sábado, 5 de abril de 2014

MERECE SER LEMBRADO 17


O fio de cabelo

Naquela suave manhã os dedos de Bilrinha — a fazedora de rendas — trabalhavam com uma atividade febril. A agulha entrava, subia, descia, subia pelos fios de tecido. O dia primaveril convidava a passeio; os passarinhos saltitavam pipilando e o sol dourava o cimo das árvores, os telhados vermelhos e a torre branca da igreja.
Mas nem por isso a jovem Bilrinha, com sua feições de anjo e seu 17 anos, tirava os olhos do trabalho.
Um pombo branco que esvoaçava no jardim perguntou ao canário que estava numa gaiola doirada, à janela:
— Que terá hoje a Bilrinha que não te deu alpiste e nem me jogou o milho da manhã?
O canário, aos pulinhos, respondeu, todo ufano por se mostrar bem informado:
— Pois você não vê que ela trabalha? Não sabe no próximo sábado é celebrado o jubileu da rainha, nossa senhora?
— Mas que está ela fazendo com tanta pressa e cuidado?
— Ora, é um colarinho de rendas para algumas damas ou grande fidalgo. Não sabias que ela é amais hábil tecedora de rendas desta terra?
— Lá isso é, mas estou com fome e vou procurar com que nutrir meus filhotes. É preciso que a encomenda seja muito apressada para que ela se esquecesse de nós.
E o pombo alçou o vôo mas como era preguiçoso e a floresta distante, ele resolveu chamar a atenção de Bilrinha e esvoaçando em semi-círculo foi pousar na janela arrulhando.
A moça ergue o belo rosto e sorriu.
Com o trabalho esqueci o almoço dos meus amiguinhos. Não tendo tempo mas no jardim não falta o lque mariscar e a gaiola do canário ainda está bem provida.
O pombo beliscou aqui, acolá e no momento de voar avistou um fio sedoso dos que Bilrinha empregava na renda.
— Ora, aqui tenho, pensou, ele, com que forrar o ninho dos meus pequenos que tanto tremem. Creio que não farão falta uns dois ou três.
E levou três fios no bico sem que a moça desse por tal.
Entretanto esta monologava:
— Mais duas carreiras de festão e remato minha bela gola de rendas. Felizmente consegui escolher estes fios, tão finos e acetinados.
Nisto procurou os últimos fios e não os achou.
Que fazer?
Onde achar os fios iguais àqueles que escolhera com tanto zelo e que tão delicados eram? Busca-los à cidade não convinha, pois tinha de entregar o trabalho ao meio-dia.
Ficou desolada. Passou uma busca na sua caixinha de costura, na cesta de vime e não achou; havia outros de mais grossura mas os que empregara eram tão finos e fortes que a colocação de outros evidenciaria a irregularidade e quebraria a harmonia do entrelaçamento.
Veio-lhes, porém, uma inspiração ao contemplar a homogeneidade e finura da renda e, tomando uma das pesadas tranças tomou três fios de cabelo, louro como trigal maduro. Foi com eles que fez o remate.
— Já ouvi dizer, murmurou ela, que metendo um fio de cabelo na bainha de um véu de noiva que as moças se casam naquele mesmo ano... Quem sabe o que me sucederá pondo estes três fios nesta renda?
E assim, pensativa, acabou o trabalho e o mandou entregar envolto em papel de seda.

A rainha completava o seu jubileu e conquanto robusta e bem conservada ninguém reconheceria hoje, naquela venerável dama, a formosa soberana que subira ao trono, elegante como uma palmeira, com o manto coberto de abelhas de ouro e na cabeça augusta uma coroa cintilante de pedrarias...
Acabado o beija-mão, retirou-se a rainha para o salão, cercada pelas damas do paço, quando anunciaram que o Príncipe Real lhe queria falar.
— Meu filho, disse ela, abraçando-o, minha felicidade hoje seria completa se tu tivesses cedido aos meus rogos e eu pudesse ver a teu lado aquela que me sucederá no trono. Não pensas pois em casar?
— Hesitei algum tempo, porque o coração não me pedia que desse esse passo. Estou agora mais disposto.
— Dize-me qual a feliz criatura que escolhes-te; de certo uma princesa de sangue real?
— Minha mãe, não a conheço...
— Como?! Estás louco?
— Não, minha mãe, mas só desposarei uma mulher que tenha cabeleira loura, de um louro magnífico e raro.
— Que capricho, murmurou, uma princesa, que julgava poder casar-se com o príncipe e que tinha lindo cabelos, negros como a asa da graúna.
— Bem, meu filho, há muitas princesas e nobres damas, louras, em nosso país.
— Não creio, minha mãe. Conheceis alguma que tenha os cabelos com a finura e a cor deste fio?
— Onde o achaste?
— No meu colarinho rendado.
— Bem. Procura a quem pertence este primor e arranjaremos o casamento, pois estou ficando velha e fraca. Tenho sono. Até amanhã, a audiência está finda.
O príncipe dobrando o joelho beijou a mão da rainha e saiu suspirando. A corte o seguiu e a rainha, não pôde, no quarto, deixar de dizer à sua camareira:
— Meu filho não compreende que tal casamento é esquisito...
Desde o dia seguinte embaixadores e mensageiros percorriam as diversas cortes e a cidade se enche de princesas e damas louras. O príncipe desdenhou a princesa Fredegonda achando-a ruiva, e, esta sensibilizada teve formidável ataque de nervos.
Outra dama que desmaiou foi a princesa Branca, que tendo cabelos castanhos os tingira de cor de ouro. O príncipe que tinha bons olhos não caiu nessa mistificação.
A arqui-duqueza Clara de Cenourândia esteve, por um triz a balancear o coração do herdeiro da coroa, mas os brilhos metálicos de suas madeixas não equivaliam ao suave reflexo do fio capilar pelo qual o príncipe se embevecera.
Outros desenganos tiveram a Baronesa da Poeira, a Condessa do Pé Pequeno (que por sinal o tinha bem grande) e outras damas da alta nobreza germânica e polaca, filhas de principículos com os nomes terminados em “offs” e “burgs”.
A rainha ficara como o fígado e o baço achacados e os embaixadores estavam exaustos. O príncipe vendo que pela diplomacia nada obtinha, resolveu um dia consultar o seu truão ou bobo do paço e contou-lhe o que havia e o mau resultado das pesquisas dos embaixadores e da polícia.
— Pois tanta gente não descobriu coita tão simples?
— Achas o caso simples?
— Simplíssimo.
— Nem os homens da polícia descobriram e você pensa que...
— Tome Vossa Alteza o meu conselho e mande-os enforcar. Eu descobrirei a feliz dona desse fio de ouro.
— Pois se o fizeres far-te-ei mercê de uma bolsa cheia de dinheiro e no dia do meu casamento, darei três coisa que tu me pedires.
E deixou-lhe, sobre a mesa um rolo de moedas.
— Obrigado, meu senhor e príncipe: antes, porém, deixe-me V. Alteza ver o colarinho de renda em que estava entretecido o cabelo.
— Ei-lo. E logo mostrou-o pois o trazia no pescoço.
— De fato não tem o nome de quem o fabricou. Mande V. Alteza chamar o alfaiate que o trouxe e ele saberá onde o comprou e quem o vendeu.
— E esta? E eu não me lembrei disso!
— De V. Alteza não me admiro eu porque está apaixonado e os namorados nunca têm juízo perfeito... Mas os seus ministros... São uns talentos!
Daí a pouco o alfaiate estava no palácio, muito assustado, porque o bobo para se divertir, quando o foi buscar, disse-lhe que o príncipe ia mandá-lo por no calabouço. Logo que entrou caiu de joelhos, mas o príncipe o ergueu.
O bobo ria-se satisfeito. Vendo alfaiate mais tranqüilo, e tomando disfarçadamente o peso da bolsa exclamou:
— Não há calmante melhor que o ouro.
— Quem fez esta renda, mestre alfaiate?
— Saiba V. Alteza que uma jovem muito linda e honesta cuja habilidade é inexcedível. Tem uns dedos de fada. Ela é pobre e sustenta com o seu trabalho a velha mãe doente.
O príncipe estava radiante de alegria. Indagou:
— Como se chama essa formosa trabalhadora?
— Seu nome é Bilrinha e mora bem longe da cidade, na estrada real. Se V. Alteza quer encomendar algumas rendas eu irei levar pessoalmente.
— Não. Vai para a tua oficina, e guarda silêncio, senão...
— Senão torcemos-te o pescoço, sem dó nem piedade, gritou-lhe o bobo.
O alfaiate tratou de retirar-se desfazendo-se em cortesias e mesuras e aflito para contar as moedas que tiniam na bolsa.
Impaciente, o príncipe disfarçou-se em simples fidalgo e acompanhado do bobo foi à casa de Bilrinha.
Ficou encantado vendo-a na janela e, a pretexto de ter sede, pediu-lhe água que ela, pressurosa, foi buscar.
Entrou para descansar e admirou muitas rendas que ela guardava num balaio.
— Tenho uma encomenda, disse ele, já que o acaso me trouxe aqui.
— Que deseja, senhor? Perguntou ela fitando no moço, seus olhos cor do céu.
— Um véu de noiva, tornou ele mas quero um trabalho lindo; pagarei bem. Desejo que o faça com o maior gosto. Aqui tem por conta.
Assim que chegou ao paço o príncipe real notificou sua mãe do que sucedera e uma carruagem partiu, logo, a galope de magníficos cavalos para convida-la a vir ao palácio da rainha.
Quando o carro chegou estava a Bilrinha a pensar no elegante fidalgo e já dera começo à encomenda que ele fizera — um véu de núpcias.
De vez em quando suspirava e a mãe perguntava:
— Por que suspiras tanto, hoje, menina?
À chegada da carruagem foi um alvoroço. Bilrinha apressou-se em ir e a rainha achou-a deveras bonita. Ficou maravilhada quando soube que o príncipe a escolhera e que ao fio de cabelo devia tal felicidade.
Nisto o príncipe entrou e ajoelhou-se, beijando-lhe a mão.

A notícia do casamento do príncipe correu por toda parte. Bilrinha fez o seu véu e conservou sua casa na estrada. Sua mãe, o pombo e o canário vieram para o palácio e todas as manhãs a nova princesa os cuidava.
O bobo pediu três coisas: um rico traje de gala para assistir ao casamento, o título de barão e a nomeação de chefe de polícia quando o príncipe subisse ao trono.
Eis como um fio de cabelo decidiu o futuro de uma pessoa.




O título do livro é A ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.

O livro inicia-se com

AO LEITOR.

Mais um livro de histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência, o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a única no Brasil.
O presente volume que foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.

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