sábado, 5 de abril de 2014

MERECE SER LEMBRADO 18


O GRÃO DE SAL


Nos bons tempos do império romano os ostrogodos vinham fazer freqüentes incursões nas províncias e, nas suas expedições chegavam perto da capital onde morava o soberano.
Havia então entre os bárbaros um soldado gigante, da altura de oito pés e meio, tão robusto que fazia parar, com uma só mão, um carro de guerra lançado a galope de quatro cavalos. Seus grossos bigodes caídos nos cantos da boca, sua enorme cabeleira e tanga de peles de leão, davam-lhe um aspecto de ave de rapina com asas. Parecia-se o rosto com a figura da águia ou gavião e mesmo se dizia que ele era antropófago, isto é, comia carne humana.
Todas as manhãs este gigante que se chamava “Braço de Ferro” se aproximava das muralhas para zombar dos soldados do exército romano e em sinal de desafio erguia uma auriflama três vezes e batia com a clava possante nas correntes da ponte levadiça.
Nenhum cavaleiro romano ousava ir medir-se com semelhante contendor. Por isso, o prudente e sábio Marcus, confidente e conselheiro do imperador, escutando tão somente as conveniências do governo, dizia ao rei:
— Senhor, entre os vossos capitães nenhum, só, será capaz de aceitar o desafio e castigar aquele malcriado. Melhor é colocar em emboscada um pequeno grupo de homens que o cerquem, o prendam e conduzam aqui, morto ou vivo. Se vier vivo será enforcado no alto das muralhas para que os seus compatriotas o vejam.
Mas o chefe do Estado tinha nobres sentimentos e objetava:
— Vocês, amigos, como bispo que é, não entende nada destas questões de soldados. Que diriam de mim? Homem contra homem, isso sim! Um único cavaleiro deverá aceitar esse desafio.
— Não, é boa política, retrucou o conselheiro.
— Se nenhum dos meus nobres patrícios afrontar o combate, eu cingirei meu arnez e irei.. eu mesmo!
Mas, dizendo isso e animando-se com as próprias palavras, o soberano esqueceu-se que estava velho e doente. Veio-lhe um acesso de tosse, suores frios e teve de tomar um chá de tília para acalmar os nervos e meter-se na... cama.
Aliás, já sabia o conselheiro que o seu senhor não estava em condições de matar uma mosca quanto mais um gigante.
Por isso resolveu agir por conta própria e fez apregoar por todo o reino pelos seus arautos que seria dado o título de conde e ricas terras a qualquer pessoa, de qualquer condição social, que matasse o gigante.
Esse édito chegou aos ouvidos de um anão, chamado Grão de Sal, que vestia sempre de amarelo, feio de meter medo, com orelhas direitas e grandes como as de um asno e uma barba comprida que parecia fios de estopa.
Mas se Grão de Sal nada tinha de simpático, era, em compensação, uma criatura muito engenhosa de espírito e habilidosa de mãos; era tão jeitoso quanto pequenino e feio; sabia curvar arcos e atirar flechas matando passarinhos em largo, vôo; fabricava com canas do brejo flautas e assobios que atraiam pássaros cujo canto ele imitava; fabricava com mel, folhas de rosas e pétalas de violetas, bolos e pudins com que presenteava as feiticeiras da floresta que o consideravam muito.
Naquele tempo, como ainda hoje, as feiticeiras ou as que se dizem tais, não dispensavam os bons petiscos.
Entre estas bruxas havia um anãzinha, de um palmo e meio de alto, muito bonitinha, e que era prima de Grão de Sal; esta, que se chamava Bolinha, tinha uma especial predileção pelo anão.
Íamos esquecendo dizer que Grão de Sal era de temperamento rixoso e gostava de aventuras; quando ia uma vez à fonte beber água fresca, ouviu o proclama convidando os valentes a se baterem com o gigante e encheu-se de coragem e avidez de glória. Abandonou o odre que levava para encher de água, correu abraçar a prima Bolinha e quis seguir viagem imediatamente. Mas a prima, boa feiticeira e mais ajuizada, lhe fez ver que lhe faltavam armas, equipamentos, um traje novo, víveres para a viagem e uma cavalgadura decente.
