sábado, 5 de abril de 2014

MERECE SER LEMBRADO 13


Marfisa e a Ninfa das águas

À beira de um bonito lago moravam um velho pescador e sua mulher. Atrás da cabana se estendia vasta floresta que todos evitavam atravessar pois diziam-se habitada por malfeitores e fantasmas.
Estava o velho remendando as redes quando ouviu o tropel de um cavalo e viu um formoso cavaleiro que acabava de chegar. Estava ricamente vestido, com mando e chapéu de plumas raras. Tinha à cinta uma espada com os copos de ouro e montava um corcel muito branco.
O pescador tirou o chapéu e recebeu-o.
— Peço-te hospedagem para mim e meu cavalo, disse ele com voz calma.
— Sede benvindo, senhor. Deixai vosso cavalo nesse belo campo e entrai.
Junto ao fogão a mulher do pescador costurava e o cavaleiro não a deixou levantar-se.
Ela disse-lhe então:
— Sentai-vos, senhor, mas tende cuidado com a cadeira; tem um pé mal seguro.
Pouco depois os três conversavam com franqueza dizendo o cavaleiro que era dono de um castelo e se chamava Hildo. De súbto, pelas frestas da velha porta de madeira jorraram jatos de água enquanto fora se ouvia uma alegre risada.
— Desculpai, cavaleiro, é mais uma brincadeira de nosso filha Sereia. Por mais que a repreendamos está sempre a brincar com água e a fazer tolices. Mas é muito boa menina.
O moço sorriu e viu entrar uma jovem loura, maravilhosamente bonita, alegre e sem cerimônia. Logo perguntou:
— É esta?
A moça que estava no limiar da porta só então viu o cavaleiro e ficou séria; depois indagou:
— É seu hóspede, papai?
— Sim, filha; quase o molhaste com tuas brincadeiras.
Ela, depois de fitar Hildo algum tempo, exclamou, indo sentar-se perto dele:
— Ah! Bom cavaleiro! Diga-me como chegou até aqui a esta pobre cabana?
— Atravessei a floresta.
— Ah! Conte-me isso e tudo o que tem visto; eu gosto muito de ouvir histórias.
Nisto a mulher do pescador fez sinal à Sereia para que se calasse e fizesse algum trabalho.
Ela respondeu então, aproximando o seu tamborete da cadeira de Hildo.
— Eu farei minhas rendas aqui mesmo, ouvindo as histórias que o cavaleiro vai contar.
O pescador pediu ao moço que não as contasse pois já eram mais de oito horas da noite.
A moça vendo que o cavaleiro não contaria a sua viagem, zangou-se e disse:
— Eu quero que conte. Quero... Senão...
O pescador aborreceu-se com a insistência da filha e censurou-a; a mãe dela também a repreendeu e Sereia então respondeu, encolerizada:
— Pois se não querem contar... melhor, fiquem aí sozinhos nesta casinhola enfumaçada.
E, rápida, sem que a segurassem, lançou-se pela porta fora e desapareceu na escuridão da noite.
O cavaleiro e o pescador debalde a procuraram. O moço clamava com voz comovida: “Sereia, Sereia, volte, volte!”
Nada respondia.
Cansados voltaram à cabana e sentaram-se à mesa.
Disse então o pescador:
— Não fiqueis aflito por ela, pois não é a primeira vez que minha filha faz esta graça de zangar-se e fugir. Bebei um pouco de vinho e comei enquanto eu vos conto a minha história:
“ Há uns quinze anos, atravessei o lago e o bosque para ir vender peixe à cidade e deixei a minha mulher só, com uma única filha que tínhamos. Na volta, pensava em mudar-me quando a mulher veio ao meu encontro chorando e dizendo: Ah! Não temos mais filha! — o que! Lhe disse eu, onde está ela? Aí a mulher contou-me que fora até à beira do lago, e que a menina se debruçara no colo, batendo palmas, como se visse alguém dentro d’água. Depois, sem saber como, escorregou para o lago e se sumiu. Procuramos e nunca mais a vimos nem o corpozinho apareceu.
“Na tarde desse mesmo dia, continuou o velho, estávamos na cabana num silêncio doloroso quando ouvimos bater à porta e vimos, com espanto, uma gentil menina, de uns quatro anos, muito bem vestida e que sorria agradavelmente para nós. Só então reparei que a sua roupa estava molhada e gotejando os cachos louros. Demos-lhe uma bebida quente e a agasalhamos.
