CONTO
O conto caracteriza-se, geralmente, por apresentar um
enredo cuja estrutura contém as seguintes partes: complicação,
clímax, e desfecho. A narrativa, entretanto, de alguns contos
desmonta esse esquema de enredo.
Um conto é um tipo de narrativa concentrada, que
elimina as análises minuciosas de personagens ou ambiente, assim
como as complicações de enredo, e delimita o espaço e o tempo.
Esse conto, entretanto, apresenta um foco narrativo diferente, pois
limita o ângulo de visão do narrador ao dar voz ao personagem, que
narra sob sua ótica os fatos vividos por ela.
A concentração no papel do narrador é muito variável,
pois em alguns contos desempenha papel fundamental para a compreensão
do enredo em outros vai cedendo lugar à voz dos personagens.
Quanto à linguagem também pode ser muito variável
oscilando entre a linguagem estritamente formal a uma informalidade
podendo chegar ao coloquialismo.
Outro aspecto que diferencia esse conto é a ausência
da estrutura tradicional desse gênero, pois, embora apresente um
conflito, o desfecho fica em aberto: cabe ao leitor concluir.
Lembrança1
Lembro-me de que ele só usava camisas brancas. Era um
velho limpo, e eu gostava dele por isso. Eu conheci outros velhos, e
eles não eram limpos. Além disso, eram chatos. Meu avo não era
chato. Ele não incomodava ninguém. Nem os de casa ele incomodava.
Ele quase não falava. Não pedia as coisas a ninguém. Nem uma
travessa de comida na mesa ele gostava de pedir. Seus gestos eram
firmes e suaves, e quando ele andava, não fazia barulho.
Ficava no quartinho dos fundos, e havia sempre tanta
gente e tanto movimento na casa, que às vezes até se esqueciam da
existência dele. De tarde costumava sair para dar uma volta. Ia só
até a praça da matriz, que era perto. Estava com setenta anos e
dizia que suas pernas estavam ficando fracas. Levava-me sempre com
ele. Conversávamos, mas não me lembro sobre o que conversávamos.
Não era sobre muita coisa. Não era muita coisa a conversa. Mas isso
não tinha importância. O que gostávamos era de estar juntos.
Lembro-me de que uma vez ele apontou para o céu e
disse: “Olha.” Eu olhei. Era um bando de pombos, e nós ficamos
muito tempo olhando. Depois ele voltou-se para mim e sorriu. Mas não
disse nada. Outra vez eu corri até o fim da praça, e lá de longe
olhei para trás. Nessa hora uma faísca riscou o céu. O dia estava
escuro e uma ventania agitava as palmeiras. Ele estava sozinho no
meio da praça, com os braços atrás e a cabeça branca erguida
contra o céu. Então pensei que meu avo era maior que a tempestade.
Eu era pequeno, mas sabia que ele tinha vivido e sofrido
muita coisa. Sabia que cedo ainda a mulher o abandonara. Sabia que
ele tinha visto mais de um filho morrer. Que tinha sido pobre e
depois rico e depois pobre de novo. Que durante sua vida uma porção
de gente o havia traído e ofendido e logrado. Mas ele nunca falava
disso. Nenhuma vez o vi falar disso. Nunca o vi queixar-se de
qualquer coisa. Também nunca o vi falar mal de alguém. As pessoas
diziam que ele era um velho muito distinto.
Nunca pude esquecer sua morte. Eu o vi, mas na hora não
entendi tudo. Eu só vi o sangue. Tinha sangue por toda a parte. O
lençol estava vermelho. Tinha uma poça no chão. Tinha sangue até
na parede. Nunca tinha visto tanto sangue. Nunca pensara que, uma
pessoa se cortando, pudesse sair tanto sangue assim. Ele estava na
cama e tinha uma faca enterrada no peito. Seu rosto eu não vi.
Depois soube que ele tinha cortado os pulsos e aí cortado o pescoço
e então enterrado a faca. Não sei como deu tempo de ele fazer isso
tudo, mas o fato é que ele fez. Tudo isso. Como, eu não sei. Nem
por quê.
No dia seguinte ainda tornei a ver sua camisa perto da
lavanderia, e pensei que, mesmo que ela fosse lavada milhares de
vezes, nunca mais poderia ficar branca.
Foi o único dia em que não o vi limpo. Se bem que
sangue não fosse sujeira. Não era. Era diferente.
1
Conto escrito por LUIZ VILELA.
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