terça-feira, 6 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO III -- A PRINCESINHA DE MÁ SORTE


A PRINCESINHA DE MÁ SORTE



Há muito, muito tempo, nem eu lhes poderia dizer quando, existia um grande e poderoso rei. Era tão bom e tão justo que todos os dias vinha gente de terras distantes pedir-lhe proteção e justiça.
Rico em bens e em filhos, não fizera durante toda a sua vida senão esforçar-se em benéfico dos súditos.
Esta história principia quando ele já não era moço. Adquirira, em numerosas viagens, grande experiência do mundo, e agora, quase velho, possuía toda a sabedoria que dá a idade madura.
Seu infortúnio começou quando, no declínio da vida, a rainha lhe deu mais um filho para juntar-se aos doze que já tinha. O infeliz monarca não se sentiu nada satisfeito com semelhante sucesso...
— Senhora! — disse ele, ao saber do fato, — esse nascimento não nos pode trazer ventura. Ficamos agora com treze filhos, e treze é número de azar. Desejaria antes que houvesse nascido dois gêmeos. Sinto-me bastante apreensivo, e não sei o que poderá vir a acontecer-nos.
Parece que um mau gênio ouviu estas palavras! Logo depois do nascimento da menina (tinha-me esquecido de dizer que era uma menina) as coisas começaram a ir a mal e de mal foram a pior. Sucediam-se nuvens de gafanhotos que devastavam as plantações, guerras contínuas agitam o país e as pestes grassavam, exterminando os pobres habitantes. Dentro de dez anos o reino estava assolado e empobrecido, prestes a esfacelar-se por completo.
Todo mundo pensa que um rei ou um homem rico é sempre feliz e não tem tristezas. Puro engano! Às vezes, quanto mais afortunada é uma criatura, maiores desditas a atormentam. A história que lhes estou contando comprova isto que afirmo. ou um homem rico pobrecido, prestes a esfacelar-se por completo.
s começara nela vemos um grande e poderoso rei a quem o destino tornou tão desgraçado como o pobre mais pobre do seu reino! Não é o poderio nem a riqueza que fazem a felicidade.
Mas... onde tinha eu ficado no meu canto? Ah! Agora me lembro! De tal modo as calamidades se sucederam que, dez anos após o nascimento da princesa, o reino estava completamente devastado. O velho e infeliz monarca sentia o coração partir-se ao ver a miséria do seu povo. Nada porém, lhe era possível fazer, nada! Não estava em sua mão destruir os gafanhotos, fazer cessar as guerras e afastar para longe as epidemias que se alastravam no país ceifando os lares.
Um dia, como a desolação no reino fosse cada vez maior, o bom do soberano reuniu todos os sábios do mundo para que deliberassem acerca do meio de remediar tantos males. Juntos em conselho, os sábios discutiram sem chegar a acordo durante três meses e um dia, e dispersaram-se depois de todo esse tempo rosnando injúrias uns contra os outros. Isso só veio aumentar a grande infelicidade do rei.
Ora, aconteceu quem em certa noite de inverno uma velhinha chegou à porta do palácio e pediu para falar ao monarca. Não quiseram, de pronto, consentir em semelhante coisa, mas ela tanto insistiu que não tiveram outro remédio senão ir acordar o rei e leva-lo à sua presença.
— Senhor! — disse a velha, quando se viu diante do soberano, — queira Vossa Majestade perdoar-me pelo que lhe vou declarar: a causa de toda a desgraça do reino é a vossa filha mais nova. Ela é a praga do país. É a maldição que caiu sobre as nossas cabeças! Para Vossa Majestade ter a certeza do que afirmo, rogo-lhe que vá ao quarto dela esta noite e veja como ela dorme.
Aceitando o conselho, o rei aproximou-se nas pontas dos pés, da cama onde a menina dormia. Diferente dos outros irmãos, que dormiam como qualquer ser humano, ela estava toda enroladinha, com os joelhos encostados ao queixo. Deus nos livre de repousar algum dia em tal posição!
Profundamente admirado, o rei deixou o quarto da filha e foi-se deitar, todo entregue à sua enorme dor.
Na manhã seguinte, a velha tornou ao palácio e o rei contou-lhe o que presenciara no quarto da princesinha caçula.
— Não há que discutir, — disse a velha, lançando em volta um olhar sombrio. — Não há que discutir! Ela é a causa de tudo. Ou Vossa Majestade a expulsa de casa ou nunca mais terá dias felizes em sua vida.
O rei, como é natural, chorou muito, e muito se afligiu, sobretudo quando a velha declarou que além de expulsar do palácio, deveria a princesinha ser abandonada nos confins do território. Isso era profundamente doloroso para ele, pois a menina, apesar de tudo, era sua filha. Porém, bondoso e justo como era, disse consigo mesmo.
— Preferível que sofra eu só a sofrer todo o meu povo. Se esta aprovação de perder minha filha mais nova me está reservada, será melhor que eu a suporte em silêncio e não veja o reino devastado. Procederei sem perda de tempo como a velha me aconselhou. Não há outra saída!
Assim pensou, — assim fez. Chamou a princesa e tristemente lhe contou o quer se passava. Ela chorou muito, bem como sua mãe e seus irmãos, porém, o rei teve de cumprir o seu dever. E cumpriu-o.
Na manhã do outro dia a princesa recebeu do tesouro rela u m saco cheio de moedas de ouro e, acompanhada de algumas damas da corte, pôs-se a melancolicamente a caminho. Andou, andou, andou, até que chegou às fronteiras do reino. Aí a abandonaram. Então ela continuou sozinha a viagem.
Encontrando no caminho uma camponesa, chamou-a, deu-lhe dinheiro e propôs-lhe trocar pelas dela as suas belas roupas de princesa. A aldeã concordou, toda contente.
Seguiu a princesa no seu caminho, e depois de muitas semanas de jornada chegou a uma grande e magnífica cidade, com palácios formidáveis, de muitos andares, que pareciam ter sido construídos por gigantes. Ficou amedrontada diante de tanta grandeza. O dinheiro já era pouco, porque dinheiro não é como desventura: a gente se desfaz dele com a máxima facilidade deste mundo...
Assim, deliberara arranjar um emprego, pois não queria chegar a sofrer necessidade. É certo que, se ela pedisse, ninguém lhe negaria alimento, porque naquele tempo as criaturas erma mais bondosas que hoje em dia. Atualmente, se alguém se atreve a mendigar um pouco de comida, é logo enxotado e mandado embora. Os homens são duros!
Ela, uma princesa, nunca poderia decidir-se a pedir esmola: sangue de rei girava nas suas veias. Bateu à porta de uma casa e perguntou se precisavam ali de uma empregada. Está bem visto que esta perspectiva de servir os outros não lhe dava prazer algum, mas quando não se tem nada não se pode escolher muito...
Infelizmente não havia lugar para ela nessa casa, mas o dono recomendou-a ao mordomo de outro, que a tomou ao seu serviço.
Era um palácio suntuoso! Sua beleza estonteava! Por toda parte havia ouro, prata e jóias e metal em profusão, e tantas riquezas, que a princesa se sentia amedrontada só de pisar os riquíssimos tapetes que recobriam o chão. Sem dúvida, o palácio de el-rei seu pai era formoso. Mas este de que ora vos estou falando era extraordinariamente magnífico, e fazia recuar para a categoria de choupana de pobre aquele em que a princesinha nascera, se porventura ela mentalmente os comparava um ao outro.
Levaram-na à porta dos aposentos da dona da casa e ela entrou. Quem pensam vocês que ela viu? Uma rainha? Nada disso. viu uma negra bem negra, de beiçola caída e boca de jacaré, com as banhas espalhadas numa cadeira que parecia um tronco! A princesa estremeceu ao encara-la. Seria suficiente uma aparição daquelas para transformar um lindo sonho num pesadelo horrível! Que mulher feia! Todavia, reparando bem nela, sentia-se uma expressão de brandura. E havia muita bondade no seu olhar aberto.
Chamou a menina e falou-lhe carinhosamente. Ela, porém, estava de tal maneira desorientada que mal podia responder. A negra percebeu todo o seu espanto e confusão, mas fez como se não percebesse. Por fim disse à princesa:
— Querida! Eu sou realmente muito feia. Contudo o meu destino é muito bonito. Dá-se justamente o contrário contigo: és muito linda, mas não há palavras que traduzam o horror do teu destino! A nossa boa ou má sorte está nas mãos dos gênios, que podem, como os homens, ser bons ou ser maus. Todos nós temos um gênio encarregado de traçar o nosso destino: se ele é bom, nosso destino é belo; se é mau, nosso destino é infeliz. Eu te farei ver com teus próprios olhos o mau gênio que te persegue e o bom gênio que me guia.
Admirada de tanta bondade, a princesa ajoelhou-se aos pés da negra e pediu-lhe perdão da sua falta de cortesia. Contou-lhe então que era filha de reis e que, por ser o número 13 dos irmãos, atraíra desgraças sobre o país de onde, em conseqüência disso, fora expulsa para sempre.
Comovida, a patroa negra levantou-a e meigamente lhe disse que preparasse para aquela mesma noite uma mesa toda florida, com finas iguarias e vinhos generosos dos mais raros.
— Põe a mesa neste quarto ao lado, — acrescentou, — e esconde-te debaixo da cama, para veres o bem gênio que me guia.
A moça fez tudo o que a preta lhe recomendou e, ao escurecer, escondeu-se debaixo da cama. Ao dar da meia-noite abriu-se a porta do quarto, e um jovem de radiante beleza apareceu. Entrou, sentou-se, tocou de leve nas iguarias, bebeu algumas gotas de vinho e foi-se embora, deixando esparso no ar, um suavíssimo perfume de lilases.
Do seu esconderijo, a princesa ficou maravilhada!
No dia seguinte a preta chamou-a e perguntou-lhe se tinha gostado do seu bom gênio. A moça confessou-lhe que ficara deveras seduzida pela finura de seus gestos e pela sua extraordinária beleza.
— Bom, — disse a patroa. Manda agora preparar três fornadas de pão e coloca tudo nesse quarto juntamente com um boi assado e três pipas de vinho. O gênio mau que te persegue aparecerá esta noite, não sob a forma de um jovem delicado, mas sob a forma de um gigante grosseirão, guloso e rude. Espera-o debaixo da cama. Quando ele cair dormindo depois de comer tudo e beber todo o vinho, sai do teu canto e furta-lhe da bolsa um novelo de fio de seda vermelha que lá está.
A moça fez como a patroa lhe mandar.
Tinha acabado de soar a última badalada da meia-noite, quando a porta do quarto se abriu dando entrada a um gigante de feia catadura, gordo e grotesco. Todo despenteado e extremamente sujo, arrastava atrás de si os trapos que lhe cobriam o corpo à guisa de vestuário. Era apavorante como a própria imagem a desgraça.
Logo que viu a comida e os vinhos, entrou a comer e a beber como um cachorro faminto, e depois de esgotar todas as provisões caiu no chão adormecido. Aí a princesa esgueirou-se sob a cama, tirou-lhe da bolsa o novelo de seda e fugiu.
Mesmo embriagadíssimo como estava, o gigante notou que lhe tinha furtado o novelo e correu cambaleando atrás da moça, que voava, esbaforida, a tremer cheia de susto!
— Minha menina! Pare! Pare por favor! Dê-me o novelo que em troca lhe darei todas as riquezas da terra! Pára, minha menina! Pare, que não posso mais correr!
Ela, porém, seguindo os conselhos da preta, corria de cada vez mais. Louco de raiva, o gigante voltou para o quarto e estourou com um ruído formidável, tombando morto no lugar onde há pouco estivera comendo e bebendo.
Sete dias depois que isso se deu, passou pela rua um arauto do rei declarando que quem tivesse por acaso um novelo de fio vermelho, de uma certa e determinada qualidade, o fosse apresentar à corte. O herdeiro do trono ia casar-se, e faltava linha vermelha de um tom especial para acabar de costurar o vestido da noiva. Quem a trouxesse poderia pedir por ela tudo o que entendesse.
A patroa negra chamou então a princesa, e disse-lhe:
— Leva à corte do rei o teu novelo de fio de seda e vê se a cor dele combina com a do vestido da noiva do príncipe. Se assim acontecer, pede simplesmente em paga qualquer coisa que pese tanto quanto o novelo.
A princesinha apresentou-se no palácio do rei e, — fato surpreendente! — a cor do fio do novelo combinava exatamente com a do vestido da noiva do príncipe.
— Quanto quer você por esta linha? — perguntou ele, o noivo, que por acaso estava presente e ficou todo satisfeito com o achado.
— Quero apenas que me dêem pelo meu novel qualquer coisa que tenha exatamente o peso dele.
— Muito bem! Deixa-o na balança para ver quanto pesa.
Ao dizer isto o príncipe ria-se interiormente da ingenuidade da donzela. Mas... que aconteceu? Maravilha das maravilhas! O jovem filho do rei colocara no outro prato da balança todo o dinheiro que trazia, e o novelo de seda pesava mais.
— Isto é bruxedo! — disseram as pessoas presentes, espantadas e entreolhando-se com receio.
Nova quantidade de dinheiro foi colocada para equilibrar o peso do novelo, mas em vão! E veio mais, e mais, e mais, e mais dinheiro, até que puseram na balança a carruagem e os cavalos do rei! Pois ainda assim o novelo continuava pesando mais que tudo aquilo.
Por brincadeira, então, alguém lembrou ao príncipe!
— Entre V. Alteza na balança para ver o que sucede.
O príncipe, que a principio recusou o alvitre, decidiu-se por fim mandar esvaziar o prato da balança contra-posto ao do novelo e a entrar nele sozinho. Ó espanto! Imediatamente os dois pratos se equilibraram no ar. Como é natural, semelhantes fenômenos assombrou a todos.
— Parece que esta menina ganhou Vossa Alteza e tudo quanto lhe pertence, — disse o cortesão que tinha aconselhado o príncipe a subir na balança.
— Perfeitamente, — respondeu ele. É isso mesmo. Porém... que idéia foi essa de eu me colocar dentro da balança? Agora, paciência... a minha palavra não pode voltar atrás. Pertenço, de ora em diante a moça que aqui está.
Enquanto dizia isto, reparava atentamente na beleza da princesinha. Era muito mais linda e muito mais graciosa do que a noiva do vestido vermelho!
Levada à presença do rei, a princesinha contou-lhe toda a sua vida. e o rei, encantado com a perspectiva de ter nora tão galante, determinou que daí a sete dias se realizasse o casamento dela com o príncipe. Dizem que sete é conta de mentiroso. Eu, porém, garanto que tudo isto que estou contando aconteceu de verdade. Palavra!
O rei convidou-me para o jantar do casamento, ao qual compareceram os pais e os irmãos da princesinha, bem como a preta que desfizera a sua má sorte.
Embora o país em que isto se deu fique a milhares e milhares de léguas de distância, eu, logo que um anão voador me trouxe o convite do rei, respondi agradecendo e declarando que lá estaria na hora exata. Parti na véspera montado no meu cavalo que de noite anda tanto como o vento e de dia tanto como o pensamento. Cheguei, com assombro geral, no momento preciso em que todos se encaminhavam do jardim do palácio para o salão do banquete.
As festas foram de uma beleza indescritível!
O casal foi sempre muito feliz, e a princesinha de má sorte nunca mais teve desgosto na vida.


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