Marfisa e a Ninfa das
águas
À beira de um bonito
lago moravam um velho pescador e sua mulher. Atrás da cabana se
estendia vasta floresta que todos evitavam atravessar pois diziam-se
habitada por malfeitores e fantasmas.
Estava o velho
remendando as redes quando ouviu o tropel de um cavalo e viu um
formoso cavaleiro que acabava de chegar. Estava ricamente vestido,
com mando e chapéu de plumas raras. Tinha à cinta uma espada com os
copos de ouro e montava um corcel muito branco.
O pescador tirou o
chapéu e recebeu-o.
— Peço-te hospedagem
para mim e meu cavalo, disse ele com voz calma.
— Sede benvindo,
senhor. Deixai vosso cavalo nesse belo campo e entrai.
Junto ao fogão a
mulher do pescador costurava e o cavaleiro não a deixou levantar-se.
Ela disse-lhe então:
— Sentai-vos, senhor,
mas tende cuidado com a cadeira; tem um pé mal seguro.
Pouco depois os três
conversavam com franqueza dizendo o cavaleiro que era dono de um
castelo e se chamava Hildo. De súbto, pelas frestas da velha porta
de madeira jorraram jatos de água enquanto fora se ouvia uma alegre
risada.
— Desculpai,
cavaleiro, é mais uma brincadeira de nosso filha Sereia. Por mais
que a repreendamos está sempre a brincar com água e a fazer
tolices. Mas é muito boa menina.
O moço sorriu e viu
entrar uma jovem loura, maravilhosamente bonita, alegre e sem
cerimônia. Logo perguntou:
— É esta?
A moça que estava no
limiar da porta só então viu o cavaleiro e ficou séria; depois
indagou:
— É seu hóspede,
papai?
— Sim, filha; quase o
molhaste com tuas brincadeiras.
Ela, depois de fitar
Hildo algum tempo, exclamou, indo sentar-se perto dele:
— Ah! Bom cavaleiro!
Diga-me como chegou até aqui a esta pobre cabana?
— Atravessei a
floresta.
— Ah! Conte-me isso e
tudo o que tem visto; eu gosto muito de ouvir histórias.
Nisto a mulher do
pescador fez sinal à Sereia para que se calasse e fizesse algum
trabalho.
Ela respondeu então,
aproximando o seu tamborete da cadeira de Hildo.
— Eu farei minhas
rendas aqui mesmo, ouvindo as histórias que o cavaleiro vai contar.
O pescador pediu ao
moço que não as contasse pois já eram mais de oito horas da noite.
A moça vendo que o
cavaleiro não contaria a sua viagem, zangou-se e disse:
— Eu quero que conte.
Quero... Senão...
O pescador aborreceu-se
com a insistência da filha e censurou-a; a mãe dela também a
repreendeu e Sereia então respondeu, encolerizada:
— Pois se não querem
contar... melhor, fiquem aí sozinhos nesta casinhola enfumaçada.
E, rápida, sem que a
segurassem, lançou-se pela porta fora e desapareceu na escuridão da
noite.
O cavaleiro e o
pescador debalde a procuraram. O moço clamava com voz comovida:
“Sereia, Sereia, volte, volte!”
Nada respondia.
Cansados voltaram à
cabana e sentaram-se à mesa.
Disse então o
pescador:
— Não fiqueis aflito
por ela, pois não é a primeira vez que minha filha faz esta graça
de zangar-se e fugir. Bebei um pouco de vinho e comei enquanto eu vos
conto a minha história:
“ Há uns quinze
anos, atravessei o lago e o bosque para ir vender peixe à cidade e
deixei a minha mulher só, com uma única filha que tínhamos. Na
volta, pensava em mudar-me quando a mulher veio ao meu encontro
chorando e dizendo: Ah! Não temos mais filha! — o que! Lhe disse
eu, onde está ela? Aí a mulher contou-me que fora até à beira do
lago, e que a menina se debruçara no colo, batendo palmas, como se
visse alguém dentro d’água. Depois, sem saber como, escorregou
para o lago e se sumiu. Procuramos e nunca mais a vimos nem o
corpozinho apareceu.
