terça-feira, 6 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO III -- A MUCAMA INFIEL


A MUCAMA INFIEL

Era uma vez uma velha rainha, viúva há muitos anos, que possuía uma filha extraordinariamente formosa. Quando a menina cresceu, prometeram-na em casamento a um príncipe de pais distante, cujo nome agora não me recorda.
Chegada a época de celebrar o casamento a jovem aprestou-se para a longa viagem que tinha de fazer, e a velha rainha, que a amava de todo coração, encheu-lhe as malas com objetos preciosos de prata e ouro, taças, jóias, tudo enfim que pode convir ao enxoval de uma princesa. E designou, para acompanhá-la e entrega-la ao seu prometido, uma aia de toda confiança.
Deu ainda a rainha a cada uma das duas um cavalo para a viagem, sendo que o da princesa sabia falar e chamava-se Baturim.
Na hora da despedida, a velha mãe foi ao quarto de sua filha, tomou de uma faca, feriu-se num dos dedos e aparou três gotas de sangue num pequenino lenço branco, lenço que, sentidamente, lhe ofereceu, dizendo:
Querida! Guarda-o bem. Far-te-ia falta para a jornada se porventura o perdesses.
Despediram-se chorando. A princesa meteu o lenço no seio, montou a cavalo e partiu. Ao cabo de uma hora de marcha, sentiu uma sede enorme, e disse à mucama:
Apeia-te e traze-me água daquele córrego, na minha taça de prata. Quero beber. Tenho muita sede.
Pois se tende muita sede, replicou a mucama, desmontai e ide vós mesma ao arroio. Não desejo servir-vos de criada.
A princesa efetivamente, ardia de sede. Que fazer?
Desceu do cavalo e, aproximando-se da margem, inclinou-se um pouco sobre a água e bebeu com as mãos em concha, pois a mucama não a deixou beber na sua taça de prata. Suspirou, então, a jovem, e as três gotas de sangue responderam:
Ai! Se a tua mãe soubesse, princesa! Ficaria com o coração partido!
Ela, porém, era muito humilde. Não disse palavra e subiu outra vez para o cavalo. Caminharam ainda algumas léguas. Mas como o dia estivesse muito quente e o sol de novo causticasse, tornou a princesinha a ter sede.
E ao passar junto de um rio, dirigiu-se outra vez à companheira, esquecendo-se da má resposta que tinha ouvido antes:
Desce e dá-me de beber pela minha taça de ouro.
A mucama respondeu ainda com maior soberba:
Se queres beber, bebei na mão; eu não desejo ser vossa criada.
Morta de sede, a princesa desceu do cavalo, a chorar, e inclinando-se sobre a água, suspirou:
Deus meu!
As gotas de sangue responderam:
Ai! Se a tua mãe soubesse, princesa! Ficaria com o coração partido!
Ora, enquanto ela bebia, vergou-se tanto que o lencinho escapou-lhe do seio, e rapidamente, em poucos segundos, foi levado pela correnteza sem que ela de tal se apercebesse.
A criada bem que viu o lencinho cair. Muito se alegrou por isso, pois iria ter daí em diante grande poder sobre a princesa, agora enfraquecida e desamparada das três gotas de sangue maternal. Quando ela quis montar no seu cavalo chamado Baturim, a sem-vergonha da mucama disse:
Baturim agora será meu e tu irás no meu cavalo.
A princesinha obedeceu. Ordenou-lhe ainda a mucama que se despojasse de suas vestes e, por último, fê-la jurar que, na corte para onde iam, não revelaria a ninguém coisa alguma do que se tinha passado. A princesa submeteu-se a todas estas humilhações, porque de outra forma seria assassinada. Mas Baturim viu tudo e tudo ouviu.
Trocados os cavalos e os vestuários, continuaram ambas o caminho, até que por fim chegaram ao palácio real.
Houve grande alegria.
O príncipe, correndo ao encontro de sua suposta noiva, ajudou a mucama a descer de Baturim e fê-la subir sem demora as escadarias de mármore do palácio, enquanto que a verdadeira princesa era deixada no pátio entre os criados.
O velho rei, todavia, reparou na princesa, de uma das janelas do palácio, e, achando-a muito delicada e formosa, não pode deixar de perguntar à mucama quem era aquela que a havia acompanhado e se encontrava no pátio entre os mais servos.
É uma escrava, — disse a mucama. Trouxe-a para que me fizesse companhia. Não presta para nada! Rogo-vos que deis qualquer trabalho a essa grandíssima preguiçosa!
Não tendo trabalho especial para lhe dar, o soberano respondeu:
Há um rapazinho que me guarda os gansos. Talvez que ela possa ajudá-lo.
E dessa forma a verdadeira princesa teve que ajudar a guardar gansos ao rapazinho, cujo nome era Gonçalo.
Passados alguns dias a falsa noiva disse ao príncipe:
Querido! Peço-vos que me faças um favor.
Com muito prazer, respondeu o príncipe.
Mandai cortar a cabeça do cavalo que me trouxe, pois causou-me grandes desgostos no caminho.
Ela pediu isto com medo de que Baturim falasse e dissesse com toda clareza o que se passara durante a viagem.
Ficou imediatamente decidida a morte de Baturim. Logo que tão desoladora notícia chegou aos ouvidos da princesa, ela prometeu em segredo uma moeda de ouro ao criado incumbido de matá-lo, pedindo-lhe em troca um pequenino favor.
Havia no palácio uma porta escura e grande, por onde ela tinha de passar de manhã e à noite com seus gansos. Sobre essa porta rogou a princesa que fosse colocada a cabeça de Baturim, para que ao menos todos os dias a pudesse ver.
O criado prometeu, e, efetivamente, depois de cortar a cabeça do cavalo, dependurou-a por sobre a porta sombria.
Na manhã seguinte, a princesa, ao passar por lá, em companhia de Gonçalo, disse:
— Ó Baturim, Baturim! Inda te lembras de mim?
E a cabeça respondeu:
Ai! Se a tua mãe soubesse, princesa! Ficaria com o coração partido.
Depois de ouvir estas palavras, a princesa continuou o seu caminho, saindo tranquilamente do palácio. Foi guardar os gansos no campo e, quando lá chegou, sentou-se e soltou os cabelos que eram do mais fino ouro. Gonçalo, ao vê-los tão formosos, quis arrancar-lhe alguns. Ela, porém, pediu ao vento:

Vento, ó vento corredor!
Corre sempre sem parar!
Leva o chapéu de Gonçalo
Para eu me poder pentear.

Levantou-se então um fortíssimo vendaval que imediatamente carregou o chapéu de Gonçalo e o fez correr pelo campo em todos os sentidos a fim de o apanhar.
Quando voltou já a princesa estava toda penteada. O rapazinho ficou muitíssimo desgostoso por isso e deliberou não falar mais à companheira nesse dia.
Na manhã seguinte, ao passar pela porta sombria do costume, a princesinha repetiu:
Ó Baturim, Baturim! Inda te lembras de mim?
E a cabeça respondeu:
Ai! Se a tua mãe soubesse, princesa! Ficaria com o coração partido.
Já no campo, voltou a princesa a sentar-se na relva e começou a pentear-se. Gonçalo estendeu a mão para lhe segura as tranças, mas ela disse como no dia anterior:

Vento, ó vento corredor!
Corre sempre sem parar!
Leva o chapéu de Gonçalo
Para eu me poder pentear.

E o vento soprou, levando o chapéu de Gonçalo, que partiu correndo para o apanhar. Quando voltou, há muito que a princesa estava penteada. Não lhe pôde tirar nenhum cabelo.
À noite, chegados à casa, ele foi procurar o velho rei e disse:
Não quero mais guardar gansos com essa moça que veio acompanhando a princesa consorte.
Por quê? — indagou o rei.
Porque me faz raivoso durante todo o dia.
Ordenou-lhe então o rei que lhe narrasse o que se passava, e Gonçalo contou:
Pela manhã, sempre que atravessamos a porta sombria onde está dependurada a cabeça de um cavalo, ela exclama: “Ó Baturim, Baturim! Inda te lembras de mim?” E o cavalo responde: “Ai! Se a tua mãe soubesse, princesa! Ficaria com o coração partido.” Depois a cena do chapéu, e como era obrigado a correr sem parar por todo o campo até que ela se penteasse.
O velho rei mandou-o sair de novo com a moça na manhã seguinte, e a fim de se certificar do que ele lhe contar, foi postar-se por trás da porta sombria. Ouviu a princesinha falar à cabeça do cavalo e a cabeça do cavalo responder-lhe. Seguiu depois ao campo escondendo-se atrás de uma árvore, e presenciou tudo. A moça, logo que se sentou na relva, e destrançou os seus formosos cabelos de ouro puro e comandou ao vento:

Vento, ó vento corredor!
Corre sempre sem parar!
Leva o chapéu de Gonçalo
Para eu me poder pentear.

E o vento soprou levando o chapéu de Gonçalo, que se pôs a correr desesperadamente atrás dele até que a princesinha acabou de se pentear.
Depois de ver tudo isto retirou-se o rei sem ser pressentido, e à noite, quando a jovem regressou, interpelou-a sobre a significação das cenas a que assistira:
Não posso explicar-vos coisa alguma nem contar-vos os meus segredos, pois jurei perante o céu que nada jamais confessaria. Esse juramento eu o fiz para que não me matassem.
O rei insistiu de todas as formas, porém, debalde. Vendo, então, que nada conseguiria, ordenou:
Confias as tuas mágoas à cabeça do teu cavalo, já que as não queres confiar a mim.
E retirou-se.
A princesinha, que era muito obediente, foi para diante da cabeça de Baturim e começou a falar chorando:
Aqui estou eu abandonada e triste, e apesar de tudo sou princesa. Uma criada infiel me traiu, e depois de me roubar os vestidos tomou-me o lugar ao lado do meu noivo. Agora tenho eu de trabalhar guardando gansos.
A cabeça do cavalo escutou sossegadamente, e respondeu como de costume:
Ai! Se a tua mãe soubesse, princesa! Ficaria com o coração partido.
O velho rei, que se tinha escondido por trás da porta, ouviu o que ela dissera. Saindo imediatamente do seu esconderijo, levou-a ao palácio e mandou que a adornassem com os seus ricos vestuários de princesa.
E ela ficou formosíssima.
Chamou então o príncipe, e contou-lhe o engano em que caíra admitindo a seu lado uma simples mucama, pois a verdadeira noiva era aquela que tinha guardado os gansos.
O jovem ficou imensamente alegre ao apreciar tanta bondade, tanta virtude e tanta beleza, e combinou com seu augusto pai a realização de um grande banquete para o qual seria convidada toda a corte.
No dia do banquete, sentou-se o noivo à cabeceira, tendo de um lado a princesinha e do outro a mucama.
Acabada a festa o rei perguntou à pérfida criatura:
Que pena mereceria uma criada que houvesse feito à sua ama, isto e isto (contou tudo o que ela mesma fizera à princesa) de forma a que a infeliz tivesse mais tarde viver guardando gansos do rei?
A mucama, não pensando que o rei soubesse o que se havia passado entre ela e a princesa, respondeu:
Uma tal criatura mereceria que a colocassem nua dentro de uma pipa cheia de pregos e a fizessem rolar por uma longa montanha abaixo.
Muito bem, — disse o rei. Proferiste agora pela tua boca a tua própria sentença de morte. Serás assim justiçada. Tal e qual.
A sentença cumpriu-se e o príncipe casou-se com a sua verdadeira noiva. Ambos governaram o reino em paz e ventura durante muitos anos, e a cabeça de Baturim, que era um cavalo encantado, transformou-se em águia e voou para o reino da mãe da princesa, onde contou tudo o que se dera.
A mãe da princesa veio logo para junto de sua filha a fim de a defender de qualquer desgraça futura, e ficou vivendo com ela até morrer.

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