A feiticeira que conhecia todos os encantos da mata foi procurar uma casca de tartaruga, de que Grão de Sal fez um forte escuto; matou um cágado e do casco fez ele um capacete que a fada enfeitou com uma flor de cardo, e de um bambu oco preparou o anão um carcaz que ela encheu com quatro dúzias de dardos de porco-espinho.
Mandou mais a Bolinha que as aranhas tecessem toda a noite, e com o fio que tingiu de amarelo, preparou um justilho e umas bragas; afinal à guisa de cavalo de batalha, presenteou-o com um papagaio bravo, todo ajaezado o qual era seguido de quatro pombos correios que levavam as comidas de que o anão mais gostava, tais como línguas de passarinhos, fritadas de ovos de lagartixa, miolos de mosquito, doce de murgo e geléia de mocotó de rã.
As despedidas de Grão de Sal foram comoventes; ele jurou que voltaria vencedor e tomou a Lua por testemunha de que na volta a prima Bolinha seria condessa.
Quando o anão se apresentou no palácio, o conselheiro ficou furioso a ponto de quando vestia o imperador dar-lhe as calças pelo avesso, mas o monarca riu-se e recebeu muito bem o pequeno guerreiro dando-lhe a mão para beijar.
— Não seria a primeira vez que um pequeno vence um grande disse ele.
Na manhã seguinte quando o gigante Braço de Ferro veio, mais insolente que nos outros dias, zombar dos guerreiros romanos, um papagaio bravio trazendo nas costas um pequeno cavaleiro vestido de amarelo, voou do alto da muralha e viu voltear ao redor do atrevido. O pequenino campeão tirou de uma casquinha de caramujo um som estridente que parecia uma provocação e um grito de guerra:
— Fiau! Fiau!
Grão de Sal ia, de fato, combater o gigante. Os romanos tinham-se agrupados nas ameias e muralhas para verem o estranho e singular combate e, na planície, o exercito dos ortrogodos se aproximou em forma de meia lua para melhor presenciar o extraordinário duelo que ninguém tomava a sério.
Braço de Ferro levantou a cabeça e vendo o campeão que os romanos lhe opunham, deu uma tal gargalhada que ressoou por todo o campo. O imperador quase se arrependeu de ter consentido numa luta tão desproporcional.
Grão de Sal era um cavaleiro hábil e o papagaio, apesar dos berros, numa montada dócil e rápida; o anão tomou o arco e largou uma flecha que veio fixar-se no meio do nariz do gigante. Rebatendo-a com um revez da mão esquerda ele tentou arrancar a flecha mas esta que era farpada como um anzol ficou presa e mais se encravara na carne à medida que o gigante a puxava.
Este, então, fez girar a sua clava enorme, como a asa de um moinho, mas o papagaio, esperto, livrou-se e o anão meteu outra flecha na orelha esquerda e mais uma, a seguir na orelha direita.
Tanto de um lado como de outro viam os espectadores que a luta ia tomando um caráter sério e o gigante dava urros de raiva vendo-se farpado. Por fim largou a acha de armas e com uma funda fez girar uma enorme pedra. O papagaio subiu e o calhao não acertou nele mas os dardos de porco-espinho que o anão atirou, estes feriram o alvo e a cara do gigante ficou crivada deles. O sangue escorria e a boca espumava. Braço de Ferro tirou a espada e deu golpes seguidos de ponta, de gume e de prancha.
De súbito um grito de angústia dos romanos repercutiu nas muralhas: o papagaio caía... mas era apenas uma manobra de guerra. O anão atacava os pés nus do gigante e crivava-os de setas de porco-espinho. Afobado, Braço de Ferro retomou a clava e tentou alcançar o adversário mas este se esquivava, o seu esquisito cavalo berrava e das muralhas uma gritaria imensa aclamava o anão!
Depois, sempre se valendo dos dardos de porco-espinho, Grão de Sal crivou os braços musculosos do gigante e o amplo tronco. Braço de Ferro se estorcia de dor e bramia de cólera como uma fera acuada.
Entretanto pareceu a todos que a ave estava cansada e não poderia mais com o peso do cavaleiro; o gigante renovava golpes terríveis capazes de derrubar um boi.
