terça-feira, 15 de abril de 2014

o contrato social


ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. Tradução de Antônio P. Machado; estudo crítico de Afonso Bertagnoli: 17 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
Livro da biblioteca municipal de Capinópolis, nº1290. livro lido em 2007, cujas anotações foram encontradas em 2009 juntamente a anotações de outros títulos.

Índice
A doutrina política de Rousseau

Livro primeiro
Assunto deste primeiro livro
Sociedades primitivas
O direito do mais forte
Da escravidão
De como se torna necessário remontar-se a uma primeira convenção
Do pacto social
Do soberano
Do estado civil


Livro segundo
A soberania é inalienável
A soberania é indivisível
Se a vontade geral pode errar
Limites do poder soberano
Do direito de vida e morte
Da lei
Do legislador
Do povo
Continuação do capítulo anterior
Continuação do capitulo precedente
Diversos sistemas de legislação
Divisão das leis

Livro terceiro
Do governo geral
Do principio que constitui as diversas formas de governo
Divisão dos governos
Da democracia
Da aristocracia
Da monarquia
Dos governos mistos
Qualquer forma de governo não pé própria para cada país
Caracteres de um bom governo
Do abuso do governo e a sua propensão à degeneração
Da morte do corpo político
Como se mantém a autoridade soberana
Continuação
Continuação
Dos deputados ou representantes
A instituição do governo não é um contrato

Da instituição do governo
Meios de prever as usurpações do governo

Livro quarto

A vontade geral é indestrutível
Dos sufrágios
Das eleições
Dos comícios romanos
Do tribunado
Da ditadura
Da censura
Da religião civil
Conclusão


25
Nascido cidadão de um estado livre, e membro da soberania do mesmo, qualquer que seja a débil influência que possa ter minha ingerência nos negócios públicos, o direito de votar basta para impor-me o dever de instruir-me nesses assuntos, feliz, sempre que medito acerca dos governos, de encontrar em minhas indagações novos motivos para amar o meu país.

25
O homem nasceu livre, e não obstante, está acorrentado em toda a parte. Julga-se senhor (p.26) dos demais seres sem deixar de ser tão escravo como eles.

26
A mais antiga de todas as sociedades e a única natural, é a família. Os filhos, entretanto, não estão ligados ao pai senão o tempo que necessitam dele para a sua conservação assim que cessa esta necessidade, o liame natural desata-se.
Os filhos, isentos da obediência que devem ao pai, isento este dos cuidados que deve aos filhos, entram todos igualmente em independência. Se continuam unidos, não é natural, senão voluntariamente, e a própria família não se sustem senão por convenção.

27
Assim como um pastor é de natureza superior à do seu rebanho, os pastores de homens, seus chefes, são também de natureza superior á de seus povos.

27
Aristóteles, antes deles ( Calígula, Hobbes e Grocio), dissera que os homens não são naturalmente iguais, mas que uns nascem para a escravidão e outros para o domínio. Aristóteles tinha razão, porém tomava o efeito como causa. Todo homem nascido na escravidão fica escravo, nada mais certo. Os escravos perdem tudo sob o jugo de seus grilhões, até o desejo de rompe-los. amam sua servidão como os companheiros de Ulisses amavam seu próprio embrutecimento. Se existem, pois escravos por natureza, é porque os há contra a natureza. A força fez os primeiros escravos, sua covardia os perpetuou.

28
O mais forte nunca o é bastante para ser sempre o amo, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever. Daí, o direito do mais forte, direito tomado ironicamente em aparência, e realmente estabelecido em principio. Entretanto, jamais se nos explicará esta palavra? A força é um poder físico; não vejo que moralidade pode resultar dos seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade, é, entretanto, um ato de prudência.

29
Convenhamos, pois, em que a força não constitui um direito e que não somos obrigados a obedecer senão aos poderes legítimos.

29
Posto que nenhum homem tem autoridade sobre seus semelhantes, e desde que a força não produz direito, ficam as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens.

