O GRÃO DE SAL
Nos bons tempos do
império romano os ostrogodos vinham fazer freqüentes incursões nas
províncias e, nas suas expedições chegavam perto da capital onde
morava o soberano.
Havia então entre os
bárbaros um soldado gigante, da altura de oito pés e meio, tão
robusto que fazia parar, com uma só mão, um carro de guerra lançado
a galope de quatro cavalos. Seus grossos bigodes caídos nos cantos
da boca, sua enorme cabeleira e tanga de peles de leão, davam-lhe um
aspecto de ave de rapina com asas. Parecia-se o rosto com a figura da
águia ou gavião e mesmo se dizia que ele era antropófago, isto é,
comia carne humana.
Todas as manhãs este
gigante que se chamava “Braço de Ferro” se aproximava das
muralhas para zombar dos soldados do exército romano e em sinal de
desafio erguia uma auriflama três vezes e batia com a clava possante
nas correntes da ponte levadiça.
Nenhum cavaleiro romano
ousava ir medir-se com semelhante contendor. Por isso, o prudente e
sábio Marcus, confidente e conselheiro do imperador, escutando tão
somente as conveniências do governo, dizia ao rei:
— Senhor, entre os
vossos capitães nenhum, só, será capaz de aceitar o desafio e
castigar aquele malcriado. Melhor é colocar em emboscada um pequeno
grupo de homens que o cerquem, o prendam e conduzam aqui, morto ou
vivo. Se vier vivo será enforcado no alto das muralhas para que os
seus compatriotas o vejam.
Mas o chefe do Estado
tinha nobres sentimentos e objetava:
— Vocês, amigos,
como bispo que é, não entende nada destas questões de soldados.
Que diriam de mim? Homem contra homem, isso sim! Um único cavaleiro
deverá aceitar esse desafio.
— Não, é boa
política, retrucou o conselheiro.
— Se nenhum dos meus
nobres patrícios afrontar o combate, eu cingirei meu arnez e irei..
eu mesmo!
Mas, dizendo isso e
animando-se com as próprias palavras, o soberano esqueceu-se que
estava velho e doente. Veio-lhe um acesso de tosse, suores frios e
teve de tomar um chá de tília para acalmar os nervos e meter-se
na... cama.
Aliás, já sabia o
conselheiro que o seu senhor não estava em condições de matar uma
mosca quanto mais um gigante.
Por isso resolveu agir
por conta própria e fez apregoar por todo o reino pelos seus arautos
que seria dado o título de conde e ricas terras a qualquer pessoa,
de qualquer condição social, que matasse o gigante.
Esse édito chegou aos
ouvidos de um anão, chamado Grão de Sal, que vestia sempre de
amarelo, feio de meter medo, com orelhas direitas e grandes como as
de um asno e uma barba comprida que parecia fios de estopa.
Mas se Grão de Sal
nada tinha de simpático, era, em compensação, uma criatura muito
engenhosa de espírito e habilidosa de mãos; era tão jeitoso quanto
pequenino e feio; sabia curvar arcos e atirar flechas matando
passarinhos em largo, vôo; fabricava com canas do brejo flautas e
assobios que atraiam pássaros cujo canto ele imitava; fabricava com
mel, folhas de rosas e pétalas de violetas, bolos e pudins com que
presenteava as feiticeiras da floresta que o consideravam muito.
Naquele tempo, como
ainda hoje, as feiticeiras ou as que se dizem tais, não dispensavam
os bons petiscos.
Entre estas bruxas
havia um anãzinha, de um palmo e meio de alto, muito bonitinha, e
que era prima de Grão de Sal; esta, que se chamava Bolinha, tinha
uma especial predileção pelo anão.
Íamos esquecendo dizer
que Grão de Sal era de temperamento rixoso e gostava de aventuras;
quando ia uma vez à fonte beber água fresca, ouviu o proclama
convidando os valentes a se baterem com o gigante e encheu-se de
coragem e avidez de glória. Abandonou o odre que levava para encher
de água, correu abraçar a prima Bolinha e quis seguir viagem
imediatamente. Mas a prima, boa feiticeira e mais ajuizada, lhe fez
ver que lhe faltavam armas, equipamentos, um traje novo, víveres
para a viagem e uma cavalgadura decente.
A feiticeira que
conhecia todos os encantos da mata foi procurar uma casca de
tartaruga, de que Grão de Sal fez um forte escuto; matou um cágado
e do casco fez ele um capacete que a fada enfeitou com uma flor de
cardo, e de um bambu oco preparou o anão um carcaz que ela encheu
com quatro dúzias de dardos de porco-espinho.
Mandou mais a Bolinha
que as aranhas tecessem toda a noite, e com o fio que tingiu de
amarelo, preparou um justilho e umas bragas; afinal à guisa de
cavalo de batalha, presenteou-o com um papagaio bravo, todo ajaezado
o qual era seguido de quatro pombos correios que levavam as comidas
de que o anão mais gostava, tais como línguas de passarinhos,
fritadas de ovos de lagartixa, miolos de mosquito, doce de murgo e
geléia de mocotó de rã.
As despedidas de Grão
de Sal foram comoventes; ele jurou que voltaria vencedor e tomou a
Lua por testemunha de que na volta a prima Bolinha seria condessa.
Quando o anão se
apresentou no palácio, o conselheiro ficou furioso a ponto de quando
vestia o imperador dar-lhe as calças pelo avesso, mas o monarca
riu-se e recebeu muito bem o pequeno guerreiro dando-lhe a mão para
beijar.
— Não seria a
primeira vez que um pequeno vence um grande disse ele.
Na manhã seguinte
quando o gigante Braço de Ferro veio, mais insolente que nos outros
dias, zombar dos guerreiros romanos, um papagaio bravio trazendo nas
costas um pequeno cavaleiro vestido de amarelo, voou do alto da
muralha e viu voltear ao redor do atrevido. O pequenino campeão
tirou de uma casquinha de caramujo um som estridente que parecia uma
provocação e um grito de guerra:
— Fiau! Fiau!
Grão de Sal ia, de
fato, combater o gigante. Os romanos tinham-se agrupados nas ameias e
muralhas para verem o estranho e singular combate e, na planície, o
exercito dos ortrogodos
se aproximou em forma de meia lua para melhor presenciar o
extraordinário duelo que ninguém tomava a sério.
Braço de Ferro
levantou a cabeça e vendo o campeão que os romanos lhe opunham, deu
uma tal gargalhada que ressoou por todo o campo. O imperador quase se
arrependeu de ter consentido numa luta tão desproporcional.
Grão de Sal era um
cavaleiro hábil e o papagaio, apesar dos berros, numa montada dócil
e rápida; o anão tomou o arco e largou uma flecha que veio fixar-se
no meio do nariz do gigante. Rebatendo-a com um revez da mão
esquerda ele tentou arrancar a flecha mas esta que era farpada como
um anzol ficou presa e mais se encravara na carne à medida que o
gigante a puxava.
Este, então, fez girar
a sua clava enorme, como a asa de um moinho, mas o papagaio, esperto,
livrou-se e o anão meteu outra flecha na orelha esquerda e mais uma,
a seguir na orelha direita.
Tanto de um lado como
de outro viam os espectadores que a luta ia tomando um caráter sério
e o gigante dava urros de raiva vendo-se farpado. Por fim largou a
acha de armas e com uma funda fez girar uma enorme pedra. O papagaio
subiu e o calhao não acertou nele mas os dardos de porco-espinho que
o anão atirou, estes feriram o alvo e a cara do gigante ficou
crivada deles. O sangue escorria e a boca espumava. Braço de Ferro
tirou a espada e deu golpes seguidos de ponta, de gume e de prancha.
De súbito um grito de
angústia dos romanos repercutiu nas muralhas: o papagaio caía...
mas era apenas uma manobra de guerra. O anão atacava os pés nus do
gigante e crivava-os de setas de porco-espinho. Afobado, Braço de
Ferro retomou a clava e tentou alcançar o adversário mas este se
esquivava, o seu esquisito cavalo berrava e das muralhas uma gritaria
imensa aclamava o anão!
