sábado, 5 de abril de 2014

MERECE SER LEMBRADO 8



AS TRÊS PALMEIRAS

Mustafá era um pobre árabe, um beduíno do deserto. Era bom e simples, incapaz de más ações.
Morava ele no princípio do grande deserto de areia, entre um oásis e uma cidade, numa humilde cabana.
No oásis, verdadeira ilha verdejante num mar de areia, brotava a fonte onde Mustafá ia buscar água cristalina para vender na cidade.
A choupana de Mustafá fora construída por ele mesmo e mais parecia um curral de cabras, Tinha uma só peça um grabato por leito, os odres suspenso de dois ganchos e um banco tosco. Uma porta única abalada em gonzos ferrugentos, era voltada para o oeste donde soprava à noite vento menos esbrazeado que o “simun” do deserto.
À frente da casa se erguiam três palmeiras, raquíticas e com quatro ou cinco folhas mirradas apenas, agitando-se, dilaceradas, como bandeira de guerra depois de cruenta batalha. Nenhuma árvore crescia, por ali, naquele solo adusto e estéril. O sol de dia as castigava com os dardos flamejantes, e à noite o orvalho lhes crestava os leques.
Mustafá era crente e como bom árabe fazia suas orações. Logo de madrugada se levantava. Pegava os odres, suspendia-os a uma vara, dois de cada lado e punha a balança ao ombro. Ia enche-los à fonte e leva-los à cidade.
Vendia água por um preço ínfimo e ao regressar à choupana tinha apenas algumas moedas para o sustento do dia seguinte. Voltava com os pés sangrando, comia um pouco de cuscus que é o alimento dos pobres e, às vezes, algumas tâmaras. Bebia água fresca, orava agradecendo a Deus e ia no dia seguinte recomeçar tão fadigosa existência.
Certa vez, voltou mais cansado do trabalho; já era noite e as estrelas cintilavam. Mustafá fechou a porta da cabana e deitou-se.
Pela primeira vez achava que estava só, sem afeiçoes, nem família. Adormeceu, porém, como sempre, com o sono tranqüilo de quem não pratica o mal.
Perto da meia-noite despertou e pareceu-lhe ouvir um rumor; deveria ser o vento que fizera ranger a porta da cabana. A questão é que Mustafá não pôde mais dormir.
Sentiu calor e bebeu água fresca, recostando-se no grabato. Estava já dormitando quando julgou ouvir vozes.
— Desta vez não me enganei, pensou ele; falam junto da porta e são vozes diversas; talvez mercadores transviados de alguma caravana.
Como o “Koran” não proíbe escutar, Mustafá foi pé ante pé, até à porta. Por uma larga fresta espreitou. Não havia pessoa alguma junto à casa.
— Estou nervoso, murmurou ele. Ia deitar-se de novo quando sentiu que as vozes vinham do alto das palmeiras. Parecia que em cada uma estava alguém...
Prestou atenção e ouviu. A palmeira mais alta dizia:
— Qual! Ele não se importa conosco senão não estaríamos neste abandono há tanto tempo.
A mais baixa palmeira retorquiu:
— É que vem cansado, deita-se e dorme. Como se vai lembra de nós, mirradas palmeiras do deserto?
A terceira palmeira falava com voz triste:
— Vocês ainda podem salvar-se, mas eu sinto que a vida se me esvai e no entanto com um pouco de água mataria a sede que me devora...
— É ingrato, tornou a primeira. Enfeitamos-lhe a cabana.
— Ou indiferente, retrucou a mais raquítica. O pouco caso é pior que o ódio.
— Paciência, ajuntou a do meio. Se ele não nos valer, nem do céu cair água, morreremos à míngua.
E as três suspiraram, agitando as ressequidas folhas.
O árabe escutara atento e maravilhado. As palmeiras falavam e se queixavam!!
E quem? Dele. Só então se lembrou que na labuta da vida rude, nem sequer olhava para as palmeiras junto às quais edificara o seu rústico abrigo.
É que o trabalho ímprobo absorvia toda a sua existência.
Foi à bilha e bebeu. Sentia um calor asfixiante. Razão tinha as palmeiras para lamentos e recriminações. Tomo os odres. Estavam vazios e disse para si:
— Vou à fonte. Elas não se queixarão mais.
As palmeiras ouvindo rumor dentro de casa se haviam calado; viram-no sair e tomar a direção do oásis.
Decorreu uma hora.
Pouco depois o beduíno voltava da fonte, tropeçando às vezes e curvado ao peso de quatro odres, completamente cheios.
Arriou-se em frente à porta da cabana que deixara aberta. Tomou um odre e devagar foi derramando a água toda no tronco da palmeira mais elevada.
O solo quente chupava o líquido como se tivesse garganta sedenta. O segundo odre coube à palmeira do meio.
Do chão vinha o cheiro da terra há muito seca, e que de súbito recebe água da chuva.
Com a palmeira mais raquítica o árabe foi mais compassivo: derramou-lhe odre e meio ao redor das raízes e dividiu a metade da água restante pelas duas outras.
— Não têm mais motivos de queixa, murmurou. Tinham razão estas pobres plantas. Eu cuidarei delas.
Dormiu sossegado e pela madrugada quando saiu para o trabalho notou que os leques das palmeiras farfalhavam. No entanto reinava profunda calma.