“Esta menina é Sereia. Não lhe demos este nome, pois queríamos que se chamasse Silvana. Porém ela teimou que era Sereia e Sereia ficou. Não me foi passível saber o nome dos pais e ela a esse respeito conta história extravagantes, de castelos de cristal, vestes ricas, etc.”
Nesta ocasião os dois homens prestaram atenção porque julgavam ter ouvido rumor. Era o riacho que passava perto e desaguava entre a cabana e o bosque, que estava cheio a ponto de tornar-se furiosa torrente.
— É Sereia, sim, senhor cavaleiro.
Uma tempestade se desencadeava fora levantando ondas no lago. Os dois homens, à luz da lua que surgira entre nuvens voltaram à beira do riacho gritando:
— Sereia, Sereia!
Ao clarear do dia pensou o cavaleiro que a moça estivesse do outro lado do riacho e dispôs-se a atravessa-lo. Cortou um forte galho de árvore e tentou a passagem.
— Cuidado! Cuidado! A corrente é perigosa!
O cavaleiro conheceu a voz da moça e continuou a vadear o regato, quando bem defronte, na ribanceira, viu a formosa donzela que o chamava.
— Ande! Venha contar-me tudo o que viu na floresta! Aqui está mais agradável que lá na cabana do papai.
Este avistara os dois e chamava aflito.
Ambos, de braços dado, desceram à margem. O cavaleiro pegou-a ao colo e levou-a até à choupana. O velho pescador e sua mulher beijaram a filha, chorando de alegria.
Pouco depois como Sereia insistisse em saber a sua viagem, Hildo fez a seguinte narrativa:
“Acho-me aqui por um capricho de mulher. Estive na semana passada em um torneio e entre as nobres damas conheci Marfisa, filha de um poderoso duque. Ela era muito orgulhosa, mas divinamente bela e parecia dar-me mais importância que aos outros cavaleiros. Para mostrar aos outros amigos que ela me preferia pedi-lhe uma luva.
“Darei uma das luvas, respondeu ela, se fores à floresta e me contares o que tiver acontecido”. Por isso pus-me a caminho ontem, pela manhã.
“Logo ao entrar na mata senti que o cavalo se espantava muito com os troncos de árvores e perto de um deles vi sair um vulto que dizia: Vai! Vai!”
“Depois esse vulto passou para traz do meu ginete que começou a correr em risco de bater nos galhos mais baixos e tropeçar. Por fim corríamos para um profundo abismo, no qual cairíamos quando um homem agigantado e todo de branco se lançou diante do cavalo e o fez parar. Vi aí que meu salvador era um riacho cuja água parecia de prata”.
O cavaleio fez uma pausa e notou que Sereia o ouvia muito atenta, com os olhos arregalados e brilhantes.
“Segurei-me bem ás rédeas, continuou Hildo, quando vi um anão a rir-se, feio de assustar, com um nariz enorme, um grande capuz e um chapéu na mão. Pôs-se diante do cavalo que se empinou tanto que quase caí.
“Joguei-lhe uma moeda de ouro no chapéu e ele deixou-me passar, rindo:
— Hi! Hi! Hi!
Galopei e o anão continuou a correr. Só me livrei dele quando esporei o cavalo como um louco e fugi.
“Nessa carreira via entre as árvores uma faixa nublada e branca que me parecia seguir e ao mesmo tempo me guiar, obrigando-me a retroceder. Quis transpor essa figura ou faixa branca, mas recebi um enorme jato de água; então retrocedi e vim ter ao caminho que me trouxe aqui. Voltei-me para ver a tal faixa branca e vi um gigante esbranquiçado que desapareceu depois que bati à porta desta cabana”.
Tal foi a narração do cavaleiro Hildo que Sereia ouviu com satisfação de certo ponto em diante. O cavaleiro quis voltar para o seu castelo nesse dia mesmo, mas o riacho crescera tanto que seria temeridade tentar a passagem para a outra margem.
O tempo chuvoso continuou muitos dias e o riacho ficava cada vez mais largo e fundo, de modo que a cabana estava isolada como que numa illha verdejante. A moça sentia-se contente, porque Hildo, assim, mais se demoraria e este, fascinado pela beleza de Sereia não tinha pressa. Nem se lembraria às vezes do regresso se não fora olhar para suas armas e ouvir o relinchar do seu valente cavalo.