“Na tarde desse mesmo
dia, continuou o velho, estávamos na cabana num silêncio doloroso
quando ouvimos bater à porta e vimos, com espanto, uma gentil
menina, de uns quatro anos, muito bem vestida e que sorria
agradavelmente para nós. Só então reparei que a sua roupa estava
molhada e gotejando os cachos louros. Demos-lhe uma bebida quente e a
agasalhamos.
“Esta menina é
Sereia. Não lhe demos este nome, pois queríamos que se chamasse
Silvana. Porém ela teimou que era Sereia e Sereia ficou. Não me foi
passível saber o nome dos pais e ela a esse respeito conta história
extravagantes, de castelos de cristal, vestes ricas, etc.”
Nesta ocasião os dois
homens prestaram atenção porque julgavam ter ouvido rumor. Era o
riacho que passava perto e desaguava entre a cabana e o bosque, que
estava cheio a ponto de tornar-se furiosa torrente.
— É Sereia, sim,
senhor cavaleiro.
Uma tempestade se
desencadeava fora levantando ondas no lago. Os dois homens, à luz da
lua que surgira entre nuvens voltaram à beira do riacho gritando:
— Sereia, Sereia!
Ao clarear do dia
pensou o cavaleiro que a moça estivesse do outro lado do riacho e
dispôs-se a atravessa-lo. Cortou um forte galho de árvore e tentou
a passagem.
— Cuidado! Cuidado! A
corrente é perigosa!
O cavaleiro conheceu a
voz da moça e continuou a vadear o regato, quando bem defronte, na
ribanceira, viu a formosa donzela que o chamava.
— Ande! Venha
contar-me tudo o que viu na floresta! Aqui está mais agradável que
lá na cabana do papai.
Este avistara os dois e
chamava aflito.
Ambos, de braços dado,
desceram à margem. O cavaleiro pegou-a ao colo e levou-a até à
choupana. O velho pescador e sua mulher beijaram a filha, chorando de
alegria.
Pouco depois como
Sereia insistisse em saber a sua viagem, Hildo fez a seguinte
narrativa:
“Acho-me aqui por um
capricho de mulher. Estive na semana passada em um torneio e entre as
nobres damas conheci Marfisa, filha de um poderoso duque. Ela era
muito orgulhosa, mas divinamente bela e parecia dar-me mais
importância que aos outros cavaleiros. Para mostrar aos outros
amigos que ela me preferia pedi-lhe uma luva.
“Darei uma das luvas,
respondeu ela, se fores à floresta e me contares o que tiver
acontecido”. Por isso pus-me a caminho ontem, pela manhã.
“Logo ao entrar na
mata senti que o cavalo se espantava muito com os troncos de árvores
e perto de um deles vi sair um vulto que dizia: Vai! Vai!”
“Depois esse vulto
passou para traz do meu ginete que começou a correr em risco de
bater nos galhos mais baixos e tropeçar. Por fim corríamos para um
profundo abismo, no qual cairíamos quando um homem agigantado e todo
de branco se lançou diante do cavalo e o fez parar. Vi aí que meu
salvador era um riacho cuja água parecia de prata”.
O cavaleio fez uma
pausa e notou que Sereia o ouvia muito atenta, com os olhos
arregalados e brilhantes.
“Segurei-me bem ás
rédeas, continuou Hildo, quando vi um anão a rir-se, feio de
assustar, com um nariz enorme, um grande capuz e um chapéu na mão.
Pôs-se diante do cavalo que se empinou tanto que quase caí.
“Joguei-lhe uma moeda
de ouro no chapéu e ele deixou-me passar, rindo:
— Hi! Hi! Hi!
Galopei e o anão
continuou a correr. Só me livrei dele quando esporei o cavalo como
um louco e fugi.