— É que estão contentes, disse ele.
À tarde, quando regressou da cidade, fez um rodeio e voltou da fonte com os odres cheios. Não havia aragem, mas ao avistarem-no os leques das palmeiras se agitaram.
O árabe derramou-lhes a água que trouxera e foi dormir satisfeito até a outra manhã.
E assim todos os dias, ao voltar do trabalho, as plantas tinham a sua ração de água. Cansado embora, ele as regava.
Por fim, Mustafá já as amava como se fossem criaturas. Estavam esbeltas, com leques novos e verdejantes e cobriam de doce sombra a choupana do beduíno.
Nas horas mais quentes quando nenhum vento refrescava a planície ardente, elas se agitavam, enchendo de frescura o refúgio do seu benfeitor.
Em breve a fama da beleza das três plantas chegava à cidade e todos vinham admirar-lhes o viço e o frescor que se gozava à sua sombra.
Tal fama chegou aos ouvidos do grão-vizir, favorito do sultão e que tinha um palácio na rua principal.
Seguido de sua comitiva foi também ver as formosas palmeiras. Apreciou tanto essas rainhas do deserto que resolveu edificar ali mesmo um palácio.
Mandou chamar Mustafá e perguntou-lhe:
É tua esta cabana?
— Sim, fui eu que a construí.
— Queres vender-ma?
— Oh! Não, senhor. É a minha casa. Tenho-lhe amizade, muita amizade.
— Pois há de ser minha. Resolvi edificar aqui o meu palácio de verão: a cidade é uma brasa, e quero gozar o frescor destas lindas palmeiras.
— Fui eu quem as tratou e delas cuido como se minhas filhas fossem; não mas tireis, grão-vizir! Eu vos suplico!
— Por que não? Que direitos tens tu?
— Queixar-me-ei ao sultão, exclamou o guadeiro.
— Ele não te acreditará nem eu te consinto. Olá, guardas, levai preso este homem! metei-o no cárcere.
Mustafá foi agarrado; um relâmpago de energia faiscou no seu olhar sempre tranqüilo. Conteve-se.
De súbito, ajoelhou-se chorando:
— Não sejais mau, senhor, nada tenho e sou um mísero beduíno sem pai, sem mãe, sem amigos; amo a minha choupana e as palmeiras de que cuido todos os dias. Tende misericórdia, grão-vizir, eu vos rogo!
— Deixa-te de lamúrias. Amanhã a tua casa será arrasada.
— Oh! O Sultão não há de consentir nessa violência.
— Ele não te atenderá.
— Pois se tu não me queres ouvir, se o sultão não me atender, ainda tenho a quem me queixar!
— A quem, mísero verme?
— A Deus que te punirá.
— Maldito! Punido serás tu!
Voltou-se, furioso, para o seu carrasco:
— Entrego-te este infiel.
Rápido como um raio, o alfanje do executor decepou a cabeça de Mustafá. Ela foi rolando até o troco de uma das palmeiras, embebendo o solo de sangue.
O bárbaro vizir retirou-se com a comitiva e o corpo de Mustafá ficou inerte, junto dos odres cheios de água que ele destinava às palmeiras.
Alta madrugada dois mercadores da cidade, amigos de Mustafá, vieram buscar-lhe o corpo, às ocultas, com receio de serem punidos pelo vizir.
Embrulharam o tronco e a cabeça e enterraram os despojos mortais nas proximidades da fonte onde o beduíno ia buscar água.
Entretanto, a morada de Mustafá foi logo demolida e centenas de obreiros levantavam, no local, amplo e bem construído palácio. Três meses depois estava pronto, com magníficas colunas de mármore e terraços mouriscos. Fora construído de modo que as três palmeiras ficavam fronteiras aos aposentos do grão-vizir. Elas estavam lindas, com as frondes virentes e balouçantes.
Logo que ficou preparado o palácio, resolveu o ministro do sultão inaugura-lo com grande pompa. Houve larga distribuição de convites e a festa foi esplêndida. Música, danças e opíparo banquete resumiam o festim.
Afinal, alta madrugada, os convidados se retiraram e o vizir ficou com os seus servos, indo dormir na sua luxuosa câmara.
As palmeiras farfalhavam ainda quando o sono fechou-lhe as pálpebras...
No dia seguinte emissários do sultão e os mercadores da cidade se achavam em pleno deserto, atônitos e em pasmo.
No local onde estivera a cabana de Mustafá e onde na véspera, o palácio do vizir se erguera, nada mais existia. O palácio desaparecera.
E as palmeiras?
Essas, uma mulher que fora à fonte, as vira.
Estavam eretas, belas como dantes, junto à cova, onde jaziam o corpo mutilado e a cabeça decepada do pobre Mustafá! Elas abriam os leques à brisa da manhã e cobriam de fresca sombra a tumba de seu benfeitor.







O título do livro é A ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.

O livro inicia-se com

AO LEITOR.

Mais um livro de histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência, o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a única no Brasil.
O presente volume que foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.

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