terça-feira, 6 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO III -- O CAVALEIRO DAS FLORES


O CAVALEIRO DAS FLORES



Era uma vez um conde muito rico e poderoso. Como gostava muito de caça, tinha a serviço grande número de caçadores que percorriam as suas florestas e lhe traziam caça fresca todos os dias.
Ora, entre os caçadores havia três que sempre andavam juntos e sempre voltavam com os sacos cheios de caça. Mas tantas vezes foram caçar que por fim já muito raramente encontravam corças e aves.
Um dia, depois de se terem esforçado em vão durante muito tempo, dois deles mataram algumas perdizes, porém, o terceiro não matou coisa nenhuma.
Quando se juntaram todos três, os dois que tinham matado caça viram o companheiro tão triste que o não quiseram abandonar e partir. Não desejando ele também chegar à casa demãos vazias, combinou com os outros tentar a sorte durante mais algum tempo, e entraram todos pela floresta através de caminhos ignorados.
Encontraram árvores tombadas e mataria espessa de folhagem densa, sempre em busca de caça, e embrenharam-se tanto na floresta que se perderam no caminho.
Quando a tarde findou viram-se completamente desorientados, e, não sabendo o que fazer, decidiram passar a noite ao relento. Pensaram, então, com ansiedade nos amigos de casa, os quais estriam certamente admirados com o que lhes havia sucedido, pois até àquela noite sempre eles voltaram a tempo, levando caça para a mesa do fidalgo.
No dia seguinte esforçaram-se por encontrar o caminho, e andando sempre, andando sempre, viram que a floresta se tornava cada vez mais aberta, com as árvores cortadas à semelhança de um parque primoroso.
Continuado em seu caminho, chegaram em breve a um lago formosíssimo, de águas claras e mansas, isolado entre árvores antigas. Era cerca de meio-dia. Bastante cansados, sentaram-se à sombra do arvoredo.
Subitamente escutaram um forte bater de asas e, erguendo os olhos, viram um pássaro voar e pousar num pinheiro não muito longe do lago. Oh! Que bonito pássaro! Nunca nenhum dos três tinha deparado outro igual àquele!
Quando o terceiro caçado o avistou no chão, aprontou-se para atirar, mas os companheiros não o deixaram, dizendo:
— É talvez um pássaro encantado. Vejamos primeiro o que ele faz por aqui. Espreitemos escondidos, sem falar, sem dar o mínimo sinal de nossa presença!
E ficaram quietos, vigiando.
Algum tempo o pássaro olhou em volta. Depois, dando três cambalhotas, transformou-se num belo jovem, que saltou para o lago e brincou na água certa de uma hora. Voltou em seguida para o lugar debaixo do pinheiro, onde a principio tinha pousado, mudou-se novamente numa ave e alçou o vôo.
Os três caçadores olhavam com espanto para tudo o que o pássaro fazia. Esperaram até ele desaparecer, e partiram então à procura do caminho de casa.
Na outra extremidade do lago depararam, enfim, um atalho, e seguindo por ele chegaram a algumas aldeias que lhes pareceram conhecidas. No caminho o terceiro caçador matou uma cabra montes e, continuando a jornada, encontraram três amigos o seu domicílio ao fim do segundo dia.
Quando viram o Conde, este lhes disse:
— Que vos aconteceu? Onde estivestes? Que trouxestes?
Então eles contaram que se tinham perdido na floresta e chegado a uma clareira perto dum lago onde viram um pássaro encantado. E narraram o sucedido.
Admirou-se o Conde grandemente do que eles lhe contaram, perguntou-lhes:
— Podem vocês agarrar o pássaro e trazer-mo?
— Sim, replicaram. Pensamos que sim. Mas deveis dar-nos duas garrafas, uma cheia de bom vinho branco e outra de aguardente. O resto fica por nossa conta.
Deu-lhes o Conde as duas garrafas, e no dia seguinte eles partiram de jornada. Agora que sabiam o caminho, encontraram facilmente o lugar. Então pegaram em duas cavilhas e fincaram-nas na árvore onde o pássaro tinha pousado. Nelas dependuraram as duas garrafas, e esconderam-se depois num canto escuro, onde permaneceram em silêncio.
Veio o pássaro, e dando três cambalhotas virou homem. olhou em volta e os seus olhos deram justamente com as garrafas. Curioso de saber o que continham, pegou na de vinho e despejou um pouco do seu conteúdo, semelhante a uma água amarelada. Provou e achou que tinha bom gosto, — tanto assim que bebeu todo o vinho. Abriu em seguida a outra garrafa e bebeu toda a aguardente.
Depois saltou para água, nadou, saiu e fez-se pássaro. Quando, porém, tentou voar, achou as asas muito pesadas, pois a bebida trabalhara dentro dele. Assim, caiu desamparado no chão.