Viu-se afinal que a ave se punha fora do alcance do guerreiro. Braço de Ferro sentia-se desmoralizado.
Grão de Sal aproximou-se da muralha onde estava o monarca e fez à imperatriz Teodora uma saudação respeitosa, tirando o capacete. Depois voltou ao combate e imóvel em frente do inimigo flechou o peito alvo e nu do gigante com sucessivos dardos cada um produzia uma gota de sangue e todos viram a letra que ele desenhara, a inicial do nome da imperatriz — um T!
A luta continuou indecisa mas daí a pouco o anão visou sucessivamente os olhos de Braço de Ferro. Dois rugidos tremendos, como os de um leão no deserto, fizeram os espectadores compreender que o gigante estava cego!
O atleta caiu, rolando no pó. Então Grão de Sol apeou-se, saltou sobre o corpo do gigante, e, com a última flecha, varou-lhe o coração.
Os ostrogodos se retiraram em desordem e transpuseram os campos em fuga. O anão foi aclamado e conduzido em triunfo à capital do império.
O anão Grão de Sal tornou-se o ídolo do palácio e data desse tempo o costume dos reis, quer de França, Espanha ou de outros países, de possuírem na corte um anão. Como tinham graça e inteligência, os anões eram escolhidos para dizer graças, motejar e zombar os cortesãos. Eram os “bobos” da corte. Deram-lhe o título de Conde e servia à mesa o seu imperial senhor, sendo incumbido de apresentar aos soberanos, sal, azeite, vinagre e mostarda.
Durante um ano tudo correu bem, mas o conselheiro do rei, o bispo Marcus — não gostava dele e só buscava pretexto para pô-lo fora, de modo que um dia de festa, o anão caiu em desagrado.
É que a mostarda que levava no galheiro era muito forte e o anão espirrou três vezes seguidas: a primeira sobre a calva do imperador que tinha o crânio como um ovo de avestruz; a segunda sobre o manto da imperatriz e a terceira quando ele se retirava, encafifado, sobre o prato que o seu imperador mais gostava — almôndegas de cabrito com pirão de batatas!
— Que desgraça!
O conselheiro imperial, todo escravo das etiquetas e formalidades, aproveitou o ensejo e exilou o anão. Este que durante o seu fastígio glorioso se esquecera da prima — a feiticeira Bolinha — foi-lhe bater à porta, desgostoso e todo transido de frio, pois chovia copiosamente.
A feiticeira perdoou a ingratidão de Grão de Sal que nem mesmo trazia o invencível papagaio. A este, o cozinheiro do palácio cortara-lhe o pescoço, enraivecido porque a ave, já livre das influências da magia, se punha a arremedar tudo o que ouvia. Um pajem malicioso ensinara o bicho a repetir nomes pouco decentes e a gritar:
— Cozinheiro! Cozinheiro porco!
Infelizmente o anão, no palácio, aprendera vida de preguiçoso e adquirira vícios tais que a sua apaixonada protetora, com seus poderes mágicos, não pôde extirpar: Grão de Sal se fizera bandido roubando os viajantes e embriagava-se constantemente. Impossível foi a sua regeneração.
Uma noite quando regressava embriagado caiu numa armadilha de lobos. Quando a fada apareceu já o anão estava morto.
Assim findou os seus dias o glorioso campeão e a fada que o amava sempre o chorou deveras. O espírito de Grão de Sal transformou-se numa bela moça, mas criatura mortal e casando-se chegou a ser condessa de verdade.
O conselheiro do imperador contente com a morte de Grão de Sal e receoso sempre de alguma diabrura mandou que o poeta da corte fizesse o epitáfio do anão.
Aqui jaz o Grão de Sal,
Com gigantes se bateu;
Mas, por beber menos mal
Numa arapuca morreu.






O título do livro é A ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.

O livro inicia-se com

AO LEITOR.

Mais um livro de histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência, o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a única no Brasil.
O presente volume que foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário