CORREIA, Nereu. A
tapeçaria lingüística d’Os Sertões e outros estudos. São
Paulo: Quíron; Brasília: INL, 1978.
(Livro
da biblioteca municipal de Capinópolis, nº 3633, lido em 2007, mas
só encontrado estas anotações em 2009 juntamente a outras
anotações.)
Pelo índice
Prólogo
A tapeçaria
lingüística d’Os Sertões
Conotações
estético-estilísticas nos romances de Adonias Filho
A arte difícil de
Guimarães Rosa
Caudilhos e Gaúchos
(Moisés Vellinho)
Um livro sobre o Rio
Grande (Manoelito Ornellas)
Rui Barbosa visto
através de sua correspondência
Uma biografia de Cruz e
Souza (R. Magalhães Jr.)
Poesia e vida de Cruz e
Souza (R. Magalhães Jr.)
Um mestre da
conferencia literária (Ivan Lins)
Um francês que ensinou
português no Brasil (Lapagesse)
O Diário de um
escritor (Ascendino Leite)
Terra Xucra (Manoelito
Ornellas)
Pensamentos e reflexões
de João Lyra Filho
As memórias de um
romancista (Érico Veríssimo)
Um livro de crítica
literária (Hélio Pólvora)
Uma nova “História
de Santa Catarina” (Oswaldo R. Cabral)
A última obra do
mestre (Henrique da S. Fontes)
Há crise no reino da
poesia?
A volta do poeta de
Cataguases (Guilhermino César)
Carlos Nejar e a
geração de 60
Tempo e Memória na
poesia de Marcos Konder Reis
Aspectos formais na
poesia de Lindolf Bell
A nova cosmovisão
lírica de Cassiano Ricardo
O Senhor Embaixador
— uma experiência transregional na ficção de E. Veríssimo
O romance de uma cidade
morta (Plínio Salgado)
História e ficção
(Almiro Caldeira)
O drama da juventude na
ficção (Santos Moraes)
Memória e imaginação
(Ricardo L. Hoffmann)
Um romance do sul
(Lausimar Laus)
O drama existencial de
um escrito (Léo Vitor)
Monólogo da solidão
(Assis Brasil)
Os tecnocratas das
letras
O homem que sabia
português
Eça de Queiroz e o
Brasil
XII
E aqui vai uma
pergunta: existe a crítica científica? Segundo leio no livro de
Anderson Imbert, Métodos de Critica Literária (pp.49/51), as
conclusões de Hebert Dingle, professor de filosofia das ciências
depois de haver submetido os “métodos científicos” de estudar a
literatura a uma rigorosa análise epistemológica, são negativas:
não há uma ciência da literatura. Mas ainda que não haja uma
ciência da literatura — diz Dingle — é recomendável que se
estude a literatura aproveitando alguns dos princípios e métodos do
pensamento científico.
XIII
Disse Wilson Martins: “
O resultado é que acabamos matando a criança no desejo de salva-la,
porque acabamos com a crítica literária dos jornais, a crítica de
rodapé, substituindo-a por uma crítica universitária que se tornou
abstrusa, complexa e alienada, arrogante e muito pernóstica.” O
que vemos, hoje, é um círculo vicioso entre a linguagem (na ficção)
e a metalinguagem (na crítica), entre os inventos no universo
criador do artista e os mecanismos de prospecção dos analistas
literários, um dependendo do outro e ambos integrando-se na
acoplagem pré-moldada dos seus elementos. Tem-se a impressão de que
hoje não mais se escrevem romances para o público, mas tão somente
para as teses de pós-graduação e doutoramento. O próprio crítico,
quando se defronta com um desses livros que se desviaram da norma
lingüística parece dizer, prelibando o banquete: “Eis aqui um
filet-mignon para os estudantes das Faculdades de Letras ou para os
anatomistas de textos literários.”
