terça-feira, 6 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO III -- ARAPUSCA, A RAINHA NEGRA


ARAPUSCA, A RAINHA NEGRA




Deu-se outrora um acontecimento maravilhoso, — coisa jamais vista nem sabida! Se vocês querem saber que coisa foi, escutem a história que vou principiar a contar.
Era uma vez um rei, poderosíssimo e aguerrido nos combates. Tinha passado a vida em lutas incessantes e conquistado todos os reinos vizinhos. Dos seus três filhos, um (o mais novo), era mais belo e mais forte do que os outros, embora todos fossem robustos e audazes.
Um dia, sentindo-se morrer, chamou-os o rei a todos três e disse-lhes:
— Eis chegado o meu último instante. Continuai combatendo contra os monarcas vizinhos e alargando os limites do reino, mas acautelai-vos da rainha Arapusca, pois os que intentam penetrar nos seus domínios onde o sol claro se põe, numa mais podem voltar. Por lá ficam, por lá deixam os ossos!
E morreu.
Os três irmãos decidiram reinar juntos, pois amavam-se cordialmente e não se queriam separar. Deliberaram, porém, atacar o reino de Arapusca, a Rainha Negra, na persuasão de que seu pai os quisera apenas intimidar com o que disse à hora da morte. Bem sabiam eles que para os lados desse triste país onde o sol se punha, existiam somente campos talados e cidades desertas.
Assim, ficou resolvido que iria primeiro o príncipe mais velho, com uma poderosa hoste de soldados, invadir as terras de Arapusca. Se alguma coisa de mau lhe acontecesse e ele não pudesse regressar passado um ano e um dia, o príncipe do meio partiria então. E se o príncipe do meio não voltasse, o mais novo dos três, passado um ano e um dia, marcharia com o seu terço de guerra.
Juntaram imediatamente um numeroso exército, em que os soldados eram tantos como as areias do mar. o príncipe mais velho assumiu o comando e, depois de dizer adeus aos irmãos, avançou em direção ao país da Rainha Negra, afastando-se longamente das fronteiras, um bocadinho hoje, um bocadinho amanhã, até que chegou a muitas léguas de distância.
Quanto mais andavam, com a esperança de encontrar o exército de Arapusca, tanto mais iam ficando desolados, pois só viam campos desertos, sem uma gota d’água e sem um folha verde nas árvores despidas. Os pobres soldados morriam de sede! Pereciam às centenas, à medida que os dias passavam.
Subitamente, avistaram ao longe um palácio rutilante como o sol, que iluminava com o seu fulgor mais de vinte léguas ao redor.
O príncipe organizou sem perda de tempo as forças para o ataque, mas em vão. O belo palácio estava completamente vazio, nem sombras de gente nele havia! Mas que suntuoso edifício! As paredes de todos os quartos cintilavam como a luz do dia! Os umbrais das portas e os peitoris das janelas, cravados de pérolas e diamantes formosíssimos encantavam quem quer que os contemplasse. E que dizer de grandes mesas que se alongavam na sala de jantar, repletas de belas iguarias e de vinhos generosos?
Não vale a pena que me detenha na descrição da adega. Bastará dizer-lhes que era tão grande, tão grande, que nela se poderia passear à vontade durante três dias ou mais, embora estivesse cheia de pipas de vinho como a arca do pai Noé. Os soldados beberam de tal maneira que por fim ficaram tontos e não sabiam mais o que falavam. Caíram depois num sono grande, e o príncipe também.
Lá pelo meio da noite apareceu uma bela mulher voando com uma espada na mão direita. Era tão bonita, que as pessoas que a olhavam como que perdiam a fala, maravilhadas de tanta formosura. E fez tamanho barulho ao chegar ao palácio, que todos os que estavam dormindo imediatamente acordaram, e ficaram imóveis no chão se poderem mexer. Então, brandindo a espada que trazia na mão direita, ela atravessou o coração de uns, a outros cortou a cabeça, e em seguida empilhou os cadáveres atrás do palácio. Depois lavou o sangue que escorrera no pavimento de mármore, e foi à adega fechar as torneiras das pipas que os soldados haviam deixado abertas.