Pensava o jovem que Sereia não podia ser senão de raça nobre e já ambos se amavam como noivos. Ele a adorava e achava graça nas travessuras que ela fazia e que a mulher do pescador repreendia com rabugice amigável.
O divertimento de Hildo era caçar patos e outras aves. Isto aborrecia Sereia que chorava, ficava zangada, mas depois se punha a rir para que Hildo não se afligisse.
Certa vez, à hora do jantar, viu o pescador que faltava vinho; como ir busca-lo à cidade? Mais triste ficou ele por não poder obsequiar o seu nobre hóspede. No ida seguinte, Sereia o chamou e lhe disse:
— Quanto me daria o pai se eu lhe arranjasse vinho?
— Um abraço, filha, um abraço.
— Aceito, mas em troca do vinho que vou dar quero que haja mais alegria nesta casa. Não quero nem gosto de tristezas. Vamos, Hildo; vamos papai.
— Onde, filha?
— Ali à praia. O riacho fez encalhar um barril e eu julgo que está cheio de vinho.
Lá estava na areia o barril mas era preciso andar depressa porque estava a cair outro tremendo temporal. Logo que começaram os dois homens a rolar o achado, sobreveio grosso aguaceiro e as águas do lago se encresparam como ondas do oceano. O regato transbordou, inundando tudo.
Felizmente o vinha era bom e restituiu calor e alegria a todos que se puseram a conversar; assim estava, ouvindo a mulher do pescador que contava um história de fadas. Quando ouviram bater à porta.
A solidão em que estava a cabana e a proximidade da floresta freqüentada por fantasmas, duendes e lobisomens, contribuíam para aumentar o susto dos habitantes da choupana ouvindo bater a tal hora. Ouviu-se outra pancada na porta e uma forte tosse.
Sereia, resoluta, falou em voz alta:
— Se sois espíritos maus da terra que vindes fazer maldades, podem ir. O Sr. Ribeiro vos deveria ter avisado.
Todos estavam assustados do ânimo de Sereia mas uma voz respondeu de fora:
— Não sou espírito da terra, mas espírito que habita corpo de gente. Se tendes bom coração abri-me a porta.
Sereia abriu-a e apareceu um velho sacerdote que julgou a principio, pela beleza da jovem, estar num lugar encantado. Viu depois que eram todos boa gente prestativa que lhe deram roupa para mudar pois estava encharcado, e bebidas quentes.
O padre contou então que viajava para a abadia em um barco, quando a tempestade o salteou no meio do lago. O batel virou e as ondas o atiraram para a praia; enquanto aos remeiros não sabia o que era feito deles.
— Ficareis conosco, disse o velho pescador.
— E por muitos dias, tornou o padre, pois há muito tempo que não vejo inundação como esta. Nem daqui a um mês se poderá atravessar a floresta.
Sereia, alegre, batia palmas.
— Por que fazes isso, filha?
— Sei porque é.
Hildo e o pescador também sabiam. Era a demora de Hildo que alegrava a moça.
O cavaleiro estava pensativo.
— Amanhã mesmo, nos unireis em casamento, respeitável padre, se o meu amigo pescador e a mulher consentirem.
Os dois velhos, embora esperassem isso há tempo, ficaram comovidos, sem poder falar. Consentiram e era muita honra que tinha, tartamudeou depois o pescador.
No dia seguinte, improvisando o altar, casaram-se os dois e o cavaleiro procurava tirar elos de sua cadeia de ouro para fazer alianças quando Sereia disse:
— Não precisa incômodo. Meus pais não me deixaram desprovida quando me mandaram longe.
Foi ao quarto e voltou com duas alianças de ouro.
Os dois velhos estavam admirados.
— Não se espantem. Estavam costuradas no meu vestido quando bati à vossa porta. Meus pais me proibiram de falar nisso antes de casar-me.
Depois, acesas as velas, o padre procedeu à cerimônia dizendo as palavras e perguntas do ritual.
Sereia estava trêmula, mas contente.
Asim passaram dias felizes; a jovem, no entanto, continuou cada vez mais brincalhona e maliciosa a ponto do padre fazer-lhe admoestações.
O marido perguntou-lhe um dia se acreditava na alma e ela disse rindo:
— Eu não sei se tenho alma.
Também ele quis saber uma vez que era aquele Ribeiro cujo nome ela pronunciara ao abrir a porta quando o padre batia.
Ela respondeu, rindo:
— São histórias, contos de fadas.
O padre, uma vez, disse ao ouvido do marido:
— Ame e guarde bem sua mulher. É digna do seu amor, mas tem, na vida, algum mistério.
Depois de casada Sereia tornou-se uma verdadeira dona de casa e perdeu o espírito infantil e folgazão. Pediu perdão aos velhos pescadores das coisas amalucadas que podia ter feito. Ficou uma criatura meiga e gentil, dedicada esposa e obediente para os que a tinham criado.
À tarde, uma vez, ela deu o braço ao marido e foi passear com ele.
O riacho estava tênue como um fio cristalino; ele, que andava tão cheio e perigoso!
O feliz casal atravessou-o com facilidade. Sereia levou o marido até o tronco onde ele a vira na primeira noite.
— Quero confessar-te uma coisa, pois já tenho alma e compreendo bem a tua e o bem que me fizeram os dois velhos da cabana. Eu não sou completamente igual às demais mulheres senão na forma. Assim como há espíritos maus, anões e duendes, fadas e silfos e outros espíritos da terra, há espíritos das águas: não te aflijas porque eu seja ou tivesse sido ninfa das águas; sou uma Ondina, uma Sereia. Se tu não me repelires, eu viverei sempre sob a forma humana. Não me abandones pois. Não te estantes que este regato seja meu tio, irmão de meu pai, um duque poderoso. Ele se transforma muitas vezes em homem e foi ele que te guiou até a cabana. É o Sr. Ribeiro.
O mancebo estava comovido.
— Agora, tu podes fazer de mim o que entenderes, se me abandonares me atirarei ao rio e meu tio me levará para junto de meus pais.
— Partiremos juntos, minha querida Sereia.
Uma hora depois, os dois e o padre se punham a caminho; ela montar o lindo cavalo branco e assim atravessaram a mata.
De repente a jovem viu que o padre conversava com alguém e reconheceu no homem todo de branco e capuz branco também o seu tio.
— Meu nome é Ribeiro, dizia ela, quando Hildo e a mulher o viram; tenho que dizer uma coisa à sombra que aí vem.
Aproximou-se e quis segredar algumas palavras ao ouvido da recém-casada; ela replicou:
— Não quero saber de mais nada.
— Pois não reconheceis o vosso tio Ribeiro, disse o estrangeiro, que vos trouxe à cabana? Não esqueçais que estou junto de vôos para evitar que os espíritos da terra vos façam qualquer má surpresa. O velho padre me reconheceu logo pois fui eu quem o salvou no lago e o conduziu à cabana onde estáveis.
— Bem. Muito vos agradeço mas já estamos no fim da floresta. Deixa-nos seguir nosso caminho em paz.
Estas palavras não agradaram ao tio Ribeiro que fez uma careta tal que a Sereia gritou. O cavaleiro puxou a espada e deu um golpe rápido como um relâmpago. A espada, no entanto, só encontrou para fender, a uma cascata que caía sobre a cabeça dos dois com um ruído semelhante a uma risada; Hildo e a mulher ficaram molhados até os ossos.
O desaparecimento de Hildo tinha sido muito comentado na cidade e como a inundação causara muitas vítimas, julgaram-no afogado. Só Marfisa, acabrunhada, é que mandara emissários à procura do cavaleiro. Também quando ele apareceu ao lado de uma bela mulher todos ficaram contentes, menos ela. Aparentou nada sentir e julgou, como os demais, ser a Sereia alguma princesa que Hildo libertara de alguma tirania.
Entre ambas nasceu séria afeição ou coisa parecida de modo a se tornarem boas camaradas. Ocultando talvez seus intentos, Marfisa procurou acompanhar sua feliz rival ao castelo de Hildo.
Uma vez estavam os três na praça principal junto da fonte quando um homem alto aproximou-se de Sereia saudando-a com respeito e dizendo-lhe baixinho um segredo. Ela levou-o para junto da fonte, ouviu-o atentamente e quando Hildo se levantou para saber o que era, ela bateu palmas com força e o homem sumiu-se nos arbustos próximos de repuxo.
— Quem é este estranho sujeito com quem falavas? Perguntou.
— Eu direi no dia de teu aniversário, Marfisa.
Hildo perguntou então:
— É o teu tio Ribeiro?
— Ele mesmo, respondeu Sereia. Trouxe-me uma boa notícia, mas peço-te que me deixes guardar a surpresa para depois de amanhã. Sim?!
Hildo esperou com certa ansiedade e justamente esse dia era a data natalícia de Marfisa.
A festa no palácio estava pomposa e muito concorrida. O palácio resplandecia de luzes e numerosos senhores e lindas damas dançavam alegremente. Os criados passavam pelos salões distribuindo doces e vinhos finos.
Sereia ia cantar e Hildo e Marfisa estavam aflitos para saber o que ela diria.
Na primeira canção a mulher de Hildo contou a história de um nobre duque recolhendo uma criança, como se dera com Marfisa; na outra canção cantava a tristeza dos pais na casa vazia, sem as crianças adoradas.
Marfisa, que compreendera, lhe disse, em lágrimas:
— Dize-me quem são meus pais. Anda, dize. Será aquela princesa ali? Será o marques de...?
Sereia voltou-se para aporta e mostrou-lhe um casal idoso; eram o velho pescador e a mulher, ali trazidos, não se sabe como, talvez pelo tio de Sereia.
— Eis a vossa filha, continuou Sereia, banhada em lágrimas, laçando Marfisa nos braços dos bons velhos.
Mas Marfisa não quis abraçar e encolerizou-se até. Aquilo não passava de um mistificação de sua feliz rival, para a mortificar mais.
A velha pescadora murmurou:
— Sinto em mim que é ela mesmo.
O pescador, vendo-a tão orgulhosa, dizia consigo mesmo:
— É ela, mas... antes fosse a outra.
A mulher de Hildo ficara pesarosa, mas recuperou a calma quando ouviu Marfisa dizer com voz forte:
— Sereia mente, ela não pode provar que sou filha desta pobre gente.
E indicava os próprios pais.
Nesta ocasião a velha pescadora se aproximou do trono da duquesa e disse:
— Nobre senhora: se ela é minha filha deve ter uma marca semelhante a uma pequena violeta no ombro esquerdo e outra semelhante ao pé direito. Se ela quiser eu mostrarei...
— Recuso despir-me diante desta camponesa.
— Mas podeis fazê-lo diante de mim.
Ao fim de alguns instantes ambas voltaram; Marfisa vinha branca como um lençol. A duquesa, muito comovida, exclamou:
— A pescadora tinha razão: Marfisa é sua filha
Bem aborrecida com estes acontecimentos ficou Marfisa, mas não perdera a esperança de retomar o coração do cavaleiro. Sereia desejava ir depressa para o castelo.
Quando iam tomar a carruagem viram uma peixeira e o cavaleiro disse:
— Não queremos hoje peixe.
A peixeira começou a chorar e reconheceram ser Marfisa.
Sereia que tinha bom coração e não calculava de quanto é capaz uma mulher ciumenta, ficou condoída e perguntou-lhe porque não ficara no palácio.
Ela contou que o pai a não quisera enquanto não perdesse o orgulho e, se quisesse, atravessasse a floresta para ir à cabana. O duque e a duquesa vendo a maneira pela qual ela recebera os pais pescadores, também a expulsaram do palácio; fora então vender peixe para se habituar à humildade.
Marfisa pediu a Sereia que a perdoasse e ajoelho. Então a boa e formosa mulher do cavaleiro falou a este que levasse também Marfisa para o castelo.
Nem imaginava que levava para junto de si uma orgulhosa rival!
Viajaram três dias e chegaram ao solar de Hildo onde houve lindas festas. Ambos passeavam muito e uma vez quando estavam próximos de um córrego, Marfisa viu o homem alto e vestido de branco. Estremeceu quando o viu falar com Sereia e essa respondeu com a cabeça que não. Então ele com ar descontente, sumiu-se na margem do regato.
Marfisa notou que era o homem que á vira junto da fonte e empalideceu, mas Sereia, a sossegou:
— Não tenhas receio; desta vez ele não te fará mal.
Sereia muito confiada e de alma simples, disse então sua história: que era uma ninfa as águas, mas que não tivesse receio. O tio Ribeiro a protegia e não queria que tivesse desgosto na terra nem que pessoa alguma ou espírito terrestre lhe perturbasse a sua felicidade com Hildo. Marfisa perguntou a si mesma com espanto como pudera Hildo ficar apaixonado por uma criatura tal.
Daí em diante continuou Marfisa a empregar todos os artifícios para seduzir Hildo e, em breve, a Sereia notou que o cavaleira estava ficando indiferente e retraído.
Marfisa atribuía qualquer contrariedade que sofria a vingança de Sereia. É verdade que o espírito das águas, o tio Ribeiro, com as suas aparições, tinha apavorado a gente do castelo. Muitos criados tinham visto um homem alto, vestido de branco que, uma vez, lançou sobre Marfisa, olhares ameaçadores. Marfisa adoeceu alguns dias, com o susto.
Para evitar a presença do seu vigilante tio, mandou Sereia tapar a fonte do jardim com uma grande pedra mas Marfisa se encolerizou porque gostava daquela água e ordenou aos criados o contrário do que a castelã mandou. Não pôde a Sereia suportar tal coisa e declarou que ela era hóspede e não dona da casa. Hildo que fora fazer uma viagem ficou zangado quando soube disso e admoestou Sereia por ter fechado a fonte.
— Eu o fiz meu marido, disse ela, chorando, no interesse de Marfisa mesmo. Meu tio não a tolera e pode fazer-lhe algum mal. Como ele só entra no castelo por aquela fonte, eu , tapando-a, diminui-lhe o poder de gênio das águas e ficamos mais tranqüilos.
— Sendo assim, estamos de acordo, disse Hildo que beijou a mulher. Deixemos tapada a fonte.
Daí a pouco. Marfisa veio ao encontro de ambos e perguntou:
— Já acabaram de dizer os seus segredos? Pode-se tirar água da tal fonte?
Hildo, em tom meio seco, respondeu que não, e Marfisa, ferida no seu orgulho foi para o seu quarto e fechou-se. Nem para o jantar apareceu. Mandou Hildo busca-la pelo mordomo do palácio mas este servidor viu, com surpresa, que o aposento estava vazio.
Sobre a mesa apanhou uma carta que entregou ao seu amo e Hildo e a mulher leram estas linhas:
“Compreendi que sou mesma filha de pescadores e volta para a cabana dos meus pais”.
Sereia ficou triste e mais triste ainda quando viu Hildo montar a seguir em procura de Marfisa. Fez selar seu cavalo também e partiu receosa que sucedesse algum mal a seu querido marido.
Em poucas horas o cavaleiro alcançou um grande e sombrio vale e viu vestígios recentes da passagem de Marfisa; julgou mesmo ver o seu vestido branco mas era o vulto alto que lhe tomava a frente e fazia o cavalo empinar e retroceder.
Ouviu ele estas palavras seguidas de uma risada:
— Não vá com tanta pressa.
Hildo mandou-lhe uma estocada valente, mas o vulto desfez-se em uma carga de água que encharcou o cavalo e o cavaleiro.
— É o tal tio de minha mulher, murmurou ele. Com certeza não quer que eu alcance Marfisa.
Já retrocedia Hildo, levando o cavalo pela rédea, pois o animal estava como que enlouquecido pela aparição, quando descobriu Marfisa, muito fatigada, junto de um rochedo. Caminharam assim uns minutos.
Nisto viu Hildo uma carruagem com dois cavalos e um cocheiro vestido de branco. Hildo chamou pedindo auxílio e a carruagem se aproximou.
— Já sei o que tem o vosso cavalo, disse o cocheiro; está enfeitiçado; há por aqui um maligno espírito das águas que se diverte em por quebranto nos animais. Vou tirar o mau olhado. Dizendo isto falou baixinho no ouvido do cavalo de Hildo e ele ficou calmo.
O cocheiro fez subir os dois jovens e amarou o animal do cavaleiro atrás do coche. Este partiu a galope para atravessar o vale.
Junto de um riacho notou Hildo que o carro se afundava e a água crescia assustadoramente; cada vez mais os cavalos mergulhavam na torrente impetuosa. Depressa o vale se encheu como um lago onde o carro se ia sumindo.
Hildo estremeceu e disse:
— Há de ser Ribeiro, o mau espírito das águas, que nos quer afogar. Como há de ser? Conheces algum meio de impedir nossa morte?
— Não sei nem o empregaria, pois eu sou o Ribeiro mesmo, disse o cocheiro.
E pôs-se a rir, fazendo uma horrível careta.