Por isto esperavam os caçadores! Logo que o viram no chão fraco e sem alento, foram para perto dele, atacaram-lhe as pernas e as asas e levaram-no ao Conde.
Tinha o Conde saído ao seu encontro, ansioso por ver aquele raro e maravilhoso pássaro. Ficou satisfeitíssimo! E deu-lhes um rico presente, de forma que os caçadores foram alegres para as suas casas esperar trabalho.
Não satisfeito em ver o pássaro, o Conde fechou-o num quarto muito forte, construído de pedra, com barras de ferro na janela, tão bem fechado, tão bem fechado, que não havia probabilidade de ele fugir. A chave do quarto, guardou-a ele consigo, muito em segredo, para que ninguém soubesse onde encontra-la.
Que espécie de pássaro seria aquele? Para sabe-lo, convidou o Conde os sábios de todo o mundo a vir à sua corte em certo dia, a fim de procurarem descobrir a natureza e as particularidades dessa ave maravilhosa. E prometeu recompensar nobremente que quer que lhe desse informação exata.
Ora, aconteceu que num domingo, quando todos tinham ido à igreja, ficou sozinho em casa o filho único do Conde, um menino de cerca de oito anos. Era um dia magnífico de sol. O menino saiu para brincar no jardim, e seus passos casualmente o levaram para junto do quarto onde o pássaro estava fechado.
Vendo-o, através da janela, o pássaro mostrou-lhe um brinquedo todo de ouro, e disse-lhe:
— Meu querido menino! Vê que lindo brinquedo eu tenho para te dar!
Quando o pequeno viu o brinquedo, palpitou-lhe o coração de alegria. Aproximando-se, pediu-lho.
— Deixa-me fugir (disse-lhe a ave) que eu dou-to.
E vai o menino:
— De boa vontade eu te deixava fugir, mas não sei onde está a chave desse quarto.
Ora, o pássaro era encantado e sabia tudo. Retrucou ao pequeno:
Vai ao quarto do teu pai, e debaixo da terceira almofada da cabeceira da cama encontrarás a chave. Volta com ela e abre a porta.
O menino correu tanto quanto as pernas podiam, achou a chave e abriu a porta.
O pássaro saiu e deu-lhe o brinquedo, dizendo:
— Se algum dia tiveres grandes contrariedades e precisares de auxílio, pensa em mim que te ajudarei. Lembra-te do meu nome: eu sou o Cavaleiro das Flores.
E voou, desapareceu.
Logo depois disto o pai e a mãe voltaram, e o menino, segurando na mão o seu brinquedo de ouro, correu a saúdá-los.
Quando o pai viu coisa tão linda, pensou que tinha sido presente dos homens que haviam chegado, — pois aquele era o dia estabelecido para a grande reunião dos sábios de todo o mundo. Passeando ao lado do filho, perguntou-lhe:
— Quem te deu esse brinquedo de ouro?
— Foi o pássaro que estava naquele quarto, respondeu a criança.
Ao escutar estas palavras, o Conde, receoso, indagou:
— Como pudeste chegar perto do pássaro e como te pôde ele te dar o brinquedo?
Então o menino contou o que tinha acontecido. Contou como o pássaro lhe tinha falado pela janela, prometendo-lhe o brinquedo se o pusesse em liberdade, — e como lhe ensinar a o sítio onde estava escondida a chave da porta.
Ao ouvir semelhante narrativa, o Conde zangou-se, desesperado pela perda de tão lindo animal e pela vergonha que ia passar, pois já o pátio se encontrava cheio de carruagens e não havia cavalariças que chegassem para os cavalos, tantos eram os sábios que tinha acorrido ao seu convite.
Amargamente desapontado e profundamente pesaroso, ficou irresoluto, sem saber o que fazer. subindo para cumprimenta-lo, encontraram-no os visitantes andando de um lado para outro, muito triste, muito triste. Perguntaram-lhe, curiosos, a razão de tamanha tristeza.
— Ide primeiro comer, — disse-lhes o Conde, — e em seguida vos contarei.
Quando acabou a refeição, pediu-lhes o Conde que entrassem para o salão nobre e, levando pela mão o seu filhinho inocente, narrou-lhes o que sucedera e quão incomodado, quão desgostoso e envergonhado estava por havê-los convidado inutilmente. Depois de lhes ter dito o que o menino fizera, terminou:
— Agora, grandes sábios, sentai-vos e julgai o meu filho, decidindo como deverá ser castigado pelo aborrecimento que vos deu. Qualquer que seja a vossa decisão, a ela desde já submeto.
E deixando o menino no mio deles, atravessou para a outra extremidade do salão.
Começaram os sábios a esbravejar, gritando todos ao mesmo tempo:
— Este menino merece grandíssimo castigo!