“Nessa carreira via
entre as árvores uma faixa nublada e branca que me parecia seguir e
ao mesmo tempo me guiar, obrigando-me a retroceder. Quis transpor
essa figura ou faixa branca, mas recebi um enorme jato de água;
então retrocedi e vim ter ao caminho que me trouxe aqui. Voltei-me
para ver a tal faixa branca e vi um gigante esbranquiçado que
desapareceu depois que bati à porta desta cabana”.
Tal foi a narração do
cavaleiro Hildo que Sereia ouviu com satisfação de certo ponto em
diante. O cavaleiro quis voltar para o seu castelo nesse dia mesmo,
mas o riacho crescera tanto que seria temeridade tentar a passagem
para a outra margem.
O tempo chuvoso
continuou muitos dias e o riacho ficava cada vez mais largo e fundo,
de modo que a cabana estava isolada como que numa illha verdejante. A
moça sentia-se contente, porque Hildo, assim, mais se demoraria e
este, fascinado pela beleza de Sereia não tinha pressa. Nem se
lembraria às vezes do regresso se não fora olhar para suas armas e
ouvir o relinchar do seu valente cavalo.
Pensava o jovem que
Sereia não podia ser senão de raça nobre e já ambos se amavam
como noivos. Ele a adorava e achava graça nas travessuras que ela
fazia e que a mulher do pescador repreendia com rabugice amigável.
O divertimento de Hildo
era caçar patos e outras aves. Isto aborrecia Sereia que chorava,
ficava zangada, mas depois se punha a rir para que Hildo não se
afligisse.
Certa vez, à hora do
jantar, viu o pescador que faltava vinho; como ir busca-lo à cidade?
Mais triste ficou ele por não poder obsequiar o seu nobre hóspede.
No ida seguinte, Sereia o chamou e lhe disse:
— Quanto me daria o
pai se eu lhe arranjasse vinho?
— Um abraço, filha,
um abraço.
— Aceito, mas em
troca do vinho que vou dar quero que haja mais alegria nesta casa.
Não quero nem gosto de tristezas. Vamos, Hildo; vamos papai.
— Onde, filha?
— Ali à praia. O
riacho fez encalhar um barril e eu julgo que está cheio de vinho.
Lá estava na areia o
barril mas era preciso andar depressa porque estava a cair outro
tremendo temporal. Logo que começaram os dois homens a rolar o
achado, sobreveio grosso aguaceiro e as águas do lago se encresparam
como ondas do oceano. O regato transbordou, inundando tudo.
Felizmente o vinha era
bom e restituiu calor e alegria a todos que se puseram a conversar;
assim estava, ouvindo a mulher do pescador que contava um história
de fadas. Quando ouviram bater à porta.
A solidão em que
estava a cabana e a proximidade da floresta freqüentada por
fantasmas, duendes e lobisomens, contribuíam para aumentar o susto
dos habitantes da choupana ouvindo bater a tal hora. Ouviu-se outra
pancada na porta e uma forte tosse.
Sereia, resoluta, falou
em voz alta:
— Se sois espíritos
maus da terra que vindes fazer maldades, podem ir. O Sr. Ribeiro vos
deveria ter avisado.
Todos estavam
assustados do ânimo de Sereia mas uma voz respondeu de fora:
— Não sou espírito
da terra, mas espírito que habita corpo de gente. Se tendes bom
coração abri-me a porta.
Sereia abriu-a e
apareceu um velho sacerdote que julgou a principio, pela beleza da
jovem, estar num lugar encantado. Viu depois que eram todos boa gente
prestativa que lhe deram roupa para mudar pois estava encharcado, e
bebidas quentes.
O padre contou então
que viajava para a abadia em um barco, quando a tempestade o salteou
no meio do lago. O batel virou e as ondas o atiraram para a praia;
enquanto aos remeiros não sabia o que era feito deles.
— Ficareis conosco,
disse o velho pescador.
— E por muitos dias,
tornou o padre, pois há muito tempo que não vejo inundação como
esta. Nem daqui a um mês se poderá atravessar a floresta.