Depois, sempre se
valendo dos dardos de porco-espinho, Grão de Sal crivou os braços
musculosos do gigante e o amplo tronco. Braço de Ferro se estorcia
de dor e bramia de cólera como uma fera acuada.
Entretanto pareceu a
todos que a ave estava cansada e não poderia mais com o peso do
cavaleiro; o gigante renovava golpes terríveis capazes de derrubar
um boi.
Viu-se afinal que a ave
se punha fora do alcance do guerreiro. Braço de Ferro sentia-se
desmoralizado.
Grão de Sal
aproximou-se da muralha onde estava o monarca e fez à imperatriz
Teodora uma saudação respeitosa, tirando o capacete. Depois voltou
ao combate e imóvel em frente do inimigo flechou o peito alvo e nu
do gigante com sucessivos dardos cada um produzia uma gota de sangue
e todos viram a letra que ele desenhara, a inicial do nome da
imperatriz — um T!
A luta continuou
indecisa mas daí a pouco o anão visou sucessivamente os olhos de
Braço de Ferro. Dois rugidos tremendos, como os de um leão no
deserto, fizeram os espectadores compreender que o gigante estava
cego!
O atleta caiu, rolando
no pó. Então Grão de Sol apeou-se, saltou sobre o corpo do
gigante, e, com a última flecha, varou-lhe o coração.
Os ostrogodos se
retiraram em desordem e transpuseram os campos em fuga. O anão foi
aclamado e conduzido em triunfo à capital do império.
O anão Grão de Sal
tornou-se o ídolo do palácio e data desse tempo o costume dos reis,
quer de França, Espanha ou de outros países, de possuírem na corte
um anão. Como tinham graça e inteligência, os anões eram
escolhidos para dizer graças, motejar e zombar os cortesãos. Eram
os “bobos” da corte. Deram-lhe o título de Conde e servia à
mesa o seu imperial senhor, sendo incumbido de apresentar aos
soberanos, sal, azeite, vinagre e mostarda.
Durante um ano tudo
correu bem, mas o conselheiro do rei, o bispo Marcus — não gostava
dele e só buscava pretexto para pô-lo fora, de modo que um dia de
festa, o anão caiu em desagrado.
É que a mostarda que
levava no galheiro era muito forte e o anão espirrou três vezes
seguidas: a primeira sobre a calva do imperador que tinha o crânio
como um ovo de avestruz; a segunda sobre o manto da imperatriz e a
terceira quando ele se retirava, encafifado, sobre o prato que o seu
imperador mais gostava — almôndegas de cabrito com pirão de
batatas!
— Que desgraça!
O conselheiro imperial,
todo escravo das etiquetas e formalidades, aproveitou o ensejo e
exilou o anão. Este que durante o seu fastígio glorioso se
esquecera da prima — a feiticeira Bolinha — foi-lhe bater à
porta, desgostoso e todo transido de frio, pois chovia copiosamente.
A feiticeira perdoou a
ingratidão de Grão de Sal que nem mesmo trazia o invencível
papagaio. A este, o cozinheiro do palácio cortara-lhe o pescoço,
enraivecido porque a ave, já livre das influências da magia, se
punha a arremedar tudo o que ouvia. Um pajem malicioso ensinara o
bicho a repetir nomes pouco decentes e a gritar:
— Cozinheiro!
Cozinheiro porco!
Infelizmente o anão,
no palácio, aprendera vida de preguiçoso e adquirira vícios tais
que a sua apaixonada protetora, com seus poderes mágicos, não pôde
extirpar: Grão de Sal se fizera bandido roubando os viajantes e
embriagava-se constantemente. Impossível foi a sua regeneração.
Uma noite quando
regressava embriagado caiu numa armadilha de lobos. Quando a fada
apareceu já o anão estava morto.
Assim findou os seus
dias o glorioso campeão e a fada que o amava sempre o chorou
deveras. O espírito de Grão de Sal transformou-se numa bela moça,
mas criatura mortal e casando-se chegou a ser condessa de verdade.
O conselheiro do
imperador contente com a morte de Grão de Sal e receoso sempre de
alguma diabrura mandou que o poeta da corte fizesse o epitáfio do
anão.
Aqui jaz o Grão de
Sal,
Com gigantes