terça-feira, 15 de abril de 2014

a tapeçaria linguística d'os sertões


CORREIA, Nereu. A tapeçaria lingüística d’Os Sertões e outros estudos. São Paulo: Quíron; Brasília: INL, 1978.
(Livro da biblioteca municipal de Capinópolis, nº 3633, lido em 2007, mas só encontrado estas anotações em 2009 juntamente a outras anotações.)

Pelo índice
Prólogo
A tapeçaria lingüística d’Os Sertões
Conotações estético-estilísticas nos romances de Adonias Filho
A arte difícil de Guimarães Rosa
Caudilhos e Gaúchos (Moisés Vellinho)
Um livro sobre o Rio Grande (Manoelito Ornellas)
Rui Barbosa visto através de sua correspondência
Uma biografia de Cruz e Souza (R. Magalhães Jr.)
Poesia e vida de Cruz e Souza (R. Magalhães Jr.)
Um mestre da conferencia literária (Ivan Lins)
Um francês que ensinou português no Brasil (Lapagesse)
O Diário de um escritor (Ascendino Leite)
Terra Xucra (Manoelito Ornellas)
Pensamentos e reflexões de João Lyra Filho
As memórias de um romancista (Érico Veríssimo)
Um livro de crítica literária (Hélio Pólvora)
Uma nova “História de Santa Catarina” (Oswaldo R. Cabral)
A última obra do mestre (Henrique da S. Fontes)
Há crise no reino da poesia?
A volta do poeta de Cataguases (Guilhermino César)
Carlos Nejar e a geração de 60
Tempo e Memória na poesia de Marcos Konder Reis
Aspectos formais na poesia de Lindolf Bell
A nova cosmovisão lírica de Cassiano Ricardo
O Senhor Embaixador — uma experiência transregional na ficção de E. Veríssimo
O romance de uma cidade morta (Plínio Salgado)
História e ficção (Almiro Caldeira)
O drama da juventude na ficção (Santos Moraes)
Memória e imaginação (Ricardo L. Hoffmann)
Um romance do sul (Lausimar Laus)
O drama existencial de um escrito (Léo Vitor)
Monólogo da solidão (Assis Brasil)
Os tecnocratas das letras
O homem que sabia português
Eça de Queiroz e o Brasil

XII
E aqui vai uma pergunta: existe a crítica científica? Segundo leio no livro de Anderson Imbert, Métodos de Critica Literária (pp.49/51), as conclusões de Hebert Dingle, professor de filosofia das ciências depois de haver submetido os “métodos científicos” de estudar a literatura a uma rigorosa análise epistemológica, são negativas: não há uma ciência da literatura. Mas ainda que não haja uma ciência da literatura — diz Dingle — é recomendável que se estude a literatura aproveitando alguns dos princípios e métodos do pensamento científico.

XIII
Disse Wilson Martins: “ O resultado é que acabamos matando a criança no desejo de salva-la, porque acabamos com a crítica literária dos jornais, a crítica de rodapé, substituindo-a por uma crítica universitária que se tornou abstrusa, complexa e alienada, arrogante e muito pernóstica.” O que vemos, hoje, é um círculo vicioso entre a linguagem (na ficção) e a metalinguagem (na crítica), entre os inventos no universo criador do artista e os mecanismos de prospecção dos analistas literários, um dependendo do outro e ambos integrando-se na acoplagem pré-moldada dos seus elementos. Tem-se a impressão de que hoje não mais se escrevem romances para o público, mas tão somente para as teses de pós-graduação e doutoramento. O próprio crítico, quando se defronta com um desses livros que se desviaram da norma lingüística parece dizer, prelibando o banquete: “Eis aqui um filet-mignon para os estudantes das Faculdades de Letras ou para os anatomistas de textos literários.”

XIII
Um professor de literatura, ao saber que eu tinha um livro de crítica literária para publicar, perguntou-me qual a escola que eu seguia nos meus trabalhos. E antes que eu respondesse, foi especificando: “A russa, a francesa, a espanhola ou a norte-americana?” Respondi-lhe que não estava matriculado em nenhuma delas e que, em matéria de crítica, costuma rezar pela minha própria cartilha.