Sentindo-se fatigada, sentou-se durante uma hora e ceou. Ao apontar do dia deu uma volta pelo palácio e, depois de ver que não ficava ninguém com vida, pegou na espada e retirou-se voando.
Os dois irmãos do príncipe mais velho esperaram por ele em vão um ano e um dia.
Findo esse tempo, o príncipe do meio reuniu uma hoste formidável, caminhou em direção ao reino de Arapusca e deu com o mesmo palácio, onde tudo se passou da mesma forma como se havia passado com o seu primeiro irmão.
Após um ano e um dia o príncipe mais novo marchou à frente de um exército de cem mil homens e seguiu para o reino de Arapusca. Chegado ao tal palácio, os seu soldados entraram e começaram a embriagar-se, exatamente como os outros que tinham vindo antes. Ele, porém, em vez de fazer como os seus irmãos, matou a sede bebendo água. E quando viu os soldados caírem cambaleando no chão, subiu ao topo de uma árvore alta que dominava todo o espaço a uma distância de dez léguas e escondeu-se entre a folhagem densa. De forma que tudo podia ver sem ser visto por ninguém.
Assim fiou o dia inteiro. Ao descer da noite, ouviu um ruído longo no ar e avistou a Rainha Negra voando. Viu-a depois aproximar-se, matar os soldados e arremessar-lhes os corpos para detrás do palácio.
O príncipe sentia-se abrasar de cólera ao assistir, impotente, à morte dos seus pobres soldados. Que fazer, porém?
Daí a uma hora a rainha desapareceu no ar. Chamavam-lhe Rainha Negra, não porque fosse preta na cor, — pois ela era branca e de cabelos louros, — mas devido unicamente à sua enorme crueldade.
Quando o príncipe a contemplou bem de frente e a viu tão linda segurando a espada tinta de sangue, — esqueceu tudo o que tinha acontecido e ficou apaixonado por ela. Abandonou-o, imediatamente, todo o receio de que se achava possuído. Descendo da árvore, montou num cavalo que fora de um dos seus soldados, e seguiu-a na direção em que ela tinha voado. (A sua sorte foi que a Rainha não olhou para trás; se tivesse olhado matá-lo-ia, e se assim fosse, eu teria de acabar aqui a minha história).
Cavalgou através de montes e vales, de florestas e de campos, até que chegou ao cimo de uma alta montanha onde o cavalo tombou exausto de fadiga. Perdeu, então, de vista a Rainha Negra.
Caminhando sem cessar, chegou depois de três dias e três noites ao Reino das Cegonhas. Aí perguntou a uma cegonha se conhecia o lugar onde morava Arapusca.
— Não! Não sei, — respondeu ela.
E todas as cegonhas em volta disseram:
— Ninguém sabe. O que podemos é conduzir-te ao fim do nosso país, seguindo o rumo que ela toma ao vôo, pois Arapusca passa bem alto sobre as nossas terras e jamais pousa no chão para descansar entre nós.
O príncipe aceitou o oferecimento, e as cegonhas o levaram até o fim do seu reino, onde o deixaram sozinho.
Aí ele seguiu pela estrada afora, e após um dia e uma noite de caminho foi ter ao Reino dos Papagaios. Em seguida, chegou ao Reino das Águas. Depois ao Reino das Arapongas. Mas nenhuma ave lhe soube dizer onde morava a Rainha Negra.
— Sabemos que mora muito além. Passa sempre por aqui voando alto, sem nunca pousar em terra.
Deixando o reino das Arapongas, atravessou o reino dos Pavões, e o das Andorinhas, e o dos Gaturamos...
Os reis dessas aves mandaram emissários colher entre os seus súditos notícias acerca da morada de Arapusca, mas ninguém, nenhum deles sabia coisa alguma a esse respeito. Afinal um gaturamo coxo da perna esquerda aproximou-se do rei do seu país, e disse:
— Majestade! Eu sei onde fica o palácio de residência de Arapusca, a Rainha Negra.
— Verdade, gaturamo?