É que Sereia, da margem a que chegara naquele momento gritava com o tio, mas já o carro mergulhava de todo com os cavalos e o cocheiro se transformara numa onda formidável.
Então Sereia jogou-se às águas e salvou Marfisa e o cavaleiro. Voltaram os três para o castelo.
Passaram-se alguns meses felizes, porque Marfisa não prosseguia na sua ingrata tarefa de possuir o amor de Hildo. A primavera tendo chegado resolveram que iriam à cidade assistir a umas festas; devem descer o grande rio Azul numa formosa barca.
Os primeiros dias de navegação foram felizes, mas dentro d’água o tio Ribeiro começou a fazer coisas que assustavam a todos.
Sereia notara isso e fazia esforços para evitar que o tio se vingasse. Hildo dizia aborrecido:
— Tudo isto sucede porque me casei com uma filha das águas.
Sereia percebera o descontentamento do seu marido e via com pesar que ele fazia a corte a Marfisa.
Uma vez que adormecera, cansada de contrabalançar o poder sobrenatural do espírito das águas, todos os de bordo ficaram aterrorizados vendo cabeças humanas flutuantes, terríveis de meter medo.
Com a gritaria Sereia acordou e viu o marido zangado; ele em alta voz censurava a mulher que lhe pedia se acalmasse ao menos enquanto estivesse sobre água.
Marfisa estava ajeitando a sua pulseira de ouro e pensando nestas coisas estranhas quando de repente, uma grande mão surgiu do rio e tirou-lhe a pulseira, desaparecendo.
Todos ouviram uma grande risada que saía do fundo das águas.
Hildo ficou enfurecido.
Sereia quis acalmá-lo e como Marfisa chorava por ter perdido a pulseira, pôs a mão dentro do rio e tirou um colar de coral que deu à sua antiga rival.
Hildo mais enfurecido ficou. Com gesto brutal tomou o colar e jogou-o aos pés, quebrando-o e dizendo à sua mulher:
— Basta de espírito das águas. Fica tu com eles, tu e os teus presentes; deixa-me viver em paz!
A mulher olhou-o tristemente; dos olhos corriam lágrimas. Depois disse:
— Adeus, Hildo. Sê fiel, senão não te poderei proteger.
E atirou-se ao rio.
O cavaleiro sentiu muitos remorsos e em sonhos via muitas vezes sua mulher. Mas como tudo tem fim e Marfisa era bela depressa se consolou e casou-se com a donzela.
O dia do casamento não foi alegre pois todos, inclusive os criados, tinham saudades da antiga e bondosa Sereia.
O festim correu triste e os convidados se retiraram antes da noite. A caprichosa Marfisa, tendo sede, mandou destapar a fonte que a castelã antiga fechara com um pedra. Logo jorrou água e em meio do repuxo surgiu um vulto branco de mulher, vaporoso, que atravessou o pátio, deixando todos assombrados.
Marfisa, trêmula, conheceu Sereia que galgou a janela e entrou no quarto de Hildo.
Este disse, resignado:
— Peço que não me assusteis na hora da morte. Se é o teu rosto que está atrás do véu horrível não o quero ver.
Então o espectro falou:
— Para que abriste a fonte? Para que não me foste fiel, Hildo?
Este avançou de braços abertos vendo, pela última vez a fisionomia daquela que tanto o amara.
Quis abraça-lo mas não pôde e escorregou para o chão. Estava morto.
No dia seguinte foi o cavaleiro enterrado com pompa e Marfisa ficou inconsolável. Não se cansava de chamar Sereia de feiticeira e bruxa.
No séqüito fúnebre todos viram uma figura de mulher vestida de branco ao lado do velho que casara Hildo na cabana. Chegado o cortejo à beira da cova, depois que o corpo desapareceu sob as pás de terra, a estranha figura que se ajoelhara dissipou-se. Viram todos então que do lugar onde ela estivera jorrava água cristalina que rodeava o túmulo e ia sumir-se num lago próximo do cemitério.
O velho pescador e sua mulher que tinham também acompanhado os despojos do cavaleiro reconheceram que a estranha criatura era a Sereia que viera ter com o seu bem amado.



O título do livro é A ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.

O livro inicia-se com

AO LEITOR.

Mais um livro de histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência, o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a única no Brasil.
O presente volume que foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.

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