XIII
Não que desdenhe essas aquisições que vierem enriquecer o instrumental de análise e alargar o campo da pesquisa literária. Pelo contrário: acho que elas devem ser aproveitadas pelo crítico sempre que necessárias a me mergulho em profundidade no texto, embora não o faça com uma aplicação sistemática e normativa, o que é próprio do ensaio na sua forma mais específica. O que não significa que o crítico deva, necessariamente, tomar uma posição em face de tais correntes ou técnicas literárias, de forma a assumir um compromisso, numa alienação total da sua independência. A história da literatura nos tem demonstrado quão aleatórias têm sido essas técnicas no tempo e no espaço. Ninguém melhor do que Imbert caracterizou a transitoriedade dessas teorias neste trecho que transcreve do livro acima mencionado: “O diálogo é cada vez mais difícil. Se há dez anos o enfoque sociológico se punha na defensiva perante o triunfante avanço do formalismo, hoje é o formalismo que tem de defender-se. (p. XIV) A concepção dinâmica do historicismo seguiu-se a concepção estática do estruturalismo; mas eis que, de repente, as sincronias se tornam diacronias e as redes estruturais tornam a abrir-se à história”. (p.11)

XIV
Albert Thibaudet distinguia a crítica ex cathedra (dos professores universitários) da crítica dos artistas ou, mais precisamente, dos escritores. A primeira é a crítica subordinada a um método específico, instrumentado por técnicas próprias, que por sua vez delimitam o ângulo de visão e mostram a estratégia a seguir no assedio ao universo da obra escolhida. A segunda é a do escritor que, sem compromisso com nenhum método, cria a sua própria estratégia, valendo-se não apenas da intuição, mas de todos os recursos ao seu alcance (até mesmo — e por que não? — daqueles tomados de empréstimo a outros métodos), a fim de que a crítica possa cumprir a sua função primordial — que é de julgar e interpretar para o leitor comum a obra literária. O resto é ofício de relojoeiro.


1
“Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade”. Essas palavras foram escritas por um naturalista, o Conde de Buffon, ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753. Mais conhecido por uma frase que se tornou famosa (lê style c’este l’homme même) do que talvez pelos 36 volumes da sua História natural, o dito buffoniano, em que pese às interpretações divergentes que tem suscitado, continua na ordem-do-dia. Mas o conceito de estilo tem sofrido as mais diversas variações, não menos que os processos de análise estilística. Para alguns, quanto mais inconfundível for o estilo nas suas marcas exteriores, tanto maior será a personalidade do escritor. Já para outros o verdadeiro estilo é aquele que passa despercebido, isto é, o que realiza um perfeito acoplamento entre a idéia e a forma, de maneira que uma não sufoque a outra. Assim o entendia Azorim: ter estilo é não ter estilo. Deslocando o eixo da análise estilística para o campo da semiologia, a crítica estrutural criou uma metodologia científica para o estudo da literatura e, com ela, o conceito de estilo enriqueceu-se de novas conotações. Roland Barthes distingue o estilo da escritura, transferindo para esta tudo que tradicionalmente se atribui ao estilo, como soma de elementos pessoais e extra-pessoais (gosto e cultura). Para ele estilo é “uma linguagem autárquica que mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor”, uma espécie de enteléquia, até pelo tom enigmático de que se revestem as suas definições.

2
Primeiro temos de reconhecer não existirem propriamente defeitos de estilo. Um estilo é o que é. E isso se nos afigura tanto mais evidente quanto maior for o grau de domínio e maturidade do escritor, no que concerne aos seus recursos de expressão.

2
“Estilo — dizia-o caboclamente Monteiro Lobato — é como o nariz da cara: cada qual o tem como Deus o fez e não há dois iguais”.

11
Ernesto Guerra da Cal, no estudo magistral que dedicou ao estilo de Eça de Queiroz, assinala que é na adjetivação que reside “um dos meios expressivos de mais penetrante e original irradiação pessoal” da frase queiroziana, “talvez o mais flexível e rico dos instrumentos verbais, e sem dúvida, a mais segura mola do encanto especial da sua maneira de ‘dizer’”. Por aí se nota que o mal do adjetivo não está nele próprio, mas no escritor sem talento.

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Para Amado Alonso a formação adjetivo-substantivo implica um juízo-analítico, ao passo que a formação inversa — substantivo-adjetivo — pressupõe um juízo sintético. No primeiro caso há o desejo de realçar uma qualidade inerente ao substantivo, enquanto que no segundo tal não acontece. Mas alinha de subtilezas e ressonâncias nesse campo é extensa, e nem sempre susceptível de classificação. A verdade é que a anteposição do adjetivo ao substantivo, além de acender uma fagulha poética, revela uma qualidade inerente ao substantivo, porém sem eclipsá-lo ao passo que na colocação oposta — substantivo-adjetivo —, a expressão se fluidifica, se plasticiza, carreando para o adjetivo um atributo do substantivo, acidental ou inerente a ele. No primeiro caso o substantivo conserva a sua potencialidade, enquanto que no segundo esta se transfere para o atributo, ou seja, para o adjetivo.