Sereia, alegre, batia
palmas.
— Por que fazes isso,
filha?
— Sei porque é.
Hildo e o pescador
também sabiam. Era a demora de Hildo que alegrava a moça.
O cavaleiro estava
pensativo.
— Amanhã mesmo, nos
unireis em casamento, respeitável padre, se o meu amigo pescador e a
mulher consentirem.
Os dois velhos, embora
esperassem isso há tempo, ficaram comovidos, sem poder falar.
Consentiram e era muita honra que tinha, tartamudeou depois o
pescador.
No dia seguinte,
improvisando o altar, casaram-se os dois e o cavaleiro procurava
tirar elos de sua cadeia de ouro para fazer alianças quando Sereia
disse:
— Não precisa
incômodo. Meus pais não me deixaram desprovida quando me mandaram
longe.
Foi ao quarto e voltou
com duas alianças de ouro.
Os dois velhos estavam
admirados.
— Não se espantem.
Estavam costuradas no meu vestido quando bati à vossa porta. Meus
pais me proibiram de falar nisso antes de casar-me.
Depois, acesas as
velas, o padre procedeu à cerimônia dizendo as palavras e perguntas
do ritual.
Sereia estava trêmula,
mas contente.
Asim passaram dias
felizes; a jovem, no entanto, continuou cada vez mais brincalhona e
maliciosa a ponto do padre fazer-lhe admoestações.
O marido perguntou-lhe
um dia se acreditava na alma e ela disse rindo:
— Eu não sei se
tenho alma.
Também ele quis saber
uma vez que era aquele Ribeiro cujo nome ela pronunciara ao abrir a
porta quando o padre batia.
Ela respondeu, rindo:
— São histórias,
contos de fadas.
O padre, uma vez, disse
ao ouvido do marido:
— Ame e guarde bem
sua mulher. É digna do seu amor, mas tem, na vida, algum mistério.
Depois de casada Sereia
tornou-se uma verdadeira dona de casa e perdeu o espírito infantil e
folgazão. Pediu perdão aos velhos pescadores das coisas amalucadas
que podia ter feito. Ficou uma criatura meiga e gentil, dedicada
esposa e obediente para os que a tinham criado.
À tarde, uma vez, ela
deu o braço ao marido e foi passear com ele.
O riacho estava tênue
como um fio cristalino; ele, que andava tão cheio e perigoso!
O feliz casal
atravessou-o com facilidade. Sereia levou o marido até o tronco onde
ele a vira na primeira noite.
— Quero confessar-te
uma coisa, pois já tenho alma e compreendo bem a tua e o bem que me
fizeram os dois velhos da cabana. Eu não sou completamente igual às
demais mulheres senão na forma. Assim como há espíritos maus,
anões e duendes, fadas e silfos e outros espíritos da terra, há
espíritos das águas: não te aflijas porque eu seja ou tivesse sido
ninfa das águas; sou uma Ondina, uma Sereia. Se tu não me
repelires, eu viverei sempre sob a forma humana. Não me abandones
pois. Não te estantes que este regato seja meu tio, irmão de meu
pai, um duque poderoso. Ele se transforma muitas vezes em homem e foi
ele que te guiou até a cabana. É o Sr. Ribeiro.
O mancebo estava
comovido.
— Agora, tu podes
fazer de mim o que entenderes, se me abandonares me atirarei ao rio e
meu tio me levará para junto de meus pais.
— Partiremos juntos,
minha querida Sereia.
Uma hora depois, os
dois e o padre se punham a caminho; ela montar o lindo cavalo branco
e assim atravessaram a mata.
De repente a jovem viu
que o padre conversava com alguém e reconheceu no homem todo de
branco e capuz branco também o seu tio.
— Meu nome é
Ribeiro, dizia ela, quando Hildo e a mulher o viram; tenho que dizer
uma coisa à sombra que aí vem.
Aproximou-se e quis
segredar algumas palavras ao ouvido da recém-casada; ela replicou:
— Não quero saber de
mais nada.
— Pois não
reconheceis o vosso tio Ribeiro, disse o estrangeiro, que vos trouxe
à cabana? Não esqueçais que estou junto de vôos para evitar que
os espíritos da terra vos façam qualquer má surpresa. O velho
padre me reconheceu logo pois fui eu quem o salvou no lago e o
conduziu à cabana onde estáveis.
— Bem. Muito vos
agradeço mas já estamos no fim da floresta. Deixa-nos seguir nosso
caminho em paz.
Estas palavras não
agradaram ao tio Ribeiro que fez uma careta tal que a Sereia gritou.
O cavaleiro puxou a espada e deu um golpe rápido como um relâmpago.
A espada, no entanto, só encontrou para fender, a uma cascata que
caía sobre a cabeça dos dois com um ruído semelhante a uma risada;
Hildo e a mulher ficaram molhados até os ossos.
O desaparecimento de
Hildo tinha sido muito comentado na cidade e como a inundação
causara muitas vítimas, julgaram-no afogado. Só Marfisa,
acabrunhada, é que mandara emissários à procura do cavaleiro.
Também quando ele apareceu ao lado de uma bela mulher todos ficaram
contentes, menos ela. Aparentou nada sentir e julgou, como os demais,
ser a Sereia alguma princesa que Hildo libertara de alguma tirania.
Entre ambas nasceu
séria afeição ou coisa parecida de modo a se tornarem boas
camaradas. Ocultando talvez seus intentos, Marfisa procurou
acompanhar sua feliz rival ao castelo de Hildo.
Uma vez estavam os três
na praça principal junto da fonte quando um homem alto aproximou-se
de Sereia saudando-a com respeito e dizendo-lhe baixinho um segredo.
Ela levou-o para junto da fonte, ouviu-o atentamente e quando Hildo
se levantou para saber o que era, ela bateu palmas com força e o
homem sumiu-se nos arbustos próximos de repuxo.
— Quem é este
estranho sujeito com quem falavas? Perguntou.
— Eu direi no dia de
teu aniversário, Marfisa.
Hildo perguntou então:
— É o teu tio
Ribeiro?
— Ele mesmo,
respondeu Sereia. Trouxe-me uma boa notícia, mas peço-te que me
deixes guardar a surpresa para depois de amanhã. Sim?!
Hildo esperou com certa
ansiedade e justamente esse dia era a data natalícia de Marfisa.
A festa no palácio
estava pomposa e muito concorrida. O palácio resplandecia de luzes e
numerosos senhores e lindas damas dançavam alegremente. Os criados
passavam pelos salões distribuindo doces e vinhos finos.
Sereia ia cantar e
Hildo e Marfisa estavam aflitos para saber o que ela diria.
Na primeira canção a
mulher de Hildo contou a história de um nobre duque recolhendo uma
criança, como se dera com Marfisa; na outra canção cantava a
tristeza dos pais na casa vazia, sem as crianças adoradas.
Marfisa, que
compreendera, lhe disse, em lágrimas:
— Dize-me quem são
meus pais. Anda, dize. Será aquela princesa ali? Será o marques
de...?
Sereia voltou-se para
aporta e mostrou-lhe um casal idoso; eram o velho pescador e a
mulher, ali trazidos, não se sabe como, talvez pelo tio de Sereia.
— Eis a vossa filha,
continuou Sereia, banhada em lágrimas, laçando Marfisa nos braços
dos bons velhos.
Mas Marfisa não quis
abraçar e encolerizou-se até. Aquilo não passava de um
mistificação de sua feliz rival, para a mortificar mais.
A velha pescadora
murmurou:
— Sinto em mim que é
ela mesmo.
O pescador, vendo-a tão
orgulhosa, dizia consigo mesmo:
— É ela, mas...
antes fosse a outra.
