A PRINCESINHA DE MÁ
SORTE
Há muito, muito tempo,
nem eu lhes poderia dizer quando, existia um grande e poderoso rei.
Era tão bom e tão justo que todos os dias vinha gente de terras
distantes pedir-lhe proteção e justiça.
Rico em bens e em
filhos, não fizera durante toda a sua vida senão esforçar-se em
benéfico dos súditos.
Esta história
principia quando ele já não era moço. Adquirira, em numerosas
viagens, grande experiência do mundo, e agora, quase velho, possuía
toda a sabedoria que dá a idade madura.
Seu infortúnio começou
quando, no declínio da vida, a rainha lhe deu mais um filho para
juntar-se aos doze que já tinha. O infeliz monarca não se sentiu
nada satisfeito com semelhante sucesso...
— Senhora! — disse
ele, ao saber do fato, — esse nascimento não nos pode trazer
ventura. Ficamos agora com treze filhos, e treze é número de azar.
Desejaria antes que houvesse nascido dois gêmeos. Sinto-me bastante
apreensivo, e não sei o que poderá vir a acontecer-nos.
Parece que um mau gênio
ouviu estas palavras! Logo depois do nascimento da menina (tinha-me
esquecido de dizer que era uma menina) as coisas começaram a ir a
mal e de mal foram a pior. Sucediam-se nuvens de gafanhotos que
devastavam as plantações, guerras contínuas agitam o país e as
pestes grassavam, exterminando os pobres habitantes. Dentro de dez
anos o reino estava assolado e empobrecido, prestes a esfacelar-se
por completo.
Todo mundo pensa que um
rei ou um homem rico é sempre feliz e não tem tristezas. Puro
engano! Às vezes, quanto mais afortunada é uma criatura, maiores
desditas a atormentam. A história que lhes estou contando comprova
isto que afirmo.
Mas... onde tinha eu
ficado no meu canto? Ah! Agora me lembro! De tal modo as calamidades
se sucederam que, dez anos após o nascimento da princesa, o reino
estava completamente devastado. O velho e infeliz monarca sentia o
coração partir-se ao ver a miséria do seu povo. Nada porém, lhe
era possível fazer, nada! Não estava em sua mão destruir os
gafanhotos, fazer cessar as guerras e afastar para longe as epidemias
que se alastravam no país ceifando os lares.
Um dia, como a
desolação no reino fosse cada vez maior, o bom do soberano reuniu
todos os sábios do mundo para que deliberassem acerca do meio de
remediar tantos males. Juntos em conselho, os sábios discutiram sem
chegar a acordo durante três meses e um dia, e dispersaram-se depois
de todo esse tempo rosnando injúrias uns contra os outros. Isso só
veio aumentar a grande infelicidade do rei.
Ora, aconteceu quem em
certa noite de inverno uma velhinha chegou à porta do palácio e
pediu para falar ao monarca. Não quiseram, de pronto, consentir em
semelhante coisa, mas ela tanto insistiu que não tiveram outro
remédio senão ir acordar o rei e leva-lo à sua presença.
— Senhor! — disse a
velha, quando se viu diante do soberano, — queira Vossa Majestade
perdoar-me pelo que lhe vou declarar: a causa de toda a desgraça do
reino é a vossa filha mais nova. Ela é a praga do país. É a
maldição que caiu sobre as nossas cabeças! Para Vossa Majestade
ter a certeza do que afirmo, rogo-lhe que vá ao quarto dela esta
noite e veja como ela dorme.
Aceitando o conselho, o
rei aproximou-se nas pontas dos pés, da cama onde a menina dormia.
Diferente dos outros irmãos, que dormiam como qualquer ser humano,
ela estava toda enroladinha, com os joelhos encostados ao queixo.
Deus nos livre de repousar algum dia em tal posição!
Profundamente admirado,
o rei deixou o quarto da filha e foi-se deitar, todo entregue à sua
enorme dor.
Na manhã seguinte, a
velha tornou ao palácio e o rei contou-lhe o que presenciara no
quarto da princesinha caçula.
— Não há que
discutir, — disse a velha, lançando em volta um olhar sombrio. —
Não há que discutir! Ela é a causa de tudo. Ou Vossa Majestade a
expulsa de casa ou nunca mais terá dias felizes em sua vida.
O rei, como é natural,
chorou muito, e muito se afligiu, sobretudo quando a velha declarou
que além de expulsar do palácio, deveria a princesinha ser
abandonada nos confins do território. Isso era profundamente
doloroso para ele, pois a menina, apesar de tudo, era sua filha.
Porém, bondoso e justo como era, disse consigo mesmo.
— Preferível que
sofra eu só a sofrer todo o meu povo. Se esta aprovação de perder
minha filha mais nova me está reservada, será melhor que eu a
suporte em silêncio e não veja o reino devastado. Procederei sem
perda de tempo como a velha me aconselhou. Não há outra saída!
Assim pensou, — assim
fez. Chamou a princesa e tristemente lhe contou o quer se passava.
Ela chorou muito, bem como sua mãe e seus irmãos, porém, o rei
teve de cumprir o seu dever. E cumpriu-o.
Na manhã do outro dia
a princesa recebeu do tesouro rela u m saco cheio de moedas de ouro
e, acompanhada de algumas damas da corte, pôs-se a melancolicamente
a caminho. Andou, andou, andou, até que chegou às fronteiras do
reino. Aí a abandonaram. Então ela continuou sozinha a viagem.
Encontrando no caminho
uma camponesa, chamou-a, deu-lhe dinheiro e propôs-lhe trocar pelas
dela as suas belas roupas de princesa. A aldeã concordou, toda
contente.
Seguiu a princesa no
seu caminho, e depois de muitas semanas de jornada chegou a uma
grande e magnífica cidade, com palácios formidáveis, de muitos
andares, que pareciam ter sido construídos por gigantes. Ficou
amedrontada diante de tanta grandeza. O dinheiro já era pouco,
porque dinheiro não é como desventura: a gente se desfaz dele com a
máxima facilidade deste mundo...
Assim, deliberara
arranjar um emprego, pois não queria chegar a sofrer necessidade. É
certo que, se ela pedisse, ninguém lhe negaria alimento, porque
naquele tempo as criaturas erma mais bondosas que hoje em dia.
Atualmente, se alguém se atreve a mendigar um pouco de comida, é
logo enxotado e mandado embora. Os homens são duros!
Ela, uma princesa,
nunca poderia decidir-se a pedir esmola: sangue de rei girava nas
suas veias. Bateu à porta de uma casa e perguntou se precisavam ali
de uma empregada. Está bem visto que esta perspectiva de servir os
outros não lhe dava prazer algum, mas quando não se tem nada não
se pode escolher muito...
Infelizmente não havia
lugar para ela nessa casa, mas o dono recomendou-a ao mordomo de
outro, que a tomou ao seu serviço.
Era um palácio
suntuoso! Sua beleza estonteava! Por toda parte havia ouro, prata e
jóias e metal em profusão, e tantas riquezas, que a princesa se
sentia amedrontada só de pisar os riquíssimos tapetes que recobriam
o chão. Sem dúvida, o palácio de el-rei seu pai era formoso. Mas
este de que ora vos estou falando era extraordinariamente magnífico,
e fazia recuar para a categoria de choupana de pobre aquele em que a
princesinha nascera, se porventura ela mentalmente os comparava um ao
outro.
Levaram-na à porta dos
aposentos da dona da casa e ela entrou. Quem pensam vocês que ela
viu? Uma rainha? Nada disso. viu uma negra bem negra, de beiçola
caída e boca de jacaré, com as banhas espalhadas numa cadeira que
parecia um tronco! A princesa estremeceu ao encara-la. Seria
suficiente uma aparição daquelas para transformar um lindo sonho
num pesadelo horrível! Que mulher feia! Todavia, reparando bem nela,
sentia-se uma expressão de brandura. E havia muita bondade no seu
olhar aberto.
Chamou a menina e
falou-lhe carinhosamente. Ela, porém, estava de tal maneira
desorientada que mal podia responder. A negra percebeu todo o seu
espanto e confusão, mas fez como se não percebesse. Por fim disse à
princesa:
— Querida! Eu sou
realmente muito feia. Contudo o meu destino é muito bonito. Dá-se
justamente o contrário contigo: és muito linda, mas não há
palavras que traduzam o horror do teu destino! A nossa boa ou má
sorte está nas mãos dos gênios, que podem, como os homens, ser
bons ou ser maus. Todos nós temos um gênio encarregado de traçar o
nosso destino: se ele é bom, nosso destino é belo; se é mau, nosso
destino é infeliz. Eu te farei ver com teus próprios olhos o mau
gênio que te persegue e o bom gênio que me guia.
Admirada de tanta
bondade, a princesa ajoelhou-se aos pés da negra e pediu-lhe perdão
da sua falta de cortesia. Contou-lhe então que era filha de reis e
que, por ser o número 13 dos irmãos, atraíra desgraças sobre o
país de onde, em conseqüência disso, fora expulsa para sempre.
Comovida, a patroa
negra levantou-a e meigamente lhe disse que preparasse para aquela
mesma noite uma mesa toda florida, com finas iguarias e vinhos
generosos dos mais raros.
— Põe a mesa neste
quarto ao lado, — acrescentou, — e esconde-te debaixo da cama,
para veres o bem gênio que me guia.
A moça fez tudo o que
a preta lhe recomendou e, ao escurecer, escondeu-se debaixo da cama.
Ao dar da meia-noite abriu-se a porta do quarto, e um jovem de
radiante beleza apareceu. Entrou, sentou-se, tocou de leve nas
iguarias, bebeu algumas gotas de vinho e foi-se embora, deixando
esparso no ar, um suavíssimo perfume de lilases.
Do seu esconderijo, a
princesa ficou maravilhada!
No dia seguinte a preta
chamou-a e perguntou-lhe se tinha gostado do seu bom gênio. A moça
confessou-lhe que ficara deveras seduzida pela finura de seus gestos
e pela sua extraordinária beleza.
— Bom, — disse a
patroa. Manda agora preparar três fornadas de pão e coloca tudo
nesse quarto juntamente com um boi assado e três pipas de vinho. O
gênio mau que te persegue aparecerá esta noite, não sob a forma de
um jovem delicado, mas sob a forma de um gigante grosseirão, guloso
e rude. Espera-o debaixo da cama. Quando ele cair dormindo depois de
comer tudo e beber todo o vinho, sai do teu canto e furta-lhe da
bolsa um novelo de fio de seda vermelha que lá está.
A moça fez como a
patroa lhe mandar.
Tinha acabado de soar a
última badalada da meia-noite, quando a porta do quarto se abriu
dando entrada a um gigante de feia catadura, gordo e grotesco. Todo
despenteado e extremamente sujo, arrastava atrás de si os trapos que
lhe cobriam o corpo à guisa de vestuário. Era apavorante como a
própria imagem a desgraça.
Logo que viu a comida e
os vinhos, entrou a comer e a beber como um cachorro faminto, e
depois de esgotar todas as provisões caiu no chão adormecido. Aí a
princesa esgueirou-se sob a cama, tirou-lhe da bolsa o novelo de seda
e fugiu.
Mesmo embriagadíssimo
como estava, o gigante notou que lhe tinha furtado o novelo e correu
cambaleando atrás da moça, que voava, esbaforida, a tremer cheia de
susto!
— Minha menina! Pare!
Pare por favor! Dê-me o novelo que em troca lhe darei todas as
riquezas da terra! Pára, minha menina! Pare, que não posso mais
correr!
Ela, porém, seguindo
os conselhos da preta, corria de cada vez mais. Louco de raiva, o
gigante voltou para o quarto e estourou com um ruído formidável,
tombando morto no lugar onde há pouco estivera comendo e bebendo.
Sete dias depois que
isso se deu, passou pela rua um arauto do rei declarando que quem
tivesse por acaso um novelo de fio vermelho, de uma certa e
determinada qualidade, o fosse apresentar à corte. O herdeiro do
trono ia casar-se, e faltava linha vermelha de um tom especial para
acabar de costurar o vestido da noiva. Quem a trouxesse poderia pedir
por ela tudo o que entendesse.
A patroa negra chamou
então a princesa, e disse-lhe:
— Leva à corte do
rei o teu novelo de fio de seda e vê se a cor dele combina com a do
vestido da noiva do príncipe. Se assim acontecer, pede simplesmente
em paga qualquer coisa que pese tanto quanto o novelo.
A princesinha
apresentou-se no palácio do rei e, — fato surpreendente! — a cor
do fio do novelo combinava exatamente com a do vestido da noiva do
príncipe.
— Quanto quer você
por esta linha? — perguntou ele, o noivo, que por acaso estava
presente e ficou todo satisfeito com o achado.
— Quero apenas que me
dêem pelo meu novel qualquer coisa que tenha exatamente o peso dele.
— Muito bem! Deixa-o
na balança para ver quanto pesa.
Ao dizer isto o
príncipe ria-se interiormente da ingenuidade da donzela. Mas... que
aconteceu? Maravilha das maravilhas! O jovem filho do rei colocara no
outro prato da balança todo o dinheiro que trazia, e o novelo de
seda pesava mais.
— Isto é bruxedo! —
disseram as pessoas presentes, espantadas e entreolhando-se com
receio.
Nova quantidade de
dinheiro foi colocada para equilibrar o peso do novelo, mas em vão!
E veio mais, e mais, e mais, e mais dinheiro, até que puseram na
balança a carruagem e os cavalos do rei! Pois ainda assim o novelo
continuava pesando mais que tudo aquilo.
Por brincadeira, então,
alguém lembrou ao príncipe!
— Entre V. Alteza na
balança para ver o que sucede.
O príncipe, que a
principio recusou o alvitre, decidiu-se por fim mandar esvaziar o
prato da balança contra-posto ao do novelo e a entrar nele sozinho.
Ó espanto! Imediatamente os dois pratos se equilibraram no ar. Como
é natural, semelhantes fenômenos assombrou a todos.
— Parece que esta
menina ganhou Vossa Alteza e tudo quanto lhe pertence, — disse o
cortesão que tinha aconselhado o príncipe a subir na balança.
— Perfeitamente, —
respondeu ele. É isso mesmo. Porém... que idéia foi essa de eu me
colocar dentro da balança? Agora, paciência... a minha palavra não
pode voltar atrás. Pertenço, de ora em diante a moça que aqui
está.
Enquanto dizia isto,
reparava atentamente na beleza da princesinha. Era muito mais linda e
muito mais graciosa do que a noiva do vestido vermelho!
Levada à presença do
rei, a princesinha contou-lhe toda a sua vida. e o rei, encantado com
a perspectiva de ter nora tão galante, determinou que daí a sete
dias se realizasse o casamento dela com o príncipe. Dizem que sete é
conta de mentiroso. Eu, porém, garanto que tudo isto que estou
contando aconteceu de verdade. Palavra!
O rei convidou-me para
o jantar do casamento, ao qual compareceram os pais e os irmãos da
princesinha, bem como a preta que desfizera a sua má sorte.
Embora o país em que
isto se deu fique a milhares e milhares de léguas de distância, eu,
logo que um anão voador me trouxe o convite do rei, respondi
agradecendo e declarando que lá estaria na hora exata. Parti na
véspera montado no meu cavalo que de noite anda tanto como o vento e
de dia tanto como o pensamento. Cheguei, com assombro geral, no
momento preciso em que todos se encaminhavam do jardim do palácio
para o salão do banquete.
As festas foram de uma
beleza indescritível!
O casal foi sempre
muito feliz, e a princesinha de má sorte nunca mais teve desgosto na
vida.
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