruído longo no ar e avistou a
Rainha Negra voando. Viu-a depois aproximar-se, matar os soldados e
arremessar-lhes os corpos para detrás do palácio.
O príncipe sentia-se
abrasar de cólera ao assistir, impotente, à morte dos seus pobres
soldados. Que fazer, porém?
Daí a uma hora a
rainha desapareceu no ar. Chamavam-lhe Rainha Negra, não porque
fosse preta na cor, — pois ela era branca e de cabelos louros, —
mas devido unicamente à sua enorme crueldade.
Quando o príncipe a
contemplou bem de frente e a viu tão linda segurando a espada tinta
de sangue, — esqueceu tudo o que tinha acontecido e ficou
apaixonado por ela. Abandonou-o, imediatamente, todo o receio de que
se achava possuído. Descendo da árvore, montou num cavalo que fora
de um dos seus soldados, e seguiu-a na direção em que ela tinha
voado. (A sua sorte foi que a Rainha não olhou para trás; se
tivesse olhado matá-lo-ia, e se assim fosse, eu teria de acabar aqui
a minha história).
Cavalgou através de
montes e vales, de florestas e de campos, até que chegou ao cimo de
uma alta montanha onde o cavalo tombou exausto de fadiga. Perdeu,
então, de vista a Rainha Negra.
Caminhando sem cessar,
chegou depois de três dias e três noites ao Reino das Cegonhas. Aí
perguntou a uma cegonha se conhecia o lugar onde morava Arapusca.
— Não! Não sei, —
respondeu ela.
E todas as cegonhas em
volta disseram:
— Ninguém sabe. O
que podemos é conduzir-te ao fim do nosso país, seguindo o rumo que
ela toma ao vôo, pois Arapusca passa bem alto sobre as nossas terras
e jamais pousa no chão para descansar entre nós.
O príncipe aceitou o
oferecimento, e as cegonhas o levaram até o fim do seu reino, onde o
deixaram sozinho.
Aí ele seguiu pela
estrada afora, e após um dia e uma noite de caminho foi ter ao Reino
dos Papagaios. Em seguida, chegou ao Reino das Águas. Depois ao
Reino das Arapongas. Mas nenhuma ave lhe soube dizer onde morava a
Rainha Negra.
— Sabemos que mora
muito além. Passa sempre por aqui voando alto, sem nunca pousar em
terra.
Deixando o reino das
Arapongas, atravessou o reino dos Pavões, e o das Andorinhas, e o
dos Gaturamos...
Os reis dessas aves
mandaram emissários colher entre os seus súditos notícias acerca
da morada de Arapusca, mas ninguém, nenhum deles sabia coisa alguma
a esse respeito. Afinal um gaturamo coxo da perna esquerda
aproximou-se do rei do seu país, e disse:
— Majestade! Eu sei
onde fica o palácio de residência de Arapusca, a Rainha Negra.
— Verdade, gaturamo?
— Verdade. Foi lá
justamente que, por mal dos meus pecados, eu fiquei assim coxo da
perna esquerda, numa sexta-feira, dia treze.
— Que espécie de
mulher é essa tal Arapusca?
— É uma mulher como
as outras, Majestade! O seu poder está que traz sempre consigo: com
ela na mão, destruirá todo o mundo; sem ela, será uma criatura boa
e carinhosa.
Perguntou-lhe então o
príncipe se ele sabia a maneira de se poder chegar ao seu reino.
— Sei, mas é muito
difícil.
— Diz-se sempre... Eu
espero vencer todas dificuldades.
— Nesse caso, —
replicou o gaturamo, — se tens coragem, serás bem sucedido.
E batendo-lhe três
vezes no rosto com a asa direita, mandou-o dar três saltos no ar. O
príncipe deu os três saltos e virou mosca, ficando tal qual como as
outras moscas, porém com a faculdade de poder falar e entender a
linguagem de todos os homens e de todos os bichos.
— Agora, — disse o
gaturamo, — pula para cima das minhas costas.
O príncipe pulou, e o
gaturamo, depois de se despedir do seu pai, alçou vôo rapidamente e
subiu, subiu, subiu, até chegar ao Reino dos Trovões. Depois
começou a descer, mas tão rapidamente que o príncipe mal se lhe
podia suster nas costas.
— Bem, — disse a
ave quando pousou em terra. eis-nos enfim, no Reino de Arapusca, a
Rainha Negra. Se eu não te tivesse transformado em mosca e voado
contigo, levarias três anos a caminhar de dia e de noite até chegar
aqui. Dá três saltos no ar!
O príncipe obedeceu e
voltou à forma humana.
— Se queres ser bem
sucedido, — disse-lhe o gaturamo, — segue por este caminho até
chegares à Colina das Esmeraldas. No ponto mais alto fica o palácio
de Arapusca. Logo o verás. Entra pela porta dos fundos, toda feita
de ouro maciço. Entra, porém, devagar, devagarinho, pois é lá o
quarto onde ela dorme quando vem de qualquer aventura. Depois, espera
quietamente por detrás de um reposteiro, até que ela esteja bem
ferrada no sono, e tira-lhe então a espada. Tira-lhe a espada com
muito jeito, de forma que ela não sinta, e esconde-a numa cova
profunda, ou mesmo na Caverna das Serpentes, para que não possa a
Rainha encontra-la, quando acordar e procurar.
Se conseguires isso,
conseguiste tudo. Desaparece-lhe o encanto, e Arapusca fica sendo uma
jovem princesa caridosa e amável.
Não sabia o príncipe
como agradecer ao gaturamo tanta bondade. O gaturamo, porém, não
quis saber de agradecimento. Desejou-lhe felicidades e foi-se embora
voando.
Ele fez tudo o que a
boa avezinha lhe disse. Introduziu-se sorrateiramente pela porta dos
fundos do palácio e entrou no quarto de Arapusca, mas com tanta
felicidade que ela estava profundamente adormecida. Tirou-lhe a
espada muito de manso e depois, correndo com toda força, foi
esconde-la na Caverna das Serpentes, onde jamais ela a poderia ir
buscar.
Voltou, em seguida,
sentou-se ao lado dela, que dormia tranquilamente. Era formosíssima!
O príncipe baixou a cabeça para lhe beijar a testa, e então ela
acordou cheia de susto, estremunhada, surpresa de se ver ao lado de
um homem. correu em busca da espada, mas, não a encontrando, viu que
estava desencantada e caiu desfalecida nos braços do seu salvador.
Cessaram-se. Foi um
banquete como eu nunca vi igual. Posso falar de cadeira, pois estive
lá como hospede do noivo, meu amigo muito particular.
Seguimos todos para os
estados do príncipe, três dias depois do banquete.
Que maravilhoso
espetáculo! Por toda parte onde outrora só havia campos áridos,
cidades floresciam agora, cheias de gente e de casas magníficas! A
Rainha Negra tinha odiado os homens e tinha-os matado pelo poder da
sua espada. Mas, desaparecido esse poder, tudo retornara à vida como
dantes.
Minha história preferida, encontrei agora, 63 anos depois. Parabéns pela iniciativa. Obrigado! Deus o iluminou!!
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