A mulher de Hildo
ficara pesarosa, mas recuperou a calma quando ouviu Marfisa dizer com
voz forte:
— Sereia mente, ela
não pode provar que sou filha desta pobre gente.
E indicava os próprios
pais.
Nesta ocasião a velha
pescadora se aproximou do trono da duquesa e disse:
— Nobre senhora: se
ela é minha filha deve ter uma marca semelhante a uma pequena
violeta no ombro esquerdo e outra semelhante ao pé direito. Se ela
quiser eu mostrarei...
— Recuso despir-me
diante desta camponesa.
— Mas podeis fazê-lo
diante de mim.
Ao fim de alguns
instantes ambas voltaram; Marfisa vinha branca como um lençol. A
duquesa, muito comovida, exclamou:
— A pescadora tinha
razão: Marfisa é sua filha
Bem aborrecida com
estes acontecimentos ficou Marfisa, mas não perdera a esperança de
retomar o coração do cavaleiro. Sereia desejava ir depressa para o
castelo.
Quando iam tomar a
carruagem viram uma peixeira e o cavaleiro disse:
— Não queremos hoje
peixe.
A peixeira começou a
chorar e reconheceram ser Marfisa.
Sereia que tinha bom
coração e não calculava de quanto é capaz uma mulher ciumenta,
ficou condoída e perguntou-lhe porque não ficara no palácio.
Ela contou que o pai a
não quisera enquanto não perdesse o orgulho e, se quisesse,
atravessasse a floresta para ir à cabana. O duque e a duquesa vendo
a maneira pela qual ela recebera os pais pescadores, também a
expulsaram do palácio; fora então vender peixe para se habituar à
humildade.
Marfisa pediu a Sereia
que a perdoasse e ajoelho. Então a boa e formosa mulher do cavaleiro
falou a este que levasse também Marfisa para o castelo.
Nem imaginava que
levava para junto de si uma orgulhosa rival!
Viajaram três dias e
chegaram ao solar de Hildo onde houve lindas festas. Ambos passeavam
muito e uma vez quando estavam próximos de um córrego, Marfisa viu
o homem alto e vestido de branco. Estremeceu quando o viu falar com
Sereia e essa respondeu com a cabeça que não. Então ele com ar
descontente, sumiu-se na margem do regato.
Marfisa notou que era o
homem que á vira junto da fonte e empalideceu, mas Sereia, a
sossegou:
— Não tenhas receio;
desta vez ele não te fará mal.
Sereia muito confiada e
de alma simples, disse então sua história: que era uma ninfa as
águas, mas que não tivesse receio. O tio Ribeiro a protegia e não
queria que tivesse desgosto na terra nem que pessoa alguma ou
espírito terrestre lhe perturbasse a sua felicidade com Hildo.
Marfisa perguntou a si mesma com espanto como pudera Hildo ficar
apaixonado por uma criatura tal.
Daí em diante
continuou Marfisa a empregar todos os artifícios para seduzir Hildo
e, em breve, a Sereia notou que o cavaleira estava ficando
indiferente e retraído.
Marfisa atribuía
qualquer contrariedade que sofria a vingança de Sereia. É verdade
que o espírito das águas, o tio Ribeiro, com as suas aparições,
tinha apavorado a gente do castelo. Muitos criados tinham visto um
homem alto, vestido de branco que, uma vez, lançou sobre Marfisa,
olhares ameaçadores. Marfisa adoeceu alguns dias, com o susto.
Para evitar a presença
do seu vigilante tio, mandou Sereia tapar a fonte do jardim com uma
grande pedra mas Marfisa se encolerizou porque gostava daquela água
e ordenou aos criados o contrário do que a castelã mandou. Não
pôde a Sereia suportar tal coisa e declarou que ela era hóspede e
não dona da casa. Hildo que fora fazer uma viagem ficou zangado
quando soube disso e admoestou Sereia por ter fechado a fonte.
— Eu o fiz meu
marido, disse ela, chorando, no interesse de Marfisa mesmo. Meu tio
não a tolera e pode fazer-lhe algum mal. Como ele só entra no
castelo por aquela fonte, eu , tapando-a, diminui-lhe o poder de
gênio das águas e ficamos mais tranqüilos.
— Sendo assim,
estamos de acordo, disse Hildo que beijou a mulher. Deixemos tapada a
fonte.
Daí a pouco. Marfisa
veio ao encontro de ambos e perguntou:
— Já acabaram de
dizer os seus segredos? Pode-se tirar água da tal fonte?
Hildo, em tom meio
seco, respondeu que não, e Marfisa, ferida no seu orgulho foi para o
seu quarto e fechou-se. Nem para o jantar apareceu. Mandou Hildo
busca-la pelo mordomo do palácio mas este servidor viu, com
surpresa, que o aposento estava vazio.
Sobre a mesa apanhou
uma carta que entregou ao seu amo e Hildo e a mulher leram estas
linhas:
“Compreendi que sou
mesma filha de pescadores e volta para a cabana dos meus pais”.
Sereia ficou triste e
mais triste ainda quando viu Hildo montar a seguir em procura de
Marfisa. Fez selar seu cavalo também e partiu receosa que sucedesse
algum mal a seu querido marido.
Em poucas horas o
cavaleiro alcançou um grande e sombrio vale e viu vestígios
recentes da passagem de Marfisa; julgou mesmo ver o seu vestido
branco mas era o vulto alto que lhe tomava a frente e fazia o cavalo
empinar e retroceder.
Ouviu ele estas
palavras seguidas de uma risada:
— Não vá com tanta
pressa.
Hildo mandou-lhe uma
estocada valente, mas o vulto desfez-se em uma carga de água que
encharcou o cavalo e o cavaleiro.
— É o tal tio de
minha mulher, murmurou ele. Com certeza não quer que eu alcance
Marfisa.
Já retrocedia Hildo,
levando o cavalo pela rédea, pois o animal estava como que
enlouquecido pela aparição, quando descobriu Marfisa, muito
fatigada, junto de um rochedo. Caminharam assim uns minutos.
Nisto viu Hildo uma
carruagem com dois cavalos e um cocheiro vestido de branco. Hildo
chamou pedindo auxílio e a carruagem se aproximou.
— Já sei o que tem o
vosso cavalo, disse o cocheiro; está enfeitiçado; há por aqui um
maligno espírito das águas que se diverte em por quebranto nos
animais. Vou tirar o mau olhado. Dizendo isto falou baixinho no
ouvido do cavalo de Hildo e ele ficou calmo.
O cocheiro fez subir os
dois jovens e amarou o animal do cavaleiro atrás do coche. Este
partiu a galope para atravessar o vale.
Junto de um riacho
notou Hildo que o carro se afundava e a água crescia
assustadoramente; cada vez mais os cavalos mergulhavam na torrente
impetuosa. Depressa o vale se encheu como um lago onde o carro se ia
sumindo.
Hildo estremeceu e
disse:
— Há de ser Ribeiro,
o mau espírito das águas, que nos quer afogar. Como há de ser?
Conheces algum meio de impedir nossa morte?
— Não sei nem o
empregaria, pois eu sou o Ribeiro mesmo, disse o cocheiro.
E pôs-se a rir,
fazendo uma horrível careta.
É que Sereia, da
margem a que chegara naquele momento gritava com o tio, mas já o
carro mergulhava de todo com os cavalos e o cocheiro se transformara
numa onda formidável.
Então Sereia jogou-se
às águas e salvou Marfisa e o cavaleiro. Voltaram os três para o
castelo.
Passaram-se alguns
meses felizes, porque Marfisa não prosseguia na sua ingrata tarefa
de possuir o amor de Hildo. A primavera tendo chegado resolveram que
iriam à cidade assistir a umas festas; devem descer o grande rio
Azul numa formosa barca.
Os primeiros dias de
navegação foram felizes, mas dentro d’água o tio Ribeiro começou
a fazer coisas que assustavam a todos.