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O vocabulário é o arsenal de um escritor. É através dele que entramos em contato com o seu mundo interior, com as suas idiossincrasias como a sua formação, com o seu gosto, com a sua cultura. É, na obra literária, o primeiro sinal da personalidade do autor. Pela escolha das palavras ele nos dá a medida do seu gosto e da sua sensibilidade estética. É verdade que o gênero e o assunto escolhido podem determinar uma mudança no sentido de maior sobriedade ou riqueza de palavras. Pode, inclusive, exigir uma variação hierárquica — digamos assim — do vocabulário, dentro da área social da língua, num movimento bipolado entre o nobre e o plebeu, o culto e o vulgar, o erudito e o corrente.

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As formas apassivadoras, como já dissemos, além da sua índole vulgar, destonificam a frase, quebram-lhe a energia, amortecem-lhe o ímpeto e a força verbal.

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A antítese é uma das figuras mais caras às preferências pessoais do escritor. Ela não se situa apenas na base do seu raciocínio, como um recurso de expressão de que procura tirar os melhores efeitos, mas também na visão da realidade, na escolha dos temas, na sua própria consciência, que parecia comprazer-se nesse jogo antitético dos contrastes e dos confrontos.

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As palavras em Euclides da Cunha — disse-o magistralmente Franklin de Oliveira — “dilaceram-se, suam sangue entre mandacarus, chique-chiques, cabeças de frade. Prosa de caatinga e carrascais, agreste, rude”.

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Dentro de uma classificação geral, costuma-se dividir em dois grupos os escritores que se distinguem quanto à maneira de escrever. O primeiro grupo, onde vamos encontrar a grande maioria dos escritores de ficção, reúne todos aqueles para os quais a forma não constitui um elemento primacial na elaboração da obra de arte, como uma realidade em si, capaz de galvanizar a sensibilidade do leitor. Na generalidade, são escritores em que a imaginação criadora é maior do que a imaginação verbal. O segundo grupo, formando uma casta que se vai tornando cada vez mais rara, é constituído de escritores que porfiam em marcar a crosta verbal com os artifícios de uma prosa esmeradamente trabalhada, onde a palavra, à margem da sua função de signo lingüístico, cumpre igualmente uma missão estética relevante no contexto da obra literária.

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Gustavo Lanson distinguia esses dois tipos de escritores com as designações de “boa prosa” e “bela prosa”. Hoje podemos acrescentar a esses dois um terceiro grupo, cuja linguagem eu chamaria, à falta de melhor denominação, de “insólita prosa”. É o dos escritores que, não satisfeitos com os recursos que a língua oferece, criam a sua própria linguagem, inventam formas inusitadas e expressão, compõem um estranho vocabulário com elementos da língua comum ou tomados de empréstimo a outras línguas. A diferença ente os grandes estilistas do passado e os escritores deste último grupo — família recente e bastante rara de inovadores literários — é que os primeiros se restringem apenas à orquestração dos elementos plásticos e rítmicos da língua, ao desenho exterior dos torneios fraseológicos, explorando todas as combinações lexicográficas sem jamais atingir a língua na sua unidade orgânica, ao passo que estes últimos operam tanto extrinsecamente com na infra-estrutura, nas camadas mais profundas do idioma, realizando um trabalho que não é apenas o do cinzelador da frase, do lapidário da forma, mas do bruxo que inventa e reelabora o material recolhido a partir da estrutura idiomática.

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Mas Franklin de Oliveira desfez o equívoco: “Os valores presentes à trama estilística de Rosa (aliterações, assonâncias, consonantismos, neologismos, onomatopéias, restauração de arcaísmo, inversões sintáticas, incorporação de giros sintáticos de outras línguas à sua dicção, etc.) não informam a estrutura da prosa de Adonias, que tem substantividade própria, assentada em dois valores; a incisidade e a liricidade. Sua frase nunca se espraia. Sua frase nunca se espraia: curta, cortante, de contorno geométrico. E quando se espraia é para se sustentar no emprego do gerúndio, tempo verbal que distende a ação e, nesta distenção, busca uma duração psicológica parada, adinâmica. Seu universo fraseológico é unicelular; já o de rosa organiza-se em múltiplas camadas de significação. (p.24) Não sei como e onde encontrar a parecença propalada”.