— Verdade. Foi lá justamente que, por mal dos meus pecados, eu fiquei assim coxo da perna esquerda, numa sexta-feira, dia treze.
— Que espécie de mulher é essa tal Arapusca?
— É uma mulher como as outras, Majestade! O seu poder está que traz sempre consigo: com ela na mão, destruirá todo o mundo; sem ela, será uma criatura boa e carinhosa.
Perguntou-lhe então o príncipe se ele sabia a maneira de se poder chegar ao seu reino.
— Sei, mas é muito difícil.
— Diz-se sempre... Eu espero vencer todas dificuldades.
— Nesse caso, — replicou o gaturamo, — se tens coragem, serás bem sucedido.
E batendo-lhe três vezes no rosto com a asa direita, mandou-o dar três saltos no ar. O príncipe deu os três saltos e virou mosca, ficando tal qual como as outras moscas, porém com a faculdade de poder falar e entender a linguagem de todos os homens e de todos os bichos.
— Agora, — disse o gaturamo, — pula para cima das minhas costas.
O príncipe pulou, e o gaturamo, depois de se despedir do seu pai, alçou vôo rapidamente e subiu, subiu, subiu, até chegar ao Reino dos Trovões. Depois começou a descer, mas tão rapidamente que o príncipe mal se lhe podia suster nas costas.
— Bem, — disse a ave quando pousou em terra. eis-nos enfim, no Reino de Arapusca, a Rainha Negra. Se eu não te tivesse transformado em mosca e voado contigo, levarias três anos a caminhar de dia e de noite até chegar aqui. Dá três saltos no ar!
O príncipe obedeceu e voltou à forma humana.
— Se queres ser bem sucedido, — disse-lhe o gaturamo, — segue por este caminho até chegares à Colina das Esmeraldas. No ponto mais alto fica o palácio de Arapusca. Logo o verás. Entra pela porta dos fundos, toda feita de ouro maciço. Entra, porém, devagar, devagarinho, pois é lá o quarto onde ela dorme quando vem de qualquer aventura. Depois, espera quietamente por detrás de um reposteiro, até que ela esteja bem ferrada no sono, e tira-lhe então a espada. Tira-lhe a espada com muito jeito, de forma que ela não sinta, e esconde-a numa cova profunda, ou mesmo na Caverna das Serpentes, para que não possa a Rainha encontra-la, quando acordar e procurar.
Se conseguires isso, conseguiste tudo. Desaparece-lhe o encanto, e Arapusca fica sendo uma jovem princesa caridosa e amável.
Não sabia o príncipe como agradecer ao gaturamo tanta bondade. O gaturamo, porém, não quis saber de agradecimento. Desejou-lhe felicidades e foi-se embora voando.
Ele fez tudo o que a boa avezinha lhe disse. Introduziu-se sorrateiramente pela porta dos fundos do palácio e entrou no quarto de Arapusca, mas com tanta felicidade que ela estava profundamente adormecida. Tirou-lhe a espada muito de manso e depois, correndo com toda força, foi esconde-la na Caverna das Serpentes, onde jamais ela a poderia ir buscar.
Voltou, em seguida, sentou-se ao lado dela, que dormia tranquilamente. Era formosíssima! O príncipe baixou a cabeça para lhe beijar a testa, e então ela acordou cheia de susto, estremunhada, surpresa de se ver ao lado de um homem. correu em busca da espada, mas, não a encontrando, viu que estava desencantada e caiu desfalecida nos braços do seu salvador.
Cessaram-se. Foi um banquete como eu nunca vi igual. Posso falar de cadeira, pois estive lá como hospede do noivo, meu amigo muito particular.
Seguimos todos para os estados do príncipe, três dias depois do banquete.
Que maravilhoso espetáculo! Por toda parte onde outrora só havia campos áridos, cidades floresciam agora, cheias de gente e de casas magníficas! A Rainha Negra tinha odiado os homens e tinha-os matado pelo poder da sua espada. Mas, desaparecido esse poder, tudo retornara à vida como dantes.





Um comentário:

  1. Minha história preferida, encontrei agora, 63 anos depois. Parabéns pela iniciativa. Obrigado! Deus o iluminou!!

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