30
Alienar é dar ou vender. M homem que se faz escravo de outro não se dá, vende-se, pelo menos para a sua subsistência: mas um povo, por que se vende?

30
Dizer que um homem se entrega gratuitamente é dizer coisa absurda e inconcebível. Tal ato é ilegítimo e nulo somente pelo fato de que aquele que o realiza não está de juízo perfeito. Dizer o mesmo de todo um povo, é supô-lo composto de mentecaptos, e a loucura não constitui direito.
Mesmo quando cada um de nós pudesse alienar-se, não poderia alienar seus filhos: eles nascem homens e livres, sua liberdade lhes pertence e ninguém ,senão eles , pode dispor dela. Antes de chegar à idade da razão, o pai pode, em seu nome, estipular as condições de sua conservação, do seu bem-estar, porém, não dá-los irrevogável e incondicionalmente, porque um dom semelhante contraria os fins da natureza e sobrepuja os limites da finalidade paternal. Seria, pois, preciso para que um governo arbitrário fosse legítimo, que, em cada geração o povo fosse dono de aceita-lo ou de rejeita-lo; porém, então o governo não seria arbitrário.
Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem , aos direitos de humanidade e (p.31) mesmo aos próprios deveres, não há indenização possível para aqueles que renuncia a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza do homem, é privar de toda moralidade os próprios atos de liberdade a vontade. Enfim, é uma convenção vã e contraditória estipular por um lado uma autoridade absoluta, doutro, uma obediência sem limites.

31
A guerra privada, ou de homem para homem, não pode existir, nem no estado natural, em que não propriedade constante, nem no estado social, em que tudo está debaixo da autoridade das leis.
Os combates particulares, os duelos, as pendências, são atos que não constituem um estado. E à semelhança das guerras privadas, autorizadas por Luis IX, rei da França, e suspensas pela paz de Deus, são abusos do poder feudal, sistema absurdo, se de fato algum existiu, contrário aos princípios do direito natural e a toda boa política.

32
Sendo o fim da guerra a destruição do estado inimigo, tem-se o direito de matar os defensores quando estejam de armas na mão, porém, uma vez elas entregues e eles rendidos, deixam de ser adversários e instrumentos do inimigo, transformando-se simplesmente em homens sobre cuja vida não há direito algum. Ás vezes pode ferir-se mortalmente ao estado sem ferir a um só de seus membros.

33
Assim, de qualquer lado que se considerem as coisas, direito de escravidão é nulo, não somente porque é ilegítimo, senão porque é absurdo e nada significa. As palavras escravatura e direito são contraditórias, e, por conseguinte, excluem-se mutuamente. Que seja de um homem a outro homem quer haja de um homem a um povo, este raciocínio será sempre igualmente insensato: “Estabeleço contigo uma convenção, toda a teu cargo e tudo em meu proveito, que observarei durante o tempo que me aprouver, enquanto tu o cumprirás durante o temo que me convier.”

35
Pois bem, como os homens não podem engendrar novas forças, senão somente unir e dirigir as existentes, não têm outro recurso para sua conservação além de formar por agregação de uma soma de forças que possa sobrepujar a resistência, pô-las em jogo para um só móvel e faze-las agir conjuntamente.
Esta soma de força não pode nascer senão do concurso de muitas; porém, sendo a força e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação, com poderá combina-las sem destruí-las e sem esquecer os seu cuidados? Essa dificuldade pode enunciar-se nestes termos:
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associação de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes.” Tal é o problema fundamental que o Contrato Social soluciona.

36
Submetendo-se cada um a todos, não se submete a ninguém em particular, e como não há um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se cede sobre si próprio,ganha-se a equivalência de tudo o que se perde e maior força para conservar a que possui.

36
Naquele instante, no lugar da pessoa particular de cada contratante este ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros como a assembléia de votantes, o qual recebe deste mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Esta pessoa pública que se forma assim pela união de todas as outras, recebeu antes o nome de cidade e agora recebe o de república ou de corpo político, chamado por seus membros Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo, poder, comparando-o com seus semelhantes. Porém estes termos se confundem frequentemente e tomam-se uns pelos outros. Basta saber distinguir quando são empregados em sua verdadeira acepção.

39
A transição do estado natural ao civil produz no homem mudança notável, substituindo em sua conduta a justiça do instinto e dando aos seus atos a moralidade de que antes careciam. Somente então, substituindo a voz do dever ao impulso físico e o direito do apetite, o homem que, até tal ponto, não observava senão a si mesmo, vê-se obrigado a agir, tendo em conta outros princípios e a consultar sua razão antes de atender a caprichos.

39
Limitemos tudo isso a termo fáceis de comparar. O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que lhe diz respeito e pode alcançar. O que ele ganha, é a liberdade civil e propriedade de tudo o que possui. Para compreender bem estas compensações, é necessário distinguir a liberdade natural, que não tem outros limites a não ser as forças individuais, da liberdade civil, limitada esta pela vontade geral, e aposse, conseqüência unicamente da força ou direito do primeiro ocupante, da propriedade que só pode fundamentar-se num título positivo.

39
Poder-se-á, sobre o que precede, acrescentar ao que se adquire com o estado civil, a liberdade moral, que faz o homem verdadeiramente dono de si próprio, porque o impulso dos apetites é a escravidão e a obediência à lei que a cada um de nós se prescreve constitui a liberdade.

44
Os charlatães (p.45) do Japão , afirma-se, decepam uma criança à vista dos espectadores, em vários pedaços, e depois, atirando ao ar um a um, todos os membros, fazem voltar à criança, viva e inteira. Tais são aproximadamente os jogos mágicos de nossos políticos depois de terem desmembrado o corpo social por um artimanha digna de um circo: juntam as peças sem sabermos como.

46
Há às vezes diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta atende só ao interesse comum, enquanto a outra olha o interesse privado, e não é senão uma soma de vontades particulares. Porém, tirando estas mesmas vontades que se destroem entre si, resta para soma dessas diferenças a vontade geral.

48
Todos os serviços que um cidadão pode prestar ao estado, deve presta-lo imediatamente que o soberano lhos exigir, porém, o soberano, por sua vez, não pode sobrecarregar os cidadãos de coisas inúteis à comunidade, tampouco pode exigi-las: porque nada se faz sem causa, tanto sob a lei da razão como sob a da natureza.
Os compromissos que nos unem ao corpo social, não são obrigatórios, senão enquanto são mútuos, e sua natureza é tal que, respeitando-os, não se pode trabalhar para outro sem trabalhar para si.

50
Admitidas estas diferenças, é tão inexato que no contrato social exista, por parte dos particulares, alguma renúncia verdadeira, que são situação, por efeito deste contrato, é realmente preferível à anterior, e que em lugar de uma alienação, realizou uma mudança vantajosa de uma situação incerta e precária, por outra melhor e mais segura: da independência natural, para a liberdade, do poder de prejudicar ao próximo, para o da própria segurança, e de sua força, que outros poderiam sobrepujar, para um direito que a união social torna invencível. A sua própria vida, que se ofereceu ao estado, é por este continuamente protegida, e quando a expõe em sua defesa, que se faz senão devolver-lhe o que dele recebeu?

51
O contrato social tem por fim a conservação dos contratantes. Quem deseja o fim quer os meios, e estes meios são inseparáveis de alguns riscos e ainda de algumas perdas. Quem quer conservar sua vida, a expensas da dos outros, deve também “da-la” por eles, quando for preciso. O cidadão não é juiz do perigo a que a lei o obriga a se expor, e quando o príncipe lhe disse: “Convém ao estado que tu morras”, deve morrer, posto que com esta condição viveu em segurança até então, e sua vida é somente um benefício da natureza, senão um dom condicional do estado.