XIII
Um professor de
literatura, ao saber que eu tinha um livro de crítica literária
para publicar, perguntou-me qual a escola que eu seguia nos meus
trabalhos. E antes que eu respondesse, foi especificando: “A russa,
a francesa, a espanhola ou a norte-americana?” Respondi-lhe que não
estava matriculado em nenhuma delas e que, em matéria de crítica,
costuma rezar pela minha própria cartilha.
XIII
Não que desdenhe essas
aquisições que vierem enriquecer o instrumental de análise e
alargar o campo da pesquisa literária. Pelo contrário: acho que
elas devem ser aproveitadas pelo crítico sempre que necessárias a
me mergulho em profundidade no texto, embora não o faça com uma
aplicação sistemática e normativa, o que é próprio do ensaio na
sua forma mais específica. O que não significa que o crítico deva,
necessariamente, tomar uma posição em face de tais correntes ou
técnicas literárias, de forma a assumir um compromisso, numa
alienação total da sua independência. A história da literatura
nos tem demonstrado quão aleatórias têm sido essas técnicas no
tempo e no espaço. Ninguém melhor do que Imbert caracterizou a
transitoriedade dessas teorias neste trecho que transcreve do livro
acima mencionado: “O diálogo é cada vez mais difícil. Se há dez
anos o enfoque sociológico se punha na defensiva perante o
triunfante avanço do formalismo, hoje é o formalismo que tem de
defender-se. (p. XIV) A concepção dinâmica do historicismo
seguiu-se a concepção estática do estruturalismo; mas eis que, de
repente, as sincronias se tornam diacronias e as redes estruturais
tornam a abrir-se à história”. (p.11)
XIV
Albert Thibaudet
distinguia a crítica ex cathedra (dos professores universitários)
da crítica dos artistas ou, mais precisamente, dos escritores. A
primeira é a crítica subordinada a um método específico,
instrumentado por técnicas próprias, que por sua vez delimitam o
ângulo de visão e mostram a estratégia a seguir no assedio ao
universo da obra escolhida. A segunda é a do escritor que, sem
compromisso com nenhum método, cria a sua própria estratégia,
valendo-se não apenas da intuição, mas de todos os recursos ao seu
alcance (até mesmo — e por que não? — daqueles tomados de
empréstimo a outros métodos), a fim de que a crítica possa cumprir
a sua função primordial — que é de julgar e interpretar para o
leitor comum a obra literária. O resto é ofício de relojoeiro.
1
“Só as obras bem
escritas hão de passar à posteridade”. Essas palavras foram
escritas por um naturalista, o Conde de Buffon, ao tomar posse na
Academia Francesa, em 1753. Mais conhecido por uma frase que se
tornou famosa (lê style c’este l’homme même) do que talvez
pelos 36 volumes da sua História natural, o dito buffoniano,
em que pese às interpretações divergentes que tem suscitado,
continua na ordem-do-dia. Mas o conceito de estilo tem sofrido as
mais diversas variações, não menos que os processos de análise
estilística. Para alguns, quanto mais inconfundível for o estilo
nas suas marcas exteriores, tanto maior será a personalidade do
escritor. Já para outros o verdadeiro estilo é aquele que passa
despercebido, isto é, o que realiza um perfeito acoplamento entre a
idéia e a forma, de maneira que uma não sufoque a outra. Assim o
entendia Azorim: ter estilo é não ter estilo. Deslocando o eixo da
análise estilística para o campo da semiologia, a crítica
estrutural criou uma metodologia científica para o estudo da
literatura e, com ela, o conceito de estilo enriqueceu-se de novas
conotações. Roland Barthes distingue o estilo da escritura,
transferindo para esta tudo que tradicionalmente se atribui ao
estilo, como soma de elementos pessoais e extra-pessoais (gosto e
cultura). Para ele estilo é “uma linguagem autárquica que
mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor”, uma espécie de
enteléquia, até pelo tom enigmático de que se revestem as suas
definições.
2
Primeiro temos de
reconhecer não existirem propriamente defeitos de estilo. Um estilo
é o que é. E isso se nos afigura tanto mais evidente quanto maior
for o grau de domínio e maturidade do escritor, no que concerne aos
seus recursos de expressão.
2
“Estilo — dizia-o
caboclamente Monteiro Lobato — é como o nariz da cara: cada qual o
tem como Deus o fez e não há dois iguais”.
11
Ernesto Guerra da Cal,
no estudo magistral que dedicou ao estilo de Eça de Queiroz,
assinala que é na adjetivação que reside “um dos meios
expressivos de mais penetrante e original irradiação pessoal” da
frase queiroziana, “talvez o mais flexível e rico dos instrumentos
verbais, e sem dúvida, a mais segura mola do encanto especial da sua
maneira de ‘dizer’”. Por aí se nota que o mal do adjetivo não
está nele próprio, mas no escritor sem talento.
12
Para Amado Alonso a
formação adjetivo-substantivo implica um juízo-analítico, ao
passo que a formação inversa — substantivo-adjetivo — pressupõe
um juízo sintético. No primeiro caso há o desejo de realçar uma
qualidade inerente ao substantivo, enquanto que no segundo tal não
acontece. Mas alinha de subtilezas e ressonâncias nesse campo é
extensa, e nem sempre susceptível de classificação. A verdade é
que a anteposição do adjetivo ao substantivo, além de acender uma
fagulha poética, revela uma qualidade inerente ao substantivo, porém
sem eclipsá-lo ao passo que na colocação oposta —
substantivo-adjetivo —, a expressão se fluidifica, se plasticiza,
carreando para o adjetivo um atributo do substantivo, acidental ou
inerente a ele. No primeiro caso o substantivo conserva a sua
potencialidade, enquanto que no segundo esta se transfere para o
atributo, ou seja, para o adjetivo.
14
O vocabulário é o
arsenal de um escritor. É através dele que entramos em contato com
o seu mundo interior, com as suas idiossincrasias como a sua
formação, com o seu gosto, com a sua cultura. É, na obra
literária, o primeiro sinal da personalidade do autor. Pela escolha
das palavras ele nos dá a medida do seu gosto e da sua sensibilidade
estética. É verdade que o gênero e o assunto escolhido podem
determinar uma mudança no sentido de maior sobriedade ou riqueza de
palavras. Pode, inclusive, exigir uma variação hierárquica —
digamos assim — do vocabulário, dentro da área social da língua,
num movimento bipolado entre o nobre e o plebeu, o culto e o vulgar,
o erudito e o corrente.
15
As formas
apassivadoras, como já dissemos, além da sua índole vulgar,
destonificam a frase, quebram-lhe a energia, amortecem-lhe o ímpeto
e a força verbal.
18
A antítese é uma das
figuras mais caras às preferências pessoais do escritor. Ela não
se situa apenas na base do seu raciocínio, como um recurso de
expressão de que procura tirar os melhores efeitos, mas também na
visão da realidade, na escolha dos temas, na sua própria
consciência, que parecia comprazer-se nesse jogo antitético dos
contrastes e dos confrontos.
20
As palavras em Euclides
da Cunha — disse-o magistralmente Franklin de Oliveira —
“dilaceram-se, suam sangue entre mandacarus, chique-chiques,
cabeças de frade. Prosa de caatinga e carrascais, agreste, rude”.
22
Dentro de uma
classificação geral, costuma-se dividir em dois grupos os
escritores que se distinguem quanto à maneira de escrever. O
primeiro grupo, onde vamos encontrar a grande maioria dos escritores
de ficção, reúne todos aqueles para os quais a forma não
constitui um elemento primacial na elaboração da obra de arte, como
uma realidade em si, capaz de galvanizar a sensibilidade do leitor.
Na generalidade, são escritores em que a imaginação criadora é
maior do que a imaginação verbal. O segundo grupo, formando uma
casta que se vai tornando cada vez mais rara, é constituído de
escritores que porfiam em marcar a crosta verbal com os artifícios
de uma prosa esmeradamente trabalhada, onde a palavra, à margem da
sua função de signo lingüístico, cumpre igualmente uma missão
estética relevante no contexto da obra literária.
22
Gustavo Lanson
distinguia esses dois tipos de escritores com as designações de
“boa prosa” e “bela prosa”. Hoje podemos acrescentar a esses
dois um terceiro grupo, cuja linguagem eu chamaria, à falta de
melhor denominação, de “insólita prosa”. É o dos escritores
que, não satisfeitos com os recursos que a língua oferece, criam a
sua própria linguagem, inventam formas inusitadas e expressão,
compõem um estranho vocabulário com elementos da língua comum ou
tomados de empréstimo a outras línguas. A diferença ente os
grandes estilistas do passado e os escritores deste último grupo —
família recente e bastante rara de inovadores literários — é que
os primeiros se restringem apenas à orquestração dos elementos
plásticos e rítmicos da língua, ao desenho exterior dos torneios
fraseológicos, explorando todas as combinações lexicográficas sem
jamais atingir a língua na sua unidade orgânica, ao passo que estes
últimos operam tanto extrinsecamente com na infra-estrutura, nas
camadas mais profundas do idioma, realizando um trabalho que não é
apenas o do cinzelador da frase, do lapidário da forma, mas do bruxo
que inventa e reelabora o material recolhido a partir da estrutura
idiomática.
23
Mas Franklin de
Oliveira desfez o equívoco: “Os valores presentes à trama
estilística de Rosa (aliterações, assonâncias, consonantismos,
neologismos, onomatopéias, restauração de arcaísmo, inversões
sintáticas, incorporação de giros sintáticos de outras línguas à
sua dicção, etc.) não informam a estrutura da prosa de Adonias,
que tem substantividade própria, assentada em dois valores; a
incisidade e a liricidade. Sua frase nunca se espraia. Sua frase
nunca se espraia: curta, cortante, de contorno geométrico. E quando
se espraia é para se sustentar no emprego do gerúndio, tempo verbal
que distende a ação e, nesta distenção, busca uma duração
psicológica parada, adinâmica. Seu universo fraseológico é
unicelular; já o de rosa organiza-se em múltiplas camadas de
significação. (p.24) Não sei como e onde encontrar a parecença
propalada”.
29
A estrutura frasal
tangencia o verso, chegando às vezes a confundir-se com ele. O que
não significa subordinação do elemento lírico ao ritmo
versificatório na prosa de Adonias Filho, pois sua liricidade, como
se sabe, independe do verso para produzir a sua eficácia. O emprego
de formas elípticas, o uso reiterado e multiforme do gerúndio, a
justaposição de unidades autônomas no período, a linha melódica
decorrente da seqüência triádica da frase, eis alguns elementos de
que se vale o escritor para criar a atmosfera poética dentro do
clima de tragédia que percorre as sagas sertanejas trasladadas para
os seu romances. Por outro lado, o ritmo interno da narrativa, com os
seu silêncios e as suas pausas, habilmente conduzidos, concorre para
intensificar o clima lírico que frequentemente envolve a sua prosa.
32
Em toda a obra de
Guimarães Rosa, no que concerne à linguagem, vislumbramos o autor
como um relojoeiro na sua oficina, todo entregue ao sofrido e
delicado trabalho de fabricar, ele próprio, as peças destinadas à
montagem do complexo e insólito mecanismo do seu estilo. (p.33) Na
elaboração de tão rico instrumento de expressão, teve o escritor,
como se sabe, de recorrer a outras línguas, tomando-lhes de
empréstimo palavras que melhor servissem às suas intenções
poéticas, apenas como ligeira adaptação ao português, ou compondo
com elas uma terceira palavra (um dos exemplos mais expressivos desse
hibridismo lingüístico é o vocábulo Sagarana, já
decomposto por Franklin de Oliveira: saga, radical germânico
— criação verbal a serviço do épico; rana, sufixo tupi —
à maneira de...). Nas listas enviadas por Edoardo Bizzarri
encontra-se uma que outra palavra gratuita, explicável apenas pela
sensação lúdica que levou o autor a inventá-la, numa concorrência
ao dicionário. Gratuitas, porém, não arbitrárias. A gratuidade
pura não existe em lingüística, pois há sempre uma intenção
subconsciente quando outra não seja, uma intenção poética. Muito
à puridade, numa dessas cartas, confessava Guimarães Rosa que a
expressão “Aí, Zé, opa!”, empregada na novela Cara-de-Bronze,
é um desabafo lúdico, pessoal e particular brincadeira do autor”,
e que deve ser lida de trás para diante — “apo éZ ia”, ou
seja a poesia. Outra explicação curiosa é a que nos oferece da
expressão nem conjo, nem conja (nem marido, nem mulher), por ele
inventada, pois trata-se de uma forma apocopada de cônjuge, palavra
erudita, com a diferenciação de gênero feita pelo escritor com
evidente intenção burlesca. Aliás, na sua obra existem numerosos
exemplos desse recurso popular de reduzir as proparoxítonas. Às
vezes Guimarães Rosa enamorava-se da palavra pelo seu aspecto
físico, ou pela sua sonoridade, ou ainda pelo impacto que pudesse
produzir no leitor — “mexendo com o seu subconsciente” — e
empregava-a independentemente de qualquer conteúdo lógico,
guardando apenas uma remota relação semântica com as suas origens
(que tanto podia vir do tupi, como do latim ou do grego, ou mesmo de
outras línguas ou do português arcaico); ou sem nenhum antecedente
etimológico, de que é exemplo a palavra trapatrava, que ele
confessa ser pura maluqueira (conferindo-lhe todavia uma conotação
mágica, uma espécie de abracadabra).
35
Josué Montello já
havia chamado a atenção para esse aspecto da sua atividade
criadora, assinalando que o “Rosa dos primeiros escritos é
essencialmente um lógico, senhor da clareza instantânea, dono de um
estilo límpido e de comunicação direta. Depois de Sagarana
— continua Montello — assistimos à gradativa evolução do
escritor — do lógico para o mágico. Sobretudo em Tutaméia
essa evolução salta aos olhos”. E conclui: “Para meu gosto
pessoal, é em Grande Sertão que ele alcança a sua
linha de equilíbrio.”
35
Como artista, ele está,
inteiro, nesta definição de Otávio de Faria: “o homem que amou a
palavra e soube ama-la”. Os nomes, por exemplo, exerciam sobre o
escritor um poder mágico, que o prendia e enlaçava com toda a sua
força encantatória. No seu discurso de posse na Academia Brasileira
ele diria: “..tudo quanto há com nomes me apanha”. A Antônio
Callado ele disse que começara a assinar suas produções apenas
como J.G. Rosa. Depois passara a assinar J. Guimarães Rosa.
Finalmente — completou ele com sua justa e atraente imodéstia —
“descobri que o perfeito, o lindo, era o nome inteiro, que soa tão
certo: João Guimarães Rosa”. No seu gabinete de trabalho tinha um
lista telefônica de Palermo, que vez ou outra percorria para se
deliciar com os nomes e sobrenomes italianos e, naturalmente, também
em busca de sugestões para a sua alquimia lingüística. Numa das
cartas ao professor Bizzarri, a propósito da palavra sirga,
diz o seguinte: “Você sabe, por exemplo, que sirga existe, mesmo;
mas escolhi-a também pela beleza que achei no nome, pouco comumente
usado (sirga = corda com que se puxa embarcação, ao longo da
margem)”.
É
desse jeito mesmo. Por algum motivo nada entre as páginas que se
seguem não me atraíram a atenção, quando li o livro. Motivos que
hoje em 2009 já desconheço. Jamais deixei um livro sem lê-lo por
completo. Portanto, não indica que não foram lidas estas páginas.
Foram lidas com toda a certeza.
147
A verdade é que
ninguém pode oferecer receitas para um bom romance, ou simplesmente
para um romance. Há dois elementos fundamentais na estrutura interna
de toda obra de ficção, relacionados com a dicotomia
estática-movimento: são a memória e a imaginação.
A predominância de um sobre o outro é que determina a mudança do
eixo, isto é, a tônica sobre a qual recai o ritmo interior ou
exterior da ação novelesca. Temos observado — e não é outra
coisa que nos revela a literatura de todas as épocas — , que o
escritor dotado de maior imaginação tende, via de regra para o
romance de intriga. Por outro lado, não é raro encontrarmos
romances em que os dois elementos se graduam ou se fundem
harmonicamente.
147
A carência de
imaginação tanto pode conduzir o romancista à introspecção, a
uma concentração sobre si mesmo, em mergulhos nos abismos do ser,
como à enfatização da forma, ao brilho externo e falso do estilo,
o que (p.148) é, em última análise, uma contrafação da obra em
termos de criação literária.
148
Eu prefiro dizer que
anovela de Hoffmann tende mais para a sondagem psicológica do que
parra a exploração subjetiva em profundidade. A diferença está em
que o processo de sondagem empregado pelo autor não tem como centro
a vida interior dos personagens, embora esta não lhe seja
indiferente. A sua análise opera na superfície, começa no exterior
e, aos poucos, vai calando levemente os instrumentos de prospecção,
sem contudo atingir o mistério que se oculta nos ângulos sombrios
da história. É nisso que consiste o segredo da arte nesse tipo de
romance: não abrir todas as portas ao leitor.
149
Nos romances ditos
psicológicos, onde o tempo não serve de baliza ao ritmo da ação,
o mundo exterior é visualizado de dentro para fora, por um processo
de fragmentação da realidade. Daí aquela sensação de imobilismo
que os torna, geralmente, monótonos e enfadonhos. Graças ao método
adotado pelo autor de A Superfície, a sua novela não se
detém nessa região sem gravidade do espaço psíquico, nem se perde
em demoradas e profundas escavações introspectivas.
149
Aliás, a perspectiva
interna já vem limitada pelo emprego da primeira pessoa, processo
que reduz o ângulo de visão, circunscrevendo-o apenas aos fatos
documentados pela observação do narrador.
149
Hoffmann empregou a
técnica do período longo, processo que, à maneira proustiana, lhe
pareceu mais adequado ao enfoque em diagonal. A frase longa como que
ajuda a sustar o fluxo da memória, o instante que o romancista
deseja reter e prolongar no tempo psicológico. Entretanto, quando o
autor não a submete à disciplina da composição, corre o risco de
se tornar obscuro, como ocorre em várias passagens de A
Superfície.
159
Creio que ainda não se
escreveu em língua portuguesa um romance cuja ação se desenrolasse
em espaço tão limitado, entre as quatro paredes de um cárcere, com
uma única alternativa para a ida ao Pátio uma vez por mês, para o
banho corporal. Mas o romance, que perde em movimento exterior, ganha
em intensidade, em ação interior. E é exatamente aí que podemos
avaliara os recursos de expressão do romancista, o seu
extraordinário poder de escavação e sondagem nas galerias mais
recônditas do ser. É nesse microcosmo que lê analisa as reações
do único personagem deste romance, não se levando o ratinho que às
vezes o acompanha e os outros presos, de cuja presença só tomamos
conhecimento através dos gritos, ou melhor, dos grunhidos que eles
emitem. Não se trata, porém, apenas de exploração no mundo
interior do personagem, depura introspecção, sem rebates na
superfície das percepções transubjetivas. Na urdidura da história
se alternam as sondagens psíquicas ou anímicas e a vida emergente
no plano da realidade exterior, graças a uma técnica bem dosada, em
que a linguagem encontra o seu módulo próprio, a sua dicção
específica, rigorosamente ajustada à natureza da narrativa,
resguardando-se daquele imobilismo do estilo de mascar chiclete, tão
comum na prosa remoída das chamadas análises introspectivas.
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