Lembraram alguns que ele fosse fuzilado; outros que fosse atirado ao mar; outros, que fosse queimado vivo numa grelha; e outros, finalmente, alvitraram que o fechassem numa prisão durante a vida inteira, por causa da grande vergonha e contrariedade que tinha causado a seu pai, deixando fugir pássaro tão precioso e tão raro.
Depois de discutirem durante sete dias e sete noites, levantou-se um homem muito velho que tinha estado tranquilamente a escutar toda aquela gritaria, e disse-lhes:
— Amigos! Lembrai-vos que este é o filho único do nosso hospedeiro, e que, se o condenais à morte, o pesar de seus pais só aumentará com isso. Não é esse o modo de o castigar. Concedei-lhe a vida. Entregue-lhe, porém, o pai, três sacos cheios de ouro, ponha-o num carro vulgar guiado por um cocheiro e mande-o correr mundo com ordem de não voltar para casa sem trazer novamente o pássaro.
Ficaram todos muito contentes com o parecer do velho, e o Conde ordenou então a um cigano que atrelasse os cavalos a um carro. Deu ao menino três sacos de dinheiro e disse-lhe:
— Vai buscar mais um terno de roupa e um chapéu, e parte! Segue para onde os teus olhos te levarem. E que Deus te abençoe.
Sentindo-se muito triste ao ouvir tais palavras de seu pai, o menino começou a chorar e lamentar-se, implorando que lhe batessem, que o castigassem, mas que não expulsassem de casa, visto ser ele ainda pequenino, com oito anos apenas.
Porém, a sentença tinha sido aquela. Não poderia ser alterada, nem revogada. A criança devia partir e confiar-se inteiramente ao seu destino.
Separaram-se os sábios, indo cada qual para o seu país.
O Conde, esse ficou muito triste pela perda do pássaro e mais ainda pela perda de seu único filho, que partiu a correr mundo, dentro de um carro conduzido por um cocheiro cigano.
A principio, o cocheiro e ele foram muito camaradas um do outro. Depois, passado algum tempo, o cigano começou a ficar contrariado e a odiá-lo. Um dia, quando iam pela estrada afora, viu o uma pena de pássaro na relva, e disse ao cigano:
— Pára o carro e traze-me aquela pena, que é tão linda!
Com muita relutância, o cigano desceu do carro, apanhou a pena e entregou-a ao seu patrãozinho. Subindo novamente, conduziu os cavalos a galope, murmurando: “Eu é que não serei mais escravo deste guri. Ele que me mande outra vez sair do carro e apanhar uma pena... Deixa que nós ajustaremos conta quando entrarmos lá adiante na floresta! Vou ser como o velho Conde! Conduzirei meu próprio carro e terei ainda por cima três sacos cheios de ouro”.
Ora, logo que o menino pegou na pena, colocou-a atrás da orelha e imediatamente se tornou encantado, pois a pena saíra do mesmo pássaro que ele havia posto em liberdade. Assim, ficou logo sabendo o que o cigano queria fazer-lhe. e enquanto iam andando disse-lhe:
— Ouve, cigano! Sabes em que estou pensando?
— Se me disseres fico sabendo, — replicou o cigano, cheio de raiva.
— É minha intenção, — continuou o menino — dar-te uma destas sacas de dinheiro. Penso que três é muito para mim.
Ouvindo isto, o cigano ficou mais amável e refletiu consigo mesmo: “Agora, é diferente. Primeiro ele tinha três sacas e eu nenhuma. Visto que já tenha uma, acho melhor poupa-lo desta vez e não lhe fazer mal por enquanto”.
O filho do Conde sabia o que se estava passando no espírito do cocheiro.
E assim decorreram os dias, foram-se os meses sucedendo... e os anos vieram, lentamente.
Durante todo esse tempo, o cigano foi tratado dos cavalos e servido o seu patrãzinho. Por fim tornou a ficar aborrecido, e murmurou: “Não! Não me serve de nada ter uma bolsa cheia de ouro, pois ainda estou sob as ordens deste pequeno de quinze anos. Eu, um velho, — e ele, uma criança! por que devo eu tratar dos cavalos? Por que devo eu ir sempre ao mercado e trabalhar? Não seria muito melhor para mim viajar confortavelmente sentado no carro, dando-lhe cocorotes na cabeça quando ele não andasse direito? Esperarei a próxima oportunidade e ajustarei contas com ele. Vou por fim a tudo isto!”.
O rapaz, que ainda possuía a pena mágica, viu logo o que o cigano estava pensando e, amedrontado, disse-lhe:
— Sabe qual é a minha idéia?
— Se me disseres ficarei sabendo, — rosnou o cigano, chio de mau-humor.
— Estou pensando, — continuou o rapaz, — que como tu és velho e eu sou por assim dizer uma criança, talvez fosse melhor eu tratar-te por “senhor” e tratares-me por tu, sem cerimônia. Além disso, acho preferível que fiques com duas bolsas de ouro e viajes confortavelmente sentado no carro. Quanto aos cavalosontas com ele. vou lmente sentado no carro, dando-lhe cocorotes na cabeça quando ele natessem, que o c, tratarei deles, porque está ficando cansado e eu estou ficando cada vez maior e mais forte.
— Boas palavras, — replicou o cigano, louco de alegria. Isso agra-me muito.
Daí por diante o rapazinho ficou sendo o cocheiro e o cigano passou a sentar-se no carro, como senhor, ordenando isto e aquilo, tal como fazem os patrões.
Viajando durante mais ano e meio, chegaram a um reino distante, — um império.
Apresentaram-se imediatamente ao Imperador, a fim de lhe pedir licença para entrar no país e rogar-lhe, ao mesmo tempo, que lhes desse emprego na Corte.
Quando o Imperador viu o jovem, falando tão bem e olhando com tão lindos olhos, tomou-se de afeição por ele e guardou-o ao seu lado com a intenção de o considerar como filho, pois que não tinha nenhum. Possuía uma filha formosíssima, porém, com medo de que ela fosse roubada por um poderoso dragão que então havia, chamado Zemeu, conservava-a fechada na torre de um grande castelo.
Mandou que o cigano fosse para as cavalariças tratar dos cavalos. Assim deixou ele de ser patrão e de dar ordens. Tinha muito que fazer na estrebaria, enquanto que o moço vivia na Corte rodeado de sábios, levando uma vida melhor e mais feliz do que levava em casa de seu pai.
Quando o cigano viu que ele estava de novo reduzido à posição de moço de estrebaria, enquanto que o filho do Conde, protegido pelo monarca, levava uma existência de príncipe, quase enlouqueceu de desespero e de inveja.
— Oh! Doido que fui! — murmurou. Bem que eu deveria de ter matado este guri. Doido que fui! Ainda assim, não perdi as esperanças. Vou-me vingar! Vou dizer ao Imperador que ele se gabou de ser capaz de roubar o cavalo de Zemeu!
Se bem o disse, o melhor o fez. Um dia, qunado o Imperador passava pelas cavalariças, saiu ao seu encontro e, fazendo uma grande mesura, assim falou:
— Poderoso monarca! Sabeis porventura de que feito se gabou perante mim o meu jovem companheiro de antigamente?
— De qual foi!
— Garantiu que, se Vossa Majestade quisesse, iria tirar do Zemeu o cavalo com que ele intenta roubar vossa única filha.
E balbuciou a sós consigo: “Agora é que eu vou ver se ele continuará a ser tão feliz como dantes...”
Admirou-se o monarca do que o cigano lhe contara, pois nunca supusera que o moço fosse capaz de semelhante proeza ou de semelhante basófia.
A muitos valentes cavaleiros pedira ele que empreendessem tal ação, mas todos se haviam escusado, mesmo prometendo o imperador a mão de sua filha e além disso metade do reino a quem se saísse bem do comedimento.
Logo que chegou ao palácio, mandou chamar o moço e perguntou-se se tinha dito alguma coisa ao cigano acerca do roubo do cavalo de Zemeu.
— Não senhor. Não disse nada! Nunca tal coisa me passou pela cabeça.
O imperador, porém, não se conformou com a negativa, e intimou-o a que cumprisse a sua palavra.
— Tens de trazer-me o cavalo do Zemeu. Senão, tua cabeça rolará onde teus pés pousam agora.
Ao ouvir tão severa sentença, o moço — coitado! — lamentou-se, e com razão...
— Pobre de mim! Que hei de fazer? para onde hei de ir? Que meios possuo eu para ser bem sucedido?
Não sabendo para onde seguir, afastou-se do palácio e foi andando atoa pelas ruas afora, até que, deixando atrás de si o povoado, se embrenhou numa densa floresta.
Doíam-lhe os pés e estava grandemente cansado. Pensou em deitar-se e passar ali a noite, mas teve medo dos animais ferozes, que o despedaçariam sem piedade se o visse. No entanto, apesar do medo e da fadiga sentou-se num tronco tombado e principio a lastimar-se dizendo:
— Infeliz que sou! Quantas desgraças se desencadeiam sobre mim! Oxalá nunca eu tivesse soltado aquele pássaro, pois desde então é que os meus sofrimentos se sucedem!
Enquanto assim se lamentava, lembrou-se do prometimento da ave: “Se algum dia tiveres grandes contrariedades e precisares de auxílio, pensa em mim que te ajudarei!” Tão depressa lhe acudiram estas palavras ao espírito, como logo — plaf! — surgiu ao seu lado o Cavaleiro das Flores.
— Que tens, amigo? Por que te lamentas?
— Como não hei de lamentar-me, ó Cavaleiro das Flores! Se me encontro diante de uma dificuldade invencível?
E contou-lhe tudo o que lhe ocorrera desde que saíra da casa de seu pai; o que sofrear com o cigano, e o que o imperador lhe mandara agora fazer.
— Não tenhas receio, bom moço! Basta apenas que sigas as minhas ordens para que tudo te saia bem.
Dizendo estas palavras, transformou-se o Cavaleiro numa ave, mandou-o montar em cima e sumiu-se voando no ar, até que chegou à casa das Filhas do Sol. Aí, mandou-o desmontar e esperar um pouco por ele.
Partiu então sozinho o Cavaleiro das Flores, com o intento de roubar o cavalo do Zemeu. Ora, o cavalo estava fechado dentro de uma estrebaria cercada de grandes muros, com janelas gradeadas e fortes, e ninguém lá podia entrar, porque o Zemeu tinha aporta guardada por terríveis serpentes voadoras e a chave escondida do lado de dentro, pendurada num gancho alto.
Quando a ave atingiu o fim da sua jornada, deu três cambalhotas e virou mosca. Pôde, assim, entrar pelo buraco da fechadura e esconder-se numa fendazinha da parede.
Veio o Zemeu, tratou do cavalo e, como fosse noite, saiu da estrebaria resolvido a ir-se deitar.
Logo que ele se deitou, saiu a mosca do buraquinho e, dando três cambalhotas, virou homem. dirigiu-se então ao animal e pôs-lhe a mão em cima.
Assim que o cavalo sentiu mão estranha pousar-lhe no pescoço, relinchou tão fortemente que as árvores da floresta balançaram a léguas de distância, e não só a estrebaria mas todo o palácio tremeu. Era assim que ele fazia quando estanhos lhe tocavam.
Assustado, o Zemeu acordou, acendeu a luz e foi ver quem tinha tocado no seu cavalo.
Contudo, entrando na estrebaria, não viu ninguém. O Cavaleiro das Flores tinha-se transformado em mosca e escondido bem para dentro do seu buraquinho.
O Dragão investigou minuciosamente todos os cantos, mas, não encontrando coisa alguma, admirou-se do acontecido e foi-se tranquilamente deitar. Mal, porém, tinha pegado no sono, pôs o Cavaleiro das Flores novamente a mão no cavalo. Desta vez ele relinchou mais fortemente ainda.
Levantou-se o Dragão de um salto e correu à estrebaria a ver o que sucedera. Não encontrou, todavia, ninguém, pois o Cavaleiro se virara em mosca e se escondera. Em vão remexeu, esquadrinhou tudo, não deixando nem uma palhinha no chão que não examinasse! Nada! Não viu nada!
Então, pensando que talvez não tivesse dado bastante comida ao animal e que por isso ele gritasse, encheu-se a manjedoura e foi-se embora.
Mais uma vez o Cavaleiro tocou no cavalo e mais uma vez ele relinchou, com violência ainda maior.
O pobre Dragão, que tinha justamente adormecido naquele momento, ergueu-se furiosíssimo e, pegando num chicote, de novo procurou por toda parte a ver se alguém entrara na estrebaria. Não encontrando ninguém, chicoteou desesperadamente o animal, praguejando e dizendo nomes feios, pois que ele o tinha três vezes perturbado inutilmente o seu sono.
— O Cavaleiro das Flores não está aqui (bramiu) para que tu faças tanto barulho!
O infeliz cavalo sofreu em silêncio aquela crueldade, mas disse de si para consigo: “Muito bem! Agora não vou mais fazer barulho. Venho quem vier, leve-me quem me levar, não perturbarei mais o sono de Zemeu”.
Ora, assim que Zemeu se foi embora, a mosca saiu do seu buraquinho, deu três cambalhotas, virou no Cavaleiro das Flores, e pos a mão no pescoço do animal, que, desta vez, não relinchou nem se mexeu. Então o Cavaleiro abriu a porta da estrebaria e, montando nele, levou-o ao seu jovem amigo, que o esperava em casa das Filhas do Sol, recomendando-lhe segurasse bem as rédeas a fim de o não deixar fugir, pois era um cavalo voador.
As Filhas do Sol, que tinham gostado muito do moço, deram-lhe uma linda coroa de ouro com a estrela da manhã no centro e outras estrelas em volta, para que a oferecesse à filha do imperador se acaso a pudesse chamar quando passasse pela torre do castelo onde estava presa.
Depois de se despedir de todos, o filho do Conde montou no cavalo e, num abrir e fechar de olhos, chegou perto da capital do Império.
Antes, porém, de chegar, a princesa chamou-o da torre do castelo em que se encontrava e pediu-lhe a coroa. O moço deu-lha, e levou ao imperador o cavalo de Zemeu.
Tão alegre ficou o soberano que o quis ter daí por diante ainda mais junto de si, e amou-o como até então o não amara.
E o cigano? Teve mais um cavalo para tratar na estrebaria. Com toda a sua intriga só ganhou mais trabalho e aborrecimento, enquanto que o moço cresceu no favor do monarca. Não havia, em toda a Corte, ninguém mais querido do que o jovem filho do conde, geralmente considerado como príncipe herdeiro do trono.
O cigano roia-se de inveja, andava doente de raiva. Dia e noite só pensava como livrar-se do moço, desgraçando-o. Por fim, veio-lhe na mente uma idéia. Pareceu-lhe melhor do que a anterior.
Uma tarde, quando o imperador passava junto da coudelaria, o intrigante adiantou-se e, curvando-se respeitosamente, proferiu as seguintes palavras:
— Glorioso monarca! Sabeis qual a nova basófia que o filho do conde proferiu diante de mim?
— Qual foi?
— Gabou-se de que, se Vossa Majestade quisesse, iria roubar a sela encantada do cavalo de Zemeu.
Depois de ter perdido o cavalo, o Zemeu vigiava a sela muito cuidadosamente, e não deixava, sob pretexto algum, que ninguém se chegasse junto a ela. Era uma sela maravilhosa, uma sela mágica. Transportava pelo ar, a pessoa que nela se sentasse, par o lugar de destino que porventura quisesse atingir.
De novo o imperador acreditou no cigano e, quando chegou ao palácio, disse ao filho do conde:
— Acabo de ter conhecimento do segundo feito de que secretamente te gabaste ao cigano. Garantiste-lhe que serias capaz de roubar a sela do Zemeu.
O moço negou, jurou que nunca tal coisa lhe passara pela cabeça, e afirmou que jamais falara nisso a ninguém.
Não quis, porém, o imperador escutá-lo e, erguendo severamente a voz, de novo declarou que, ou lhe traria a sela, ou a cabeça lhe rolaria naquele mesmo chão onde os seus pés se firmavam.
Que podia ele fazer? Deixou a Corte, afastou-se do povoado, e sentou-se a chorar no mesmo tronco tombado em que se sentara dantes.
— Ai de mim! Ai de mim! — dizia. Eis-me perdido desta vez. O Cavaleiro das Flores não estará certamente disposto a ajudar-me ainda, pois que já me ajudou da vez primeira.
Mas, ó maravilha! Logo que pensou no Cavaleiro das Flores, plaf! Ele surgiu imediatamente ao seu lado.
— Por que choras, bom amigo?
— Choro porque o imperador me intimou a trazer-lhe a sela encantada do Zemeu.
— Não te aflijas por tão pouco. Vou ajudar-te. Nunca me esquecerei da tua boa ação de outrora, dando-me liberdade. De resto, eu bem sei que sou o causador de tudo o que te tem sucedido, e estarei por isso sempre pronto a tirar-te das dificuldades em que te vejas.
Tal como da primeira vez, deu três cambalhotas, virou-se em pássaro, levou o moço a cavalo nas suas costas até a casa das Filhas do Sol, e foi sozinho roubar a sela do Zemeu. Enganou de novo o Dragão, trouxe consigo a sela, e deu-a ao seu jovem amigo para que ele a levasse ao imperador.
As Filhas do Sol ofereceram-lhe desta vez uma coroa ainda mais linda do que a primeira, com a lua ao centro ladeada pelas estrelas da tarde e da manhã, e em volta outras estrelas menores.
— Se vires a princesa e se ela te pedir esta cora, da-lha com um sorriso.
Logo que montou na sela, o moço voou para a Corte do imperador. Passando perto da torre do castelo onde estava a princesa, ela pediu-lhe a coroa, e ele deu-lha, sorrindo, conforme lhe ordenaram as boas Filhas do Sol. Depois entrou no palácio e, ajoelhando-se diante do imperador, apresentou-lhe a sela encantada.
Louco de alegria ao possuir aquela preciosidade, o imperador tornou-se ainda mais afetuoso para o filho do conde. Todos o amavam. Só o cigano se sentiu arder de raiva ao saber de tamanho sucesso. Passou dias e dias pensando como arranjar para ele um trabalho ainda maior, pois não podia levar a bem que o seu serviço aumentasse de cada vez mais, e crescesse de cada vez mais a felicidade do seu antigo companheiro de jornada
Até que, finalmente, inventou uma grande mentira! Deliberou dizer ao imperador que o jovem se tinha gabado de ser capaz de prender o Zemeu! Julgava que de tal empresa ele não voltaria nunca, pois ninguém seria capaz de capturar o Dragão. Era coisa muito diferente roubar um cavalo ou uma sela encantada.
Uma tarde, portanto, quando o imperador foi à estrebaria ver os cavalos, ele curvou-se numa grande reverência, e disse:
— Magnânimo senhor! Não podeis sequer imaginar como aquele filho do conde é gabarola. Afirmou-me que, se Vossa Majestade o mandasse, iria prender o Zemeu e o traria vivo ou morto.
Como das vezes anteriores, o imperador acreditou no cigano e pensou: “Capturado o Zemeu, não haverá mais necessidade de minha filha permanecer na torre do castelo, e não mais recearei perde-la. Ficará livre, e viverá como as outras mulheres”.
Assim conjeturando, chamou o rapaz e disse-lhe:
— Ordeno-te que partas e me tragas o Zemeu prisioneiro ou morto. Se o não trouxeres, tua cabeça rolará no chão onde tens os pés. Gabaste-te ao cigano que serias capaz de tal empresa.
Debalde o rapaz protestou a sua inocência e jurou que o cigano só contava mentiras, mas nada lhe valeu e teve de obedecer às ordens do imperador.
— Agora, — pensou — cheguei ao termo dos meus dias. Pude escapar das duas primeiras vezes, mas desta não escaparei. O imperador ordenou-me o impossível! Quem é capaz de realizar impossíveis?
Assim, com uma grande tristeza no coração, afastou-se do povoado e entrou na floresta. Quando chegou junto ao tronco tombado, sentou-se um momento e principiou a pensar no Cavaleiro das Flores. Imediatamente, — plaf! Ele surgiu ao seu lado e perguntou:
— Que te afliges, meu bom amigo? Por que estás tão triste?
— Porque o Imperador me mandou prender o Zemeu e trazer-lho vivo ou morto. Se eu não fizer isso, minha cabeça rolará no chão em que meus pés estiverem pousados.
— Hum! — replicou o cavaleiro. A empresa agora é bem mais difícil do que as outras duas. Mas, ainda assim, vamos tentar realiza-la.
Dando então três cambalhotas, virou-se em pássaro e levou-o como das outras vezes para casa das Filhas do Sol, dizendo-lhe ao despedir-se:
— Espere aí até que eu volte.
Voou em seguida para uma floresta contígua à habitação do Zemeu, dando três cambalhotas, transformou-se num velho anão semelhante a um duende. Empunhando então um grande machado, começou a derrubar árvores sobre árvores, que caiam causando estrondo enorme.
Ao ouvir esse barulho veio o Zemeu ver o que era e, encontrando aquele velho, perguntou-lhe o que fazia ali.a.
— Estou derrubando árvores para ver quais as mais fortes. Quero uma jaula muito sólida para encarcerar o Cavaleiro das Flores, pois ele pregou-me uma partida.
— Excelente idéia, — aprovou o Zemeu. Também estou muito zangado com ele; roubou-me o meu cavalo e a minha sela encantada sem que eu lhe pudesse fazer coisa alguma. Ah! Muito desejaria agarra-lo para ajustar velhas contas... você é camarada! Eu o ajudarei no que puder. Venha comigo e lhe darei traves grossas de madeira bem forte e barras de ferro próprias par construir uma prisão que ninguém poderá arrombar!
A este discurso o velho anão pareceu ficar muito contente, e declarou que tal auxílio iria facilitar muito o seu trabalho. Acompanhou o Zemeu até a casa dele, e principiou a construir uma jaula toda cercada de barras de ferro. Quando acabou, disse ao Dragão:
— Não sei se estará suficientemente sólida para o Cavaleiro das Flores, pois ele é tão forte, tão forte, que poderá ergue-la até as nuvens e depois deixar-se cair dentro dela, fazenrias par constrruir uma prissas de madeira bem forte e barras de ferro pr .
do-a assim em pedaços. Também não sei se estará suficientemente vedada. Pois por onde passar um raio de luz ele poderá passar também. Ora, como você é ainda mais forte do que o Cavaleiro das Flores, peço-lhe que entre nesta jaula e veja se está boa. Vou fecha-la toda, e você depois me dirá se a acha bem vedada. Em seguida, — se me quiser fazer esse favor, — suba às nuvens e deixe-se cair dentro dela a ver se ela se parte em estilhas ou não.
Muito contente ficou o Zemeu com semelhante proposta! Entrou logo sem esperar mais nada, a dançar de satisfação, e o velho perguntou-lhe se, porventura, havia dentro alguma réstea de luz. Como por entre algumas pranchas de madeira se coasse uma tênue claridade, o velho tapou tudo muito bem e pediu ao Zemeu que subisse às nuvens e se atirasse com toda força ao chão, dentro da jaula.
Ele subiu tão alto, tão alto, que só caiu no fim do dia seguinte. Despregaram-se cinco arcos de ferro com a violência do choque.
O velho pôs cinco arcos novos e o Zemeu, depois de verificar que não entrava luz nenhuma lá dentro, subiu de novo tão alto que só caiu no fim do terceiro dia. Despregaram-se, na queda, apenas dois arcos de ferro.
Mais uma vez o anão consertou tudo muito direito, reforçou todos os arcos, vedou todas as frestas, e pediu ao Zemeu que subisse dentro da jaula.
O Zemeu subiu, subiu, subiu, e foi tão alto que só ao fim de uma semana é que caiu no chão, — não se tendo despregado coisa alguma nem partido uma só tábua na queda.
— Vê-se alguma luz aí de dentro?
— Não! — respondeu o Zemeu. Abre depressa q porta que eu quero sair. Estou quase morrendo asfixiado!
— Acho bom que você não saia mais daí. É o que talvez convenha melhor à sua saúde. Ah! Ah! Ah! Fique sabendo que eu não sou outro senão o Cavaleiro das Flores.
O Zemeu estourou de raiva. Morreu, vendo que tinha sido tão estúpido que ajudara a fazer a sua própria prisão e nela por sua livre vontade se metera.
O Cavaleiro pegou a jaula e carregou-a para casa das Filhas do Sol, entregando-a ali ao seu protegido e amigo. Nesse meio tempo elas tinham preparado uma coroa ainda mais linda do que as duas primeiras, com o só em cima, a lua na frente, ladeada pelas estrelas da tarde e da manhã, em volta outras estrelas menores cintilando. Recomendaram-lhe que a oferecesse à Princesa, mas somente se ela a pedisse.
O jovem agradeceu muito às Filhas do Sol todas as suas gentilezas, beijou a mão do Cavaleiro das Flores que tão bem o tinha ajudado, e partiu levando o cadáver do Zemeu para a Corte Imperial. Ao passar pela torre do Castelo onde a Princesa se encontrava, ela pediu-lhe aquela coroa tão rica. O jovem deu-lhe de muito boa mente, e depois entrou no palácio, apresentando ao Imperador o corpo inanimado do Zemeu.
Ah! O soberano ficou satisfeitíssimo ao ver que estava morto o seu pior inimigo. Mais ainda, ao ver que devia a liberdade de sua filha a um jovem tão formoso e tão inteligente.
Planejou imediatamente casa-los.
Quando soube de tal projeto, a princesa alegrou-se em extremo e foi mostrar a seu pai as três lindíssimas coroas que o filho do conde lhe tinha dado. O imperador maravilhou-se vendo jóias tão belas. Ofereceu ao moço metade do reino e mandou celebrar com toda a pompa o casamento dele com sua filha única.
Eu fui lá, e por sinal que se deu comigo um incidente muito engraçado. Estava comendo furiosamente, cheio de fome, e tinha na boca um pequeno osso de pato, — quando de repente todos os convivas se ergueram para fazer uma saúde aos noivos. Levei às pressas a minha taça aos lábios e bebi um gole de champanha: o osso desceu para a garganta e fiquei até hoje com ele um pouco saliente, a meio do pescoço.
Os meninos reparem, que a todos os homens grandes do seu conhecimento aconteceu também algum caso semelhante, pois todos têm, mais ou mnos saliente, um pequeno osso de pato no mesmo lugar que eu.
Em castigo de todas as partidas pregadas pelo cigano ao marido de sua filha, e das ameaças que o malvado outrora lhe tinha feito quando viajavam juntos, o imperador ordenou que o despedaçassem amarrando-lhe pés e mãos às caudas de quatro cavalos bravos.
Um dia lembrou-se o jovem que, segundo a sentença proferida pelo velho na grande reunião de sábios havia em casa de seus pais, ele poderia livremente regressar quando levasse consigo o pássaro maravilhoso.
Deliberou então ir com sua mulher visitar o palácio em que nascera. Pegou em três bolsas de dinheiro, atrelou dois cavalos no mesmo carro em que tinha viajado antigamente, e foi. O velho conde e a velha condessa quase desmaiaram de alegria vendo o filho amado de regresso. O pássaro maravilhoso apareceu um instante junto do conde e logo subiu voando ao céu.
Não se imagina o prazer que os dois velhos sentiram ao saber o seu filho casado com a filha do imperador, que era nesse tempo o maior soberano do mundo.
O moço levou seus pais consigo para o palácio imperial, e viveram todos muitos felizes, muito felizes. Eu não sei bem se ainda estão vivos, porque não tomei ultimamente informações a esse respeito. Há dois anos, porém, ainda estavam, — e quando na minha viagem para o País das Fadas eu os fui cumprimentar, deram-me uma caneta de presente. Com ela, meus meninos, é que eu escrevi esta história para vocês lerem.


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