52
Por outro lado, todo malfeitor, atacado o direito social, converte-se pelas suas façanhas em rebelde e traidor da pátria, cessa de ser membro dela ao viciar suas leis ao fazer-lhe guerra. Então, a conservação do estado é incompatível com a sua. É preciso que um dos dois pereça, e quando se faz perecer ao culpado, pé menos como cidadão que como inimigo. O processo, o julgamento, são as provas do rompimento do laço social, e por conseguinte, de que não é membro do estado.

52
Poder-se-à todavia argumentar que a condenação de um criminoso é um ato particular. De acordo. Tampouco esta condenação emana de soberano. É este um direito que ele pode conceder sem poder exercê-lo pessoalmente. Tenho dispostas em ordem todas as minhas idéias, porém, eu não poderia expô-las a um só tempo.
Entretanto, a freqüência dos suplícios é sempre demonstração de fraqueza ou de preguiça no governo: não há malvado que não tenha algo de bom. Não há outro direito para matá-lo, mesmo como exemplo, senão o perigo existente conservando-o vivo.




53
Os constantes perdões anunciam que logo os delitos se tornarão impunes e mais freqüentes. Mas sinto que meu coração estremece, que minha pena se detém. Deixemos a discussão destas questões ao homem justo que nunca pecou e que jamais necessita do perdão.

53
São, pois, necessárias convenções e leis para unir os direitos aos deveres e dirigir a justiça ao seu fim. No estado natural, em que tudo é comum, nada devo aos que nada prometi, e não reconheço como dos outros senão o que me é inútil. Não acontece isto no estado civil, no qual os direitos são fixados pela lei.

54
Eu já disse que não existe vontade geral sobre um ponto particular. De fato, este objeto particular está no estado ou fora dele: uma vontade estranha não é geral em relação a ele, e se este objeto se enquadra no estado, forma parte dele. Então há entre o todo e a parte uma relação que faz deles dois seres separados, dos quais a parte um, o outro é tudo, menos esta parte. Porém, o todo, menos um parte não é o tudo, e enquanto isso subsistir, não existe o todo, senão duas partes desiguais: donde se deduz que a vontade de uma não é geral com referência à outra.

55
Vê-se, ademais, que, reunindo à lei a universalidade da vontade e a do objeto, o que um homem, seja qual for, ordena por sim, não é uma lei. O que ordena o soberano sobre um objeto particular, tampouco é uma lei, senão um decreto, nem um ato de soberania, senão de magistratura.

55
As leis não são propriamente senão as condições de associação civil. O povo submetido às leis deve ser o autor das mesmas, pois somente aos associados compete regulamentar as condições da sociedade. Porém como a regulamentarão? Será de comum acordo ou por inspiração súbita? O corpo político possui um órgão para enunciar suas vontades? Quem lhe proporcionará a previsão necessária para formar-lhe os atos e expô-los no momento preciso? Como um cega multidão que frequentemente ignora o que quer, porque raramente sabe o que é bom, levará a bom termo por si mesma uma empresa tão grande e difícil como é um sistema legislativo? O povo, por sua vez, quer sempre o bem, mas nem sempre o reconhece. A vontade geral é reta, porém, o juízo que a guia nem sempre é claro. Necessário é fazer ver ao povo os objetos tais como eles são, e algumas vezes, como lhes devem aparecer: ensinar-lhe o bom caminho que procura, preserva-lo da sedução das vontades particulares, relacionar antes os seus olhos os lugares e os tempos, contrabalançar o atrativo das vantagens (p.56) presentes e sensíveis com o perigo dos males ocultos e longínquos. Os particulares desejam o bem que desprezam, o povo quer aquele que não vê. Todos necessitam igualmente de guias. Necessário é obrigar a uns a conformar sua vontade com a razão. Necessário é, também, ensinar ao povo a conhecer o que deseja. Então, das públicas luminárias resulta a união do entendimento e da vontade no corpo social, por isso o exato concurso das partes, e, finalmente, a maior força do tudo. Vede, pois, donde nasce a necessidade de um legislador.

