O fio de cabelo
Naquela suave manhã os
dedos de Bilrinha — a fazedora de rendas — trabalhavam com uma
atividade febril. A agulha entrava, subia, descia, subia pelos fios
de tecido. O dia primaveril convidava a passeio; os passarinhos
saltitavam pipilando e o sol dourava o cimo das árvores, os telhados
vermelhos e a torre branca da igreja.
Mas nem por isso a
jovem Bilrinha, com sua feições de anjo e seu 17 anos, tirava os
olhos do trabalho.
Um pombo branco que
esvoaçava no jardim perguntou ao canário que estava numa gaiola
doirada, à janela:
— Que terá hoje a
Bilrinha que não te deu alpiste e nem me jogou o milho da manhã?
O canário, aos
pulinhos, respondeu, todo ufano por se mostrar bem informado:
— Pois você não vê
que ela trabalha? Não sabe no próximo sábado é celebrado o
jubileu da rainha, nossa senhora?
— Mas que está ela
fazendo com tanta pressa e cuidado?
— Ora, é um
colarinho de rendas para algumas damas ou grande fidalgo. Não sabias
que ela é amais hábil tecedora de rendas desta terra?
— Lá isso é, mas
estou com fome e vou procurar com que nutrir meus filhotes. É
preciso que a encomenda seja muito apressada para que ela se
esquecesse de nós.
E o pombo alçou o vôo
mas como era preguiçoso e a floresta distante, ele resolveu chamar a
atenção de Bilrinha e esvoaçando em semi-círculo foi pousar na
janela arrulhando.
A moça ergue o belo
rosto e sorriu.
Com o trabalho esqueci
o almoço dos meus amiguinhos. Não tendo tempo mas no jardim não
falta o lque mariscar e a gaiola do canário ainda está bem provida.
O pombo beliscou aqui,
acolá e no momento de voar avistou um fio sedoso dos que Bilrinha
empregava na renda.
— Ora, aqui tenho,
pensou, ele, com que forrar o ninho dos meus pequenos que tanto
tremem. Creio que não farão falta uns dois ou três.
E levou três fios no
bico sem que a moça desse por tal.
Entretanto esta
monologava:
— Mais duas carreiras
de festão e remato minha bela gola de rendas. Felizmente consegui
escolher estes fios, tão finos e acetinados.
Nisto procurou os
últimos fios e não os achou.
Que fazer?
Onde achar os fios
iguais àqueles que escolhera com tanto zelo e que tão delicados
eram? Busca-los à cidade não convinha, pois tinha de entregar o
trabalho ao meio-dia.
Ficou desolada. Passou
uma busca na sua caixinha de costura, na cesta de vime e não achou;
havia outros de mais grossura mas os que empregara eram tão finos e
fortes que a colocação de outros evidenciaria a irregularidade e
quebraria a harmonia do entrelaçamento.
Veio-lhes, porém, uma
inspiração ao contemplar a homogeneidade e finura da renda e,
tomando uma das pesadas tranças tomou três fios de cabelo, louro
como trigal maduro. Foi com eles que fez o remate.
— Já ouvi dizer,
murmurou ela, que metendo um fio de cabelo na bainha de um véu de
noiva que as moças se casam naquele mesmo ano... Quem sabe o que me
sucederá pondo estes três fios nesta renda?
E assim, pensativa,
acabou o trabalho e o mandou entregar envolto em papel de seda.
A rainha completava o
seu jubileu e conquanto robusta e bem conservada ninguém
reconheceria hoje, naquela venerável dama, a formosa soberana que
subira ao trono, elegante como uma palmeira, com o manto coberto de
abelhas de ouro e na cabeça augusta uma coroa cintilante de
pedrarias...
Acabado o beija-mão,
retirou-se a rainha para o salão, cercada pelas damas do paço,
quando anunciaram que o Príncipe Real lhe queria falar.
— Meu filho, disse
ela, abraçando-o, minha felicidade hoje seria completa se tu
tivesses cedido aos meus rogos e eu pudesse ver a teu lado aquela que
me sucederá no trono. Não pensas pois em casar?
— Hesitei algum
tempo, porque o coração não me pedia que desse esse passo. Estou
agora mais disposto.
— Dize-me qual a
feliz criatura que escolhes-te; de certo uma princesa de sangue real?
— Minha mãe, não a
conheço...
— Como?! Estás
louco?
— Não, minha mãe,
mas só desposarei uma mulher que tenha cabeleira loura, de um louro
magnífico e raro.
— Que capricho,
murmurou, uma princesa, que julgava poder casar-se com o príncipe e
que tinha lindo cabelos, negros como a asa da graúna.
— Bem, meu filho, há
muitas princesas e nobres damas, louras, em nosso país.
— Não creio, minha
mãe. Conheceis alguma que tenha os cabelos com a finura e a cor
deste fio?
— Onde o achaste?
— No meu colarinho
rendado.
— Bem. Procura a quem
pertence este primor e arranjaremos o casamento, pois estou ficando
velha e fraca. Tenho sono. Até amanhã, a audiência está finda.
O príncipe dobrando o
joelho beijou a mão da rainha e saiu suspirando. A corte o seguiu e
a rainha, não pôde, no quarto, deixar de dizer à sua camareira:
— Meu filho não
compreende que tal casamento é esquisito...
Desde o dia seguinte
embaixadores e mensageiros percorriam as diversas cortes e a cidade
se enche de princesas e damas louras. O príncipe desdenhou a
princesa Fredegonda achando-a ruiva, e, esta sensibilizada teve
formidável ataque de nervos.
Outra dama que desmaiou
foi a princesa Branca, que tendo cabelos castanhos os tingira de cor
de ouro. O príncipe que tinha bons olhos não caiu nessa
mistificação.
A arqui-duqueza Clara
de Cenourândia esteve, por um triz a balancear o coração do
herdeiro da coroa, mas os brilhos metálicos de suas madeixas não
equivaliam ao suave reflexo do fio capilar pelo qual o príncipe se
embevecera.
Outros desenganos
tiveram a Baronesa da Poeira, a Condessa do Pé Pequeno (que por
sinal o tinha bem grande) e outras damas da alta nobreza germânica e
polaca, filhas de principículos com os nomes terminados em “offs”
e “burgs”.
A rainha ficara como o
fígado e o baço achacados e os embaixadores estavam exaustos. O
príncipe vendo que pela diplomacia nada obtinha, resolveu um dia
consultar o seu truão ou bobo do paço e contou-lhe o que havia e o
mau resultado das pesquisas dos embaixadores e da polícia.
— Pois tanta gente
não descobriu coita tão simples?
— Achas o caso
simples?
— Simplíssimo.
— Nem os homens da
polícia descobriram e você pensa que...
— Tome Vossa Alteza o
meu conselho e mande-os enforcar. Eu descobrirei a feliz dona desse
fio de ouro.
— Pois se o fizeres
far-te-ei mercê de uma bolsa cheia de dinheiro e no dia do meu
casamento, darei três coisa que tu me pedires.
E deixou-lhe, sobre a
mesa um rolo de moedas.
— Obrigado, meu
senhor e príncipe: antes, porém, deixe-me V. Alteza ver o colarinho
de renda em que estava entretecido o cabelo.
— Ei-lo. E logo
mostrou-o pois o trazia no pescoço.
— De fato não tem o
nome de quem o fabricou. Mande V. Alteza chamar o alfaiate que o
trouxe e ele saberá onde o comprou e quem o vendeu.
— E esta? E eu não
me lembrei disso!
— De V. Alteza não
me admiro eu porque está apaixonado e os namorados nunca têm juízo
perfeito... Mas os seus ministros... São uns talentos!
Daí a pouco o alfaiate
estava no palácio, muito assustado, porque o bobo para se divertir,
quando o foi buscar, disse-lhe que o príncipe ia mandá-lo por no
calabouço. Logo que entrou caiu de joelhos, mas o príncipe o
ergueu.
O bobo ria-se
satisfeito. Vendo alfaiate mais tranqüilo, e tomando disfarçadamente
o peso da bolsa exclamou:
— Não há calmante
melhor que o ouro.
— Quem fez esta
renda, mestre alfaiate?
— Saiba V. Alteza que
uma jovem muito linda e honesta cuja habilidade é inexcedível. Tem
uns dedos de fada. Ela é pobre e sustenta com o seu trabalho a velha
mãe doente.
O príncipe estava
radiante de alegria. Indagou:
— Como se chama essa
formosa trabalhadora?
— Seu nome é
Bilrinha e mora bem longe da cidade, na estrada real. Se V. Alteza
quer encomendar algumas rendas eu irei levar pessoalmente.
— Não. Vai para a
tua oficina, e guarda silêncio, senão...
— Senão torcemos-te
o pescoço, sem dó nem piedade, gritou-lhe o bobo.
O alfaiate tratou de
retirar-se desfazendo-se em cortesias e mesuras e aflito para contar
as moedas que tiniam na bolsa.
Impaciente, o príncipe
disfarçou-se em simples fidalgo e acompanhado do bobo foi à casa de
Bilrinha.
Ficou encantado vendo-a
na janela e, a pretexto de ter sede, pediu-lhe água que ela,
pressurosa, foi buscar.
Entrou para descansar e
admirou muitas rendas que ela guardava num balaio.
— Tenho uma
encomenda, disse ele, já que o acaso me trouxe aqui.
— Que deseja, senhor?
Perguntou ela fitando no moço, seus olhos cor do céu.
— Um véu de noiva,
tornou ele mas quero um trabalho lindo; pagarei bem. Desejo que o
faça com o maior gosto. Aqui tem por conta.
Assim que chegou ao
paço o príncipe real notificou sua mãe do que sucedera e uma
carruagem partiu, logo, a galope de magníficos cavalos para
convida-la a vir ao palácio da rainha.
Quando o carro chegou
estava a Bilrinha a pensar no elegante fidalgo e já dera começo à
encomenda que ele fizera — um véu de núpcias.
De vez em quando
suspirava e a mãe perguntava:
— Por que suspiras
tanto, hoje, menina?
À chegada da carruagem
foi um alvoroço. Bilrinha apressou-se em ir e a rainha achou-a
deveras bonita. Ficou maravilhada quando soube que o príncipe a
escolhera e que ao fio de cabelo devia tal felicidade.
Nisto o príncipe
entrou e ajoelhou-se, beijando-lhe a mão.
A notícia do casamento
do príncipe correu por toda parte. Bilrinha fez o seu véu e
conservou sua casa na estrada. Sua mãe, o pombo e o canário vieram
para o palácio e todas as manhãs a nova princesa os cuidava.
O bobo pediu três
coisas: um rico traje de gala para assistir ao casamento, o título
de barão e a nomeação de chefe de polícia quando o príncipe
subisse ao trono.
Eis como um fio de
cabelo decidiu o futuro de uma pessoa.
O título do livro é A
ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não
foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um
nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA
QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.
O livro inicia-se com
AO LEITOR.
Mais um livro de
histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL
ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao
bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência,
o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a
única no Brasil.
O presente volume que
foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas
histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres
como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são
a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim
trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande
a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora
damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação
doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer
extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa
coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus
filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e
agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.
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