sábado, 5 de abril de 2014

MERECE SER LEMBRADO 9


A TEMPESTADE


Havia no mar imenso uma ilha deserta quase, pois seus únicos habitantes eram um velho chamado Próspero e sua bonita filha Mira. Tinha esta moça vindo tão pequena para a ilha que não se lembrava de ter visto rosto humano senão o de seu pai.
Morava numa gruta dividida em várias peças das quais uma servia de gabinete de trabalho ao velho. Guardava ele aí os seus livros que tratavam de magia, coisas que nesses tempos todos os sábios e alquimistas estudavam.
Esta arte tinha sido útil a Próspero, pois convém dizer que nessa ilha é que fora desembarcada a velha feiticeira Cycorax, expulsa da terra firme por suas imensa maldades e infernais práticas. Pôde ele então libertar vários bons espíritos que a feiticeira antes de morrer prendera em troncos de árvores e dominar outros maus, entre os quais o filho da megera que ele fez seu escravo e que empregava nos trabalhos pesados.
Entre os bons espíritos havia Ariel (invisível a todos menos a Próspero); não tinha defeitos salvo o de implicar com o filho da feiticeira, o qual nada queria saber de bom e de útil. Ariel, espírito fino e delicado, incapaz de executar os maléficos desígnios de Sycorax, fora encerrada numa das árvores da ilha e daí o tirara Próspero.
Para importunar Caliban — assim se chamava o filho da feiticeira — Ariel às vezes se disfarçava em macaco, para fazer-lhe caretas, outras vezes empurrava-o pelas costas para ele cair nalguma poça d’água ou virava porco espinho, o que fazia um tremendo e cômico terror a Caliban.
Ariel era pois o intermediário do velho e o excutor de suas vontades sobre os outros espíritos. Por suas ordens eles desencadearam uma formidável tempestade e o velho chamando a filha, mostrou-lhe um navio lutando com a sondas que o ameaçavam tragar; disse à filha que o navio estava cheio de gente viva, semelhante a ele e a ela, e Mira exclamou:
— Oh! Meu pai, se foi por vossa arte mágica que se levantou tão tremenda tempestade, tende pena deles! Vão morrer! Ah! Se eu pudesse evitar o naufrágio...
— Não te aflijas, filha; foi por tua causa que fiz isso. Tu nada sabes, de nada te lembras, pois para aqui vieste com três anos apenas de idade. Tu não sabes quem és, donde vieste e de mim só sabes que sou teu pai e vivemos nesta gruta onde tens crescido.
— Há uma coisa de que me lembro, pai; de muitas damas que me cercavam.
— E de quem mais? Conta-me, filha.
Mira respondeu:
— Só tenho lembranças vagas... mas sei que o estimo muito, meu pai. Não sei mais nada.
— Pois eu te digo: Eu era duque de Milão, tu princesa e minha única herdeira. Eu tinha um poderoso inimigo, o rei de Nápoles.
Confiado, entreguei todos os cuidados do governo a meu irmão Dom Antônio e vivia para o meus estudos sem ambições que não fossem tua ventura e meus livros. Meu irmão aproveitou um passeio que fizemos ao mar para me armar e a ti a mais iníqua das traições. Quando estávamos a bordo mandou agarrar-nos e por à força num pequeno barco, sem mastros e sem vela e nos abandonou à mercê das ondas. Felizmente, um certo Gonçalo que me era dedicado, sabendo da traição, pusera às escondidas, no barco, uma cartola com água, bolacha, roupa, alguns objetos e meus preciosos livros de magia branca e preta.
— E eu gritei muito, papai?
— Não, minha filha. Foste o meu anjo da guarda e tua inocência e confiança em mim deram-me ânimo e fiz frente à adversidade. O navio que nos deixara abandonados sumiu-se no horizonte mas o nosso barco no dia seguinte encalho tranquilamente numa praia desta ilha. Estávamos salvos e daí em diante minha única alegria tem sido dar-te bela educação.
— Mas, meu querido pai, disse Mira, que não perdia de vista o navio balançando assustadoramente nas vagas, por que fizeste soprar tal tempestade?
— É que este temporal vai entregar meus inimigos às minhas mãos. Vão encalhar aqui o rei de Nápoles e o meu perverso irmão. Vou vingar-me à minha moda.
Como Mira manifestasse receio por causa do vento horrível que fazia, ele tocou-a com a varinha mágica e ela ficou em profundo sono.
Nisto apareceu o gracioso Ariel que vinha contar o que fizera, isto é, a tempestade e o modo porque tratara a tripulação do navio
— Então, o que fizeste, meu bravo Ariel?
Este descreveu o terror da gente e dos marinheiros. Disse que Fernando, filho do rei de Nápoles, tinha-se atirado ao mar julgando que o navio batera num cachopo e já se afundava — “O irmão já o julga morto mas eu o deixei são e salvo, num recanto dos rochedos, sentado e triste chorando a morte de seu pai que ele acredita estar afogado”.
— Nada sofreu, o Fernando?
— Nada, apenas está com os cabelos e roupas principescas inteiramente encharcadas.
— Está bem, Ariel. Vai busca-lo pois quero que minha filha o veja, mas dize-me antes o que fazem o rei e meu mau irmão?
— Procuram Fernando que aliás não têm esperança de encontrar pois o viram sumir-se no mar. não falta marinheiro algum porque cada qual está salvo, só, sem ver os outros. O navio está no porto, mas ele não o vêem.
— Estou contente, Ariel, mas ainda tens alguma coisa a fazer.
— E depois, serei livre?
— Tens pressa ou já queres ser ingrato? Não te lembras da velha Sycorax e não te libertei? Trabalha e depois te deixarei ir para onde quiseres, meu dedicado Ariel. Vai.
Ele partiu e encontrou Fernando, no mesmo lugar, macambúzio e apalermado. Para tira-lo deste embrutecimento, Ariel lhe disse:
— Meu jovem senhor, é preciso mover-se. Tenho que o apresentar à princesa Mira que o quer conhecer. Siga-me, sim?
E Ariel pôs-se a cantar. O náufrago não o via mas se deixou guiar pela extravagante cantiga em que se falava de seu pai afogado no fundo do mar. guiando-se pela maviosa voz foi ter junto de uma árvore a cuja sombra estavam assentados Próspero e sua filha Mira.
Dizia a cantiga:

Nas águas fundas afinal.
Já teu pai foi descansar;
Mudou os ossos em coral,
Em pérola o olho vai ficar
Vem. Não estás tu escutando
Das cem Ondinas a canção?
Ei-las que estão já badalando
Dingue, dim, dão! Dingue, dim, dão!

Como dissemos, Mira não conhecia do gênero humano masculino senão seu pai. Próspero perguntou-lhe:
— Mira, que vês caminhar para nós?
— Penso que seja um espírito. Como é belo! É espírito, meu pai?
— Não, minha filha, é um vivente e um mortal, portanto. Come e dorme como nós. Este mancebo que tem o rosto cheio de tristeza, estava a bordo do navio que vimos há pouco. Perdeu seus companheiros e de certo os procura.
Mira julgava que todos os homens tinham o rosto enrugado e a barba grisalha com seu pai e por isso ficou encantada com a elegância do príncipe, e Fernando ao ver tão linda jovem, já absorto pela música que ouvira, julgou estar numa ilha maravilhosa e que ela era uma deusa. Notou depois seu engano.
Próspero viu com júbilo que os dois jovens se admiravam reciprocamente e para pôr em evidência as qualidades de Fernando, resolveu suscitar-lhe obstáculos. Disse-lhe então, em tom severo, que o tomava por um espião.
— Sim, pareces ser um malfeitor que tem maus desígnios. Segue-me e vou prender-te pelo pé e pelo pescoço. Beberás água do mar e comerás mexilhões crus.
— Pois sim! Exclamou Fernando, antes disso eu regularei meus negócios com esta espada. E, puxando-a avançou para Próspero.
Este com um gesto de sua vara mágica fixo-o de tal maneira no solo que ele não pôde dar um passo. Mira falou então:
— Meu bom pai, tenha piedade dele, parece ser digno de confiança.
— Silêncio, filha. Vamos, amigo, segue-me. Bem Vês que não me podes desobedecer.
— Na verdade, minhas faculdades estão interditas, mas não poderei esquecer tão bela jovem.
E ficou olhando para Mira, durante algum tempo.
Próspero, para mais o experimentar, fez, com que Fernando se entregasse ao trabalho de amontoar lenha e fazendo-se invisível acompanhou sua filha.
Esta foi ter com o moço, toda penalizada de o ver nesse labor e lhe disse, vendo-o fatigado e suando a bom suar.
— Olhe! Descanse um pouco.
— Não ouso fazer isso, respondeu Fernando, antes de concluir o trabalho.
— Sente-se, não faz mal; eu o ajudarei para concluir o serviço mais depressa.
— Oh! Não. Magoaria suas belas mãos dignas de uma rainha.
Próspero que ouvia o doce colóquio de ambos e via os seus olhares apaixonados, falou consigo:
— Creio que minha filha será rainha de Nápoles.
Ao depor no chão o último toro de lenha, disse o príncipe limpando as bagas de suor que lhe orvalhavam a bela fronte:
— Está pronto o serviço. Dizei-me agora se aceitas uma proposta, perguntou o moço, tomando uma das mãos de Mira.
— Qual? Gostaria de saber...
— Eu ainda não vos disse quem sou e o que faço agora. Sou o príncipe Fernando, herdeiro da coroa de Nápoles, e rogo que aceites ser a futura rainha. Aceitas?
Mira respondeu:
— Receio ofender os preceitos de meu querido pai; se porém tiver liberdade de escolher alguém só a vós escolherei.
Próspero então tornou-se visível e disse:
— Nada receies minha filha, não te contrariarei e se te tratei severamente, Fernando, foi somente para experimentar tua nobreza de alma e constância. Ela será tua esposa.
Deixou os dois jovens em alegre conversa e foi ter com Ariel que já voltava de sua expedição.
Contou ele que encontrara o rei de Nápoles e o duque Antônio, muito afobados, lastimando-se muito e se recriminando reciprocamente.
Narro mais Ariel que vendo os dois náufragos tão pesarosos, sedentos e esfomeados, fizera subitamente aparecer-lhes, diante dos olhos, uma mesa bem servida de carnes, vinhos e doces; quando eles se dispunham a comer fez desaparecer tudo e ele surgiu, metamorfoseado em harpia, com asas, amedrontando os dois. Disse-lhe Ariel que eles estavam pagando os pegados que tinham cometido e a perversidade de terem deixado Próspero e sua filha, num barquinho, sem comida, nem bebida, no meio do oceano.
Contou o malicioso Ariel que os dois se arrependeram sinceramente e que os achava dignos de perdão; à vista disso Próspero lhe disse:
— Vai buscá-los então; já os perdoei e tenho para mim que alcancei a vitória.

Ariel voltou dentro em pouco trazendo os dois desconsolados náufragos e o seu escudeiro, o velho Gonçalo; vinham seguindo a voz harmoniosa de espírito invisível. O escudeiro foi o primeiro a reconhecer Próspero e a ajoelhar-se aos seus pés, chorando de alegria. Viram logo os dois que estavam diante de sua vítima.
Antônio, em lágrimas, implorou o perdão de seu irmão e o rei de Nápoles declarou estar arrependido de ter ajudado Antônio a apossar-se do trono do duque. Tomaram ambos o compromisso de repor a Próspero no ducado.
Disse-lhes então Próspero que também ia fazer um magnífico presente e, levantando uma cortina mostrou Fernando que jogava xadrez com a princesa Mira.
Foi enorme a alegria que reinou na gruta. Pai e filho se abraçaram com carinhosa emoção.
— Quem é esta nobre e bela jovem? Perguntou o rei de Nápoles. Será a fada que nos separou e agora nos reúne?
— Não senhor, respondeu Fernando sorrindo. Também pensei que fosse, não fada mais uma deusa quando vi Mira pela primeira vez. É mortal e minha querida prometida; é filha do duque Próspero de Milão.
— Eu terei prazer em pedir-lhe desculpas de tanto mal que fiz, retorquiu o rei beijando a mão da princesa.
— Esqueçamos o passado. O presente é consolador. Abracemo-nos com efusão e alegria.
Todos se abraçaram e apertaram as mãos cordialmente. Mira e o pai não esquecera de apertar contra o peito o velho escudeiro que os ajudara quando foram deixados em pleno mar.
Dormiram bem e no dia seguinte, Próspero lhes disse que o navio esta no porto pronto a se fazer de vela; Ariel os levara, aos marinheiros, um a uma para bordo.
Ofereceu aos seus hóspedes um bom almoço que foi servido por Caliban, tendo todos admirado o aspecto disforme e rebardativo do filho da velha feiticeira.
Próspero e Mira prepararam-se para a partida levando alguns pássaros e pequenos objetos de uso na ilha. Depois Próspero mandou cavar um grande buraco pelo seu criado e enterrou todos os livros de astrologia e mágica.
Por fim chamou o pequenino e gracioso Ariel e lhe disse:
— Sinto separar-me de ti mas dou-te inteira liberdade. Vai para os pomares e jardins brincar com as abelhas e as flores.
— Antes, porém, meu venerando mestre, peço permissão de acompanhar o navio que vos leva à boa Mira, com os ventos e brisas favoráveis da primavera. Depois irei gozar a minha vida alegre de beija-flor.
O navio fez-se de vela e alcançou depressa a terra firme onde grandes festejos anunciaram o regresso de Próspero que assumiu o governo do seu ducado e se reconciliou publicamente com seu irmão.
O rei declarou que o casamento de Mira e Fernando seria celebra em Nápoles, com grande pompa; embarcaram todos de novo e fizeram feliz viagem graças aos cuidados do bom Ariel, que não os esquecia.
A ilha, essa, ficou dessa vez deserta ou habitada somente pelos maus espíritos.
Mira e Fernando foram muito felizes.





O título do livro é A ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.

O livro inicia-se com

AO LEITOR.

Mais um livro de histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência, o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a única no Brasil.
O presente volume que foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.

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