Sereia notara isso e
fazia esforços para evitar que o tio se vingasse. Hildo dizia
aborrecido:
— Tudo isto sucede
porque me casei com uma filha das águas.
Sereia percebera o
descontentamento do seu marido e via com pesar que ele fazia a corte
a Marfisa.
Uma vez que adormecera,
cansada de contrabalançar o poder sobrenatural do espírito das
águas, todos os de bordo ficaram aterrorizados vendo cabeças
humanas flutuantes, terríveis de meter medo.
Com a gritaria Sereia
acordou e viu o marido zangado; ele em alta voz censurava a mulher
que lhe pedia se acalmasse ao menos enquanto estivesse sobre água.
Marfisa estava
ajeitando a sua pulseira de ouro e pensando nestas coisas estranhas
quando de repente, uma grande mão surgiu do rio e tirou-lhe a
pulseira, desaparecendo.
Todos ouviram uma
grande risada que saía do fundo das águas.
Hildo ficou enfurecido.
Sereia quis acalmá-lo
e como Marfisa chorava por ter perdido a pulseira, pôs a mão dentro
do rio e tirou um colar de coral que deu à sua antiga rival.
Hildo mais enfurecido
ficou. Com gesto brutal tomou o colar e jogou-o aos pés, quebrando-o
e dizendo à sua mulher:
— Basta de espírito
das águas. Fica tu com eles, tu e os teus presentes; deixa-me viver
em paz!
A mulher olhou-o
tristemente; dos olhos corriam lágrimas. Depois disse:
— Adeus, Hildo. Sê
fiel, senão não te poderei proteger.
E atirou-se ao rio.
O cavaleiro sentiu
muitos remorsos e em sonhos via muitas vezes sua mulher. Mas como
tudo tem fim e Marfisa era bela depressa se consolou e casou-se com a
donzela.
O dia do casamento não
foi alegre pois todos, inclusive os criados, tinham saudades da
antiga e bondosa Sereia.
O festim correu triste
e os convidados se retiraram antes da noite. A caprichosa Marfisa,
tendo sede, mandou destapar a fonte que a castelã antiga fechara com
um pedra. Logo jorrou água e em meio do repuxo surgiu um vulto
branco de mulher, vaporoso, que atravessou o pátio, deixando todos
assombrados.
Marfisa, trêmula,
conheceu Sereia que galgou a janela e entrou no quarto de Hildo.
Este disse, resignado:
— Peço que não me
assusteis na hora da morte. Se é o teu rosto que está atrás do véu
horrível não o quero ver.
Então o espectro
falou:
— Para que abriste a
fonte? Para que não me foste fiel, Hildo?
Este avançou de braços
abertos vendo, pela última vez a fisionomia daquela que tanto o
amara.
Quis abraça-lo mas não
pôde e escorregou para o chão. Estava morto.
No dia seguinte foi o
cavaleiro enterrado com pompa e Marfisa ficou inconsolável. Não se
cansava de chamar Sereia de feiticeira e bruxa.
No séqüito fúnebre
todos viram uma figura de mulher vestida de branco ao lado do velho
que casara Hildo na cabana. Chegado o cortejo à beira da cova,
depois que o corpo desapareceu sob as pás de terra, a estranha
figura que se ajoelhara dissipou-se. Viram todos então que do lugar
onde ela estivera jorrava água cristalina que rodeava o túmulo e ia
sumir-se num lago próximo do cemitério.
O velho pescador e sua
mulher que tinham também acompanhado os despojos do cavaleiro
reconheceram que a estranha criatura era a Sereia que viera ter com o
seu bem amado.
O título do livro é A
ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não
foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um
nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA
QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.
O livro inicia-se com
AO LEITOR.
Mais um livro de
histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL
ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao
bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência,
o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a
única no Brasil.
O presente volume que
foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas
histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres
como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são
a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim
trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande
a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora
damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação
doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer
extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa
coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus
filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e
agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.
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