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A estrutura frasal tangencia o verso, chegando às vezes a confundir-se com ele. O que não significa subordinação do elemento lírico ao ritmo versificatório na prosa de Adonias Filho, pois sua liricidade, como se sabe, independe do verso para produzir a sua eficácia. O emprego de formas elípticas, o uso reiterado e multiforme do gerúndio, a justaposição de unidades autônomas no período, a linha melódica decorrente da seqüência triádica da frase, eis alguns elementos de que se vale o escritor para criar a atmosfera poética dentro do clima de tragédia que percorre as sagas sertanejas trasladadas para os seu romances. Por outro lado, o ritmo interno da narrativa, com os seu silêncios e as suas pausas, habilmente conduzidos, concorre para intensificar o clima lírico que frequentemente envolve a sua prosa.

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Em toda a obra de Guimarães Rosa, no que concerne à linguagem, vislumbramos o autor como um relojoeiro na sua oficina, todo entregue ao sofrido e delicado trabalho de fabricar, ele próprio, as peças destinadas à montagem do complexo e insólito mecanismo do seu estilo. (p.33) Na elaboração de tão rico instrumento de expressão, teve o escritor, como se sabe, de recorrer a outras línguas, tomando-lhes de empréstimo palavras que melhor servissem às suas intenções poéticas, apenas como ligeira adaptação ao português, ou compondo com elas uma terceira palavra (um dos exemplos mais expressivos desse hibridismo lingüístico é o vocábulo Sagarana, já decomposto por Franklin de Oliveira: saga, radical germânico — criação verbal a serviço do épico; rana, sufixo tupi — à maneira de...). Nas listas enviadas por Edoardo Bizzarri encontra-se uma que outra palavra gratuita, explicável apenas pela sensação lúdica que levou o autor a inventá-la, numa concorrência ao dicionário. Gratuitas, porém, não arbitrárias. A gratuidade pura não existe em lingüística, pois há sempre uma intenção subconsciente quando outra não seja, uma intenção poética. Muito à puridade, numa dessas cartas, confessava Guimarães Rosa que a expressão “Aí, Zé, opa!”, empregada na novela Cara-de-Bronze, é um desabafo lúdico, pessoal e particular brincadeira do autor”, e que deve ser lida de trás para diante — “apo éZ ia”, ou seja a poesia. Outra explicação curiosa é a que nos oferece da expressão nem conjo, nem conja (nem marido, nem mulher), por ele inventada, pois trata-se de uma forma apocopada de cônjuge, palavra erudita, com a diferenciação de gênero feita pelo escritor com evidente intenção burlesca. Aliás, na sua obra existem numerosos exemplos desse recurso popular de reduzir as proparoxítonas. Às vezes Guimarães Rosa enamorava-se da palavra pelo seu aspecto físico, ou pela sua sonoridade, ou ainda pelo impacto que pudesse produzir no leitor — “mexendo com o seu subconsciente” — e empregava-a independentemente de qualquer conteúdo lógico, guardando apenas uma remota relação semântica com as suas origens (que tanto podia vir do tupi, como do latim ou do grego, ou mesmo de outras línguas ou do português arcaico); ou sem nenhum antecedente etimológico, de que é exemplo a palavra trapatrava, que ele confessa ser pura maluqueira (conferindo-lhe todavia uma conotação mágica, uma espécie de abracadabra).

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Josué Montello já havia chamado a atenção para esse aspecto da sua atividade criadora, assinalando que o “Rosa dos primeiros escritos é essencialmente um lógico, senhor da clareza instantânea, dono de um estilo límpido e de comunicação direta. Depois de Sagarana — continua Montello — assistimos à gradativa evolução do escritor — do lógico para o mágico. Sobretudo em Tutaméia essa evolução salta aos olhos”. E conclui: “Para meu gosto pessoal, é em Grande Sertão que ele alcança a sua linha de equilíbrio.”

35
Como artista, ele está, inteiro, nesta definição de Otávio de Faria: “o homem que amou a palavra e soube ama-la”. Os nomes, por exemplo, exerciam sobre o escritor um poder mágico, que o prendia e enlaçava com toda a sua força encantatória. No seu discurso de posse na Academia Brasileira ele diria: “..tudo quanto há com nomes me apanha”. A Antônio Callado ele disse que começara a assinar suas produções apenas como J.G. Rosa. Depois passara a assinar J. Guimarães Rosa. Finalmente — completou ele com sua justa e atraente imodéstia — “descobri que o perfeito, o lindo, era o nome inteiro, que soa tão certo: João Guimarães Rosa”. No seu gabinete de trabalho tinha um lista telefônica de Palermo, que vez ou outra percorria para se deliciar com os nomes e sobrenomes italianos e, naturalmente, também em busca de sugestões para a sua alquimia lingüística. Numa das cartas ao professor Bizzarri, a propósito da palavra sirga, diz o seguinte: “Você sabe, por exemplo, que sirga existe, mesmo; mas escolhi-a também pela beleza que achei no nome, pouco comumente usado (sirga = corda com que se puxa embarcação, ao longo da margem)”.

É desse jeito mesmo. Por algum motivo nada entre as páginas que se seguem não me atraíram a atenção, quando li o livro. Motivos que hoje em 2009 já desconheço. Jamais deixei um livro sem lê-lo por completo. Portanto, não indica que não foram lidas estas páginas. Foram lidas com toda a certeza.

147
A verdade é que ninguém pode oferecer receitas para um bom romance, ou simplesmente para um romance. Há dois elementos fundamentais na estrutura interna de toda obra de ficção, relacionados com a dicotomia estática-movimento: são a memória e a imaginação. A predominância de um sobre o outro é que determina a mudança do eixo, isto é, a tônica sobre a qual recai o ritmo interior ou exterior da ação novelesca. Temos observado — e não é outra coisa que nos revela a literatura de todas as épocas — , que o escritor dotado de maior imaginação tende, via de regra para o romance de intriga. Por outro lado, não é raro encontrarmos romances em que os dois elementos se graduam ou se fundem harmonicamente.

147
A carência de imaginação tanto pode conduzir o romancista à introspecção, a uma concentração sobre si mesmo, em mergulhos nos abismos do ser, como à enfatização da forma, ao brilho externo e falso do estilo, o que (p.148) é, em última análise, uma contrafação da obra em termos de criação literária.

148
Eu prefiro dizer que anovela de Hoffmann tende mais para a sondagem psicológica do que parra a exploração subjetiva em profundidade. A diferença está em que o processo de sondagem empregado pelo autor não tem como centro a vida interior dos personagens, embora esta não lhe seja indiferente. A sua análise opera na superfície, começa no exterior e, aos poucos, vai calando levemente os instrumentos de prospecção, sem contudo atingir o mistério que se oculta nos ângulos sombrios da história. É nisso que consiste o segredo da arte nesse tipo de romance: não abrir todas as portas ao leitor.

149
Nos romances ditos psicológicos, onde o tempo não serve de baliza ao ritmo da ação, o mundo exterior é visualizado de dentro para fora, por um processo de fragmentação da realidade. Daí aquela sensação de imobilismo que os torna, geralmente, monótonos e enfadonhos. Graças ao método adotado pelo autor de A Superfície, a sua novela não se detém nessa região sem gravidade do espaço psíquico, nem se perde em demoradas e profundas escavações introspectivas.

149
Aliás, a perspectiva interna já vem limitada pelo emprego da primeira pessoa, processo que reduz o ângulo de visão, circunscrevendo-o apenas aos fatos documentados pela observação do narrador.

149
Hoffmann empregou a técnica do período longo, processo que, à maneira proustiana, lhe pareceu mais adequado ao enfoque em diagonal. A frase longa como que ajuda a sustar o fluxo da memória, o instante que o romancista deseja reter e prolongar no tempo psicológico. Entretanto, quando o autor não a submete à disciplina da composição, corre o risco de se tornar obscuro, como ocorre em várias passagens de A Superfície.

159
Creio que ainda não se escreveu em língua portuguesa um romance cuja ação se desenrolasse em espaço tão limitado, entre as quatro paredes de um cárcere, com uma única alternativa para a ida ao Pátio uma vez por mês, para o banho corporal. Mas o romance, que perde em movimento exterior, ganha em intensidade, em ação interior. E é exatamente aí que podemos avaliara os recursos de expressão do romancista, o seu extraordinário poder de escavação e sondagem nas galerias mais recônditas do ser. É nesse microcosmo que lê analisa as reações do único personagem deste romance, não se levando o ratinho que às vezes o acompanha e os outros presos, de cuja presença só tomamos conhecimento através dos gritos, ou melhor, dos grunhidos que eles emitem. Não se trata, porém, apenas de exploração no mundo interior do personagem, depura introspecção, sem rebates na superfície das percepções transubjetivas. Na urdidura da história se alternam as sondagens psíquicas ou anímicas e a vida emergente no plano da realidade exterior, graças a uma técnica bem dosada, em que a linguagem encontra o seu módulo próprio, a sua dicção específica, rigorosamente ajustada à natureza da narrativa, resguardando-se daquele imobilismo do estilo de mascar chiclete, tão comum na prosa remoída das chamadas análises introspectivas.







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