56
O mesmo raciocínio que fazia Calígula em relação ao fato, fazia-o Platão com referencia ao direito, para definir o homem civil ou real, que ele procura em seu livro “Do Reino”. Porém, se é certo que um grande príncipe é raríssimo, como não há de sê-lo um grande legislador? O primeiro não tem mais que seguir o modelo que o segundo deve propor. Este é o mecânico que inventa a máquina, aquele é somente o operário que a faz funcionar. “Na origem das sociedades”, desse Montesquieu, “os chefes da República fazem a instituição, depois, é a instituição que forma os chefes das repúblicas.”



60
Mil nações brilharam na Terra que não poderiam suporta boas leis, e mesmo as que o pudessem não as possuíram senão durante curto espaço de tempo. Os povos, como os homens, somente são dóceis quando jovens, à medida que envelhecem tornam-se incorrigíveis. Uma vez estabelecidos os costumes e arraigados os preconceitos, resulta empresa perigosa e vá querer reformá-los. O povo não pode suportar que alguém mexa em seus próprios males para destruí-los, como esses doentes sem coragem que tremem à simples presença do médico.

61
Povos livres, lembrai-vos desta máxima: “Pode adquirir-se a liberdade, porém nunca recupera-la.” A juventude não é a infância.

67
Se indagarmos em que consiste precisamente o maior bem de todos, que deve ser o fim de todo sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais: liberdade e igualdade. A liberdade, porque toda dependência particular é outro tanto de força tirada ao corpo do estado; a igualdade, porque a liberdade não pode existir sem ela.
Já disse o que é a liberdade civil; a respeito da igualdade, não se deve entender nessa palavra que os graus de poder e riqueza seja absolutamente os mesmos, mas sim que, quanto ao poder, esteja por cima de toda violência e não se exercite senão em virtude das leis, e, quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja bastante opulento para poder comprar a outro, e nenhum tão paupérrimo para necessitar vender-se, o que supõe , por parte dos grandes moderação de bens e de crédito; dos pequenos moderação de ânsia e cobiça.

68
Por exemplo: será o terreno ingrato e estéril, ou o país muito pequeno para os habitantes? Industrializai o país, desenvolvendo as artes e trocando os produtos pelos frutos que vos faltam.
Pelo contrário, o terreno é fértil e rico? Tendo um bom terreno, necessitais habitantes? Prestai, então, todos vossos cuidados à agricultura, que multiplica os homens e esquecei as artes, que não farão senão terminar despovoando o país, agrupando sob alguns pontos do território a maior parte dos habitantes que encerra. Viveis em extensas e cômodas costas? Enchei o mar de barcos, desenvolvei o comércio e a navegação: gozareis assim de uma existência brilhante e fácil. Banha o mar, tão-somente rochedos inacessíveis? Conservai-vos na barbárie e ictiófagos, e assim vivereis mais sossegados, melhor talvez e com certeza mais felizes. Numa palavra, além, das máximas comuns a todos, cada povo encerra em si alguma coisa que o impele de uma maneira particular e torna-o apropriado à sua legislação. Por isso, antigamente, os hebreus, e recentemente os árabes, têm tido, como objeto principal, a religião. Os atenienses, as letras; Catargo e Tiro, o comércio; Rodes, a marinha; Esparta, a guerra, e, finalmente, Roma, a virtude. O autor do “Espírito das Leis(Montesquieu — Do espírito das leis) demonstrou com muitos exemplos, o meio pelo qual cada legislador dirige a instituição para um determinado fim.

72
Que é, pois, governo? Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da conservação da liberdade, tanto civil como política.
Os membros deste corpo chamam-se magistrados, ou reis, isto é, governantes, ao corpo inteiro se denomina príncipe.

72
Chamo, pois governo ou suprema administração, ao exercício legítimo do poder executivo; e príncipe ou magistrado, ao homem ou ao corpo encarregado dessa administração.



74
Quanto menos se relacionam as vontades particulares à vontade geral, isto é, os costumes às leis, mais a força repressora deve aumentar. O governo, pois, para ser bom, deve ser relativamente mais forte à medida que o povo se torna mais numeroso.

