A TEMPESTADE
Havia no mar imenso uma
ilha deserta quase, pois seus únicos habitantes eram um velho
chamado Próspero e sua bonita filha Mira. Tinha esta moça vindo tão
pequena para a ilha que não se lembrava de ter visto rosto humano
senão o de seu pai.
Morava numa gruta
dividida em várias peças das quais uma servia de gabinete de
trabalho ao velho. Guardava ele aí os seus livros que tratavam de
magia, coisas que nesses tempos todos os sábios e alquimistas
estudavam.
Esta arte tinha sido
útil a Próspero, pois convém dizer que nessa ilha é que fora
desembarcada a velha feiticeira Cycorax,
expulsa da terra firme por suas imensa maldades e infernais práticas.
Pôde ele então libertar vários bons espíritos que a feiticeira
antes de morrer prendera em troncos de árvores e dominar outros
maus, entre os quais o filho da megera que ele fez seu escravo e que
empregava nos trabalhos pesados.
Entre os bons espíritos
havia Ariel (invisível a todos menos a Próspero); não tinha
defeitos salvo o de implicar com o filho da feiticeira, o qual nada
queria saber de bom e de útil. Ariel, espírito fino e delicado,
incapaz de executar os maléficos desígnios de Sycorax,
fora encerrada numa das árvores da ilha e daí o tirara Próspero.
Para importunar Caliban
— assim se chamava o filho da feiticeira — Ariel às vezes se
disfarçava em macaco, para fazer-lhe caretas, outras vezes
empurrava-o pelas costas para ele cair nalguma poça d’água ou
virava porco espinho, o que fazia um tremendo e cômico terror a
Caliban.
Ariel era pois o
intermediário do velho e o excutor
de suas vontades sobre os outros espíritos. Por suas ordens eles
desencadearam uma formidável tempestade e o velho chamando a filha,
mostrou-lhe um navio lutando com a sondas que o ameaçavam tragar;
disse à filha que o navio estava cheio de gente viva, semelhante a
ele e a ela, e Mira exclamou:
— Oh! Meu pai, se foi
por vossa arte mágica que se levantou tão tremenda tempestade,
tende pena deles! Vão morrer! Ah! Se eu pudesse evitar o
naufrágio...
— Não te aflijas,
filha; foi por tua causa que fiz isso. Tu nada sabes, de nada te
lembras, pois para aqui vieste com três anos apenas de idade. Tu não
sabes quem és, donde vieste e de mim só sabes que sou teu pai e
vivemos nesta gruta onde tens crescido.
— Há uma coisa de
que me lembro, pai; de muitas damas que me cercavam.
— E de quem mais?
Conta-me, filha.
Mira respondeu:
— Só tenho
lembranças vagas... mas sei que o estimo muito, meu pai. Não sei
mais nada.
— Pois eu te digo: Eu
era duque de Milão, tu princesa e minha única herdeira. Eu tinha um
poderoso inimigo, o rei de Nápoles.
Confiado, entreguei
todos os cuidados do governo a meu irmão Dom Antônio e vivia para o
meus estudos sem ambições que não fossem tua ventura e meus
livros. Meu irmão aproveitou um passeio que fizemos ao mar para me
armar e a ti a mais iníqua das traições. Quando estávamos a bordo
mandou agarrar-nos e por à força num pequeno barco, sem mastros e
sem vela e nos abandonou à mercê das ondas. Felizmente, um certo
Gonçalo que me era dedicado, sabendo da traição, pusera às
escondidas, no barco, uma cartola com água, bolacha, roupa, alguns
objetos e meus preciosos livros de magia branca e preta.
— E eu gritei muito,
papai?
— Não, minha filha.
Foste o meu anjo da guarda e tua inocência e confiança em mim
deram-me ânimo e fiz frente à adversidade. O navio que nos deixara
abandonados sumiu-se no horizonte mas o nosso barco no dia seguinte
encalho tranquilamente numa praia desta ilha. Estávamos salvos e daí
em diante minha única alegria tem sido dar-te bela educação.
— Mas, meu querido
pai, disse Mira, que não perdia de vista o navio balançando
assustadoramente nas vagas, por que fizeste soprar tal tempestade?
— É que este
temporal vai entregar meus inimigos às minhas mãos. Vão encalhar
aqui o rei de Nápoles e o meu perverso irmão. Vou vingar-me à
minha moda.
Como Mira manifestasse
receio por causa do vento horrível que fazia, ele tocou-a com a
varinha mágica e ela ficou em profundo sono.
Nisto apareceu o
gracioso Ariel que vinha contar o que fizera, isto é, a tempestade e
o modo porque tratara a tripulação do navio
— Então, o que
fizeste, meu bravo Ariel?
Este descreveu o terror
da gente e dos marinheiros. Disse que Fernando, filho do rei de
Nápoles, tinha-se atirado ao mar julgando que o navio batera num
cachopo
e já se afundava — “O irmão já o julga morto mas eu o deixei
são e salvo, num recanto dos rochedos, sentado e triste chorando a
morte de seu pai que ele acredita estar afogado”.
— Nada sofreu, o
Fernando?
— Nada, apenas está
com os cabelos e roupas principescas inteiramente encharcadas.
— Está bem, Ariel.
Vai busca-lo pois quero que minha filha o veja, mas dize-me antes o
que fazem o rei e meu mau irmão?
— Procuram Fernando
que aliás não têm esperança de encontrar pois o viram sumir-se no
mar. não falta marinheiro algum porque cada qual está salvo, só,
sem ver os outros. O navio está no porto, mas ele não o vêem.
— Estou contente,
Ariel, mas ainda tens alguma coisa a fazer.
— E depois, serei
livre?
— Tens pressa ou já
queres ser ingrato? Não te lembras da velha Sycorax e não te
libertei? Trabalha e depois te deixarei ir para onde quiseres, meu
dedicado Ariel. Vai.
Ele partiu e encontrou
Fernando, no mesmo lugar, macambúzio e apalermado. Para tira-lo
deste embrutecimento, Ariel lhe disse:
— Meu jovem senhor, é
preciso mover-se. Tenho que o apresentar à princesa Mira que o quer
conhecer. Siga-me, sim?
E Ariel pôs-se a
cantar. O náufrago não o via mas se deixou guiar pela extravagante
cantiga em que se falava de seu pai afogado no fundo do mar.
guiando-se pela maviosa voz foi ter junto de uma árvore a cuja
sombra estavam assentados Próspero e sua filha Mira.
Dizia a cantiga:
Nas águas fundas
afinal.
Já teu pai foi
descansar;
Mudou os ossos em
coral,
Em pérola o olho vai
ficar
Vem. Não estás tu
escutando
Das cem Ondinas
a canção?
Ei-las que estão já
badalando
Dingue, dim, dão!
Dingue, dim, dão!
Como dissemos, Mira não
conhecia do gênero humano masculino senão seu pai. Próspero
perguntou-lhe:
— Mira, que vês
caminhar para nós?
— Penso que seja um
espírito. Como é belo! É espírito, meu pai?
— Não, minha filha,
é um vivente e um mortal, portanto. Come e dorme como nós. Este
mancebo que tem o rosto cheio de tristeza, estava a bordo do navio
que vimos há pouco. Perdeu seus companheiros e de certo os procura.
Mira julgava que todos
os homens tinham o rosto enrugado e a barba grisalha com seu pai e
por isso ficou encantada com a elegância do príncipe, e Fernando ao
ver tão linda jovem, já absorto pela música que ouvira, julgou
estar numa ilha maravilhosa e que ela era uma deusa. Notou depois seu
engano.
Próspero viu com
júbilo que os dois jovens se admiravam reciprocamente e para pôr em
evidência as qualidades de Fernando, resolveu suscitar-lhe
obstáculos. Disse-lhe então, em tom severo, que o tomava por um
espião.
— Sim, pareces ser um
malfeitor que tem maus desígnios. Segue-me e vou prender-te pelo pé
e pelo pescoço. Beberás água do mar e comerás mexilhões crus.
— Pois sim! Exclamou
Fernando, antes disso eu regularei meus negócios com esta espada. E,
puxando-a avançou para Próspero.
Este com um gesto de
sua vara mágica fixo-o de tal maneira no solo que ele não pôde dar
um passo. Mira falou então:
— Meu bom pai, tenha
piedade dele, parece ser digno de confiança.
— Silêncio, filha.
Vamos, amigo, segue-me. Bem Vês que não me podes desobedecer.
— Na verdade, minhas
faculdades estão interditas, mas não poderei esquecer tão bela
jovem.
E ficou olhando para
Mira, durante algum tempo.
Próspero, para mais o
experimentar, fez, com que Fernando se entregasse ao trabalho de
amontoar lenha e fazendo-se invisível acompanhou sua filha.
Esta foi ter com o
moço, toda penalizada de o ver nesse labor e lhe disse, vendo-o
fatigado e suando a bom suar.
— Olhe! Descanse um
pouco.
— Não ouso fazer
isso, respondeu Fernando, antes de concluir o trabalho.
— Sente-se, não faz
mal; eu o ajudarei para concluir o serviço mais depressa.
— Oh! Não. Magoaria
suas belas mãos dignas de uma rainha.
Próspero que ouvia o
doce colóquio de ambos e via os seus olhares apaixonados, falou
consigo:
— Creio que minha
filha será rainha de Nápoles.
Ao depor no chão o
último toro de lenha, disse o príncipe limpando as bagas de suor
que lhe orvalhavam a bela fronte:
— Está pronto o
serviço. Dizei-me agora se aceitas uma proposta, perguntou o moço,
tomando uma das mãos de Mira.
— Qual? Gostaria de
saber...
— Eu ainda não vos
disse quem sou e o que faço agora. Sou o príncipe Fernando,
herdeiro da coroa de Nápoles, e rogo que aceites ser a futura
rainha. Aceitas?
Mira respondeu:
— Receio ofender os
preceitos de meu querido pai; se porém tiver liberdade de escolher
alguém só a vós escolherei.
Próspero então
tornou-se visível e disse:
— Nada receies minha
filha, não te contrariarei e se te tratei severamente, Fernando, foi
somente para experimentar tua nobreza de alma e constância. Ela será
tua esposa.
Deixou os dois jovens
em alegre conversa e foi ter com Ariel que já voltava de sua
expedição.
Contou ele que
encontrara o rei de Nápoles e o duque Antônio, muito afobados,
lastimando-se muito e se recriminando reciprocamente.
Narro mais Ariel que
vendo os dois náufragos tão pesarosos, sedentos e esfomeados,
fizera subitamente aparecer-lhes, diante dos olhos, uma mesa bem
servida de carnes, vinhos e doces; quando eles se dispunham a comer
fez desaparecer tudo e ele surgiu, metamorfoseado em harpia, com
asas, amedrontando os dois. Disse-lhe Ariel que eles estavam pagando
os pegados que tinham cometido e a perversidade de terem deixado
Próspero e sua filha, num barquinho, sem comida, nem bebida, no meio
do oceano.
Contou o malicioso
Ariel que os dois se arrependeram sinceramente e que os achava dignos
de perdão; à vista disso Próspero lhe disse:
— Vai buscá-los
então; já os perdoei e tenho para mim que alcancei a vitória.
Ariel voltou dentro em
pouco trazendo os dois desconsolados náufragos e o seu escudeiro, o
velho Gonçalo; vinham seguindo a voz harmoniosa de espírito
invisível. O escudeiro foi o primeiro a reconhecer Próspero e a
ajoelhar-se aos seus pés, chorando de alegria. Viram logo os dois
que estavam diante de sua vítima.
Antônio, em lágrimas,
implorou o perdão de seu irmão e o rei de Nápoles declarou estar
arrependido de ter ajudado Antônio a apossar-se do trono do duque.
Tomaram ambos o compromisso de repor a Próspero no ducado.
Disse-lhes então
Próspero que também ia fazer um magnífico presente e, levantando
uma cortina mostrou Fernando que jogava xadrez com a princesa Mira.
Foi enorme a alegria
que reinou na gruta. Pai e filho se abraçaram com carinhosa emoção.
— Quem é esta nobre
e bela jovem? Perguntou o rei de Nápoles. Será a fada que nos
separou e agora nos reúne?
— Não senhor,
respondeu Fernando sorrindo. Também pensei que fosse, não fada mais
uma deusa quando vi Mira pela primeira vez. É mortal e minha querida
prometida; é filha do duque Próspero de Milão.
— Eu terei prazer em
pedir-lhe desculpas de tanto mal que fiz, retorquiu o rei beijando a
mão da princesa.
— Esqueçamos o
passado. O presente é consolador. Abracemo-nos com efusão e
alegria.
Todos se abraçaram e
apertaram as mãos cordialmente. Mira e o pai não esquecera de
apertar contra o peito o velho escudeiro que os ajudara quando foram
deixados em pleno mar.
Dormiram bem e no dia
seguinte, Próspero lhes disse que o navio esta no porto pronto a se
fazer de vela; Ariel os levara, aos marinheiros, um a uma para bordo.
Ofereceu aos seus
hóspedes um bom almoço que foi servido por Caliban, tendo todos
admirado o aspecto disforme e rebardativo
do filho da velha feiticeira.
Próspero e Mira
prepararam-se para a partida levando alguns pássaros e pequenos
objetos de uso na ilha. Depois Próspero mandou cavar um grande
buraco pelo seu criado e enterrou todos os livros de astrologia e
mágica.
Por fim chamou o
pequenino e gracioso Ariel e lhe disse:
— Sinto separar-me de
ti mas dou-te inteira liberdade. Vai para os pomares e jardins
brincar com as abelhas e as flores.
— Antes, porém, meu
venerando mestre, peço permissão de acompanhar o navio que vos leva
à boa Mira, com os ventos e brisas favoráveis da primavera. Depois
irei gozar a minha vida alegre de beija-flor.
O navio fez-se de vela
e alcançou depressa a terra firme onde grandes festejos anunciaram o
regresso de Próspero que assumiu o governo do seu ducado e se
reconciliou publicamente com seu irmão.
O rei declarou que o
casamento de Mira e Fernando seria celebra em Nápoles, com grande
pompa; embarcaram todos de novo e fizeram feliz viagem graças aos
cuidados do bom Ariel, que não os esquecia.
A ilha, essa, ficou
dessa vez deserta ou habitada somente pelos maus espíritos.
Mira e Fernando foram
muito felizes.
O título do livro é A
ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não
foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um
nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA
QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.
O livro inicia-se com
AO LEITOR.
Mais um livro de
histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL
ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao
bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência,
o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a
única no Brasil.
O presente volume que
foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas
histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres
como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são
a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim
trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande
a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora
damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação
doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer
extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa
coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus
filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e
agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.
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