77
Podemos distinguir na pessoa do magistrado três vontades essencialmente diferentes. Primeiramente, a vontade comum dos magistrados, que se orienta unicamente em proveito do príncipe, e que podemos chama-la vontade do corpo, a qual é geral respeito ao governo, e particular respeito ao estado, do qual o governo forma parte. Em terceiro lugar, a vontade soberana do povo, ou a vontade soberana, que é geral, tanto com referência ao estado considerado como todo, como em relação ao governo considerado como parte do todo.

79
Acabo de demonstrar que o governo se debilita à medida que os magistrados se multiplicam, e demonstrei anteriormente que quanto mais o povo é numeroso deve aumentar-se também a força repressiva: donde se segue que a relação dos magistrados ao governo, deve ser inversa da dos súditos ao soberano. Quer dizer que o governo deve comprimir-se quando o estado se engrandece, de tal modo que o número de chefes diminua na proporção do aumento da população.

79
O soberano pode, em primeiro lugar, incumbir do governo a todo o povo ou à maior parte dele, de tal forma que existam mais cidadãos magistrados do que particulares. Dá-se a esta forma de governo a denominação de democracia.
Pode ficar limitado o governo nas mãos de poucos, de forma que existam mais simples cidadãos (p.80) do que magistrados, e esta forma de governo denomina-se aristocracia.
(p.80) Finalmente, pode ficar concentrado o governo nas mãos de um único magistrado, do qual recebem o poder todos os outros. Esta forma de governo é a mais comum e denomina-se monarquia ou governo real.

81
Não é producente que aquele que faz as leis as execute nem que o corpo do povo desvie a sua atenção das coisas gerais, para fixa-las em objetos particulares. Nada mais danoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos, e o abuso das leis pelo governo é um mal muito menor que a corrupção do legislador, conseqüência, infalível dos aspectos particulares. Estado, então, o estado alterado em sua substância, toda e qualquer reforma se torna impossível. Um povo que não abusa do governo, jamais abusará da sua independência. Um povo que governar sempre bem, não necessitará ser governado.

83
As primeiras sociedades foram governadas aristocraticamente. Os chefes das famílias deliberavam entre si acerca dos negócios públicos: os jovens cediam sem dificuldade à autoridade da experiência. Daí os nomes sacerdote, anciãos, senado e gerontes. Os selvagens da América Setentrional governam-se ainda hoje deste modo, e estão bem governados.

86
Seu interesse pessoal é, primeiramente, que o povo seja fraco, miserável, e que não possa, em qualquer caso, oferecer-lhe resistência. Confesso que supondo a todos os súditos perfeitamente submissos, o interesse do príncipe será que o povo seja poderoso, a fim de que este poder o torne invencível perante seus vizinhos. Porém, como este interesse é secundário e subordinado, as duas suposições são incompatíveis e é natural que os príncipes dêem preferência à máxima que lhes é mais imediatamente útil. Isto é o que Machiavello tem demonstrado até a evidência. Tratando de dar lições aos reis, ele deu grandes aos povos. O “Príncipe”, de Machiavello, é o livro dos republicanos.

90
Estas dificuldades não têm passado despercebidas aos nossos autores, porém isto não os embaraçou. O remédio é, dizem, obedecer sem murmurar. Deus dá maus reis na Sua cólera e os faz suportar como castigo do céu. Esta teoria é edificante, sem dúvida, porém não sei se ficará melhor num púlpito do que num livro político. Que se dirá do médico que promete milagres e cuja sabedoria toda é exortar o doente a ter paciência? Infelizmente, sabemos que não há outro recurso senão agüentar os maus governos, porém a questão toda é encontrar um que seja bom.

92
Segue-se daí que quanto mais aumenta a distância do governo ao povo, mais onerosos são os tributos. Assim, na democracia está o povo pouco carregado, sobre mais cargas com a aristocracia e, na monarquia, suporá o maior peso. A monarquia somente convém às nações opulentas, a aristocracia aos estados medíocres tanto em riqueza como em superfície e a democracia aos estados pequenos e pobres.

95
A todas estas diferentes considerações posso acrescentar uma que sobre elas se destaca e as afiança, é a d que os países quentes necessitam menos habitantes do que os frios, o que produz um duplo supérfluo, vantajoso para o despotismo. Quanto maior for a superfície ocupada pela (p.96) mesma quantidade de habitantes, mais difíceis se tornam as revoltas, porque não é fácil combinar rápida e secretamente e sempre será fácil ao governo destruir seus projetos e cortar as comunicações. Porém, quando um povo numeroso se concentra, o governo não pode usurpar os direitos do soberano, os chefes deliberam com tanta segurança nos seus gabinetes, como o príncipe com o seu conselho, e a plebe reúne-se na praça pública com a mesma facilidade que as tropas nos quartéis. A vantagem de um governo tirânico é, pois, a de agir nas grandes distâncias.

98
Quando o estado se dissolve, o abuso do governo toma o nome comum de anarquia. Se isso se dá com a democracia, degenera em oclocracia, (p.99) se com a aristocracia, e oligarquia e se na monarquia em tirania, porém esta última palavra é equívoca e merece uma explicação.
Na acepção vulgar, um tirano é um rei que governa com violência e sem atender à justiça e às leis. Na sua verdadeira acepção, ele é um particular que se arroga a autoridade real sem nenhum direito. Deste modo entendiam os gregos a palavra tirano: aplicavam-na indistintamente aos príncipes bons ou ruins cuja autoridade não era legítima. Assim tirano e usurpador são duas palavras perfeitamente sinônimas.
Para dar diferentes nomes a diferentes coisas, chamo tirano ao usurpador de autoridade real, e déspota ao usurpador do poder soberano. Tirano é aquele que se ingere contra as leis para governar segundo as mesmas. Déspota, aquele que se coloca por cima das próprias leis. Assim, o tirano pode não ser déspota, porém o déspota é sempre tirano.

107
Não entendo, por isso, que deve haver escravos nem que o direito da escravidão seja legítimo, posto que demonstrei o contrário. Indico somente as razões pelas quais os povos modernos que se julgam livres, têm representantes e porque os povos antigos não os possuíam. Seja como for, quando um povo nomeia representantes, deixa de ser livre.

114
Vê-se, no capítulo precedente, que pelo modo como são tratados os negócios públicos pode-se ter uma idéia bastante exata do estado atual dos costumes e da saúde do corpo político. Quanto mais harmonia reinar nas assembléias, quanto mais se aproximam os acordos da unanimidade, mais dominante é a vontade geral, porém os longos debates, as dissensões, o tumulto, anunciam o ascendente dos interesses particulares e o declínio do estado.


116
Duas regras gerais podem servir para regula-los; uma, que quanto mais importantes e graves forem as deliberações, mais o acordo deve aproximar-se da unanimidade; outra, que quanto maior pressa exigir o negócio, mais deve estreitar-se a diferença prescrita na divisão do acordo. Nas deliberações que é preciso terminar sobre o terreno, o excedente de um voto deve ser o bastante. A primeira destas regras parece mais conveniente às leis, e a segunda aos negócios. De (p.117) todo modo, sobre sua combinação estabelecem-se as melhores circunstancias que se possam ter em conta para decidir acerca da maioria.

119
Depois da fundação de Roma, a república nascente, isto é, o exército do fundador, composto de albanos e de estrangeiros, dividiu-se em três classes, que tomaram o nome de tribos. Cada uma destas dividiu-se em dez cúrias e cada cúria em decúrias, à frente das quais colocaram chefes denominados curiões e decuriões.
Além disso, tirou-se de cada tribo um corpo de cem cavalarianos, denominado centúria, por onde se vê que estas divisões, pouco apropriadas (p.120) para uma cidade, eram militares. Parece que um instinto de grandeza impeliu Roma a procurar, desde logo, uma administração conveniente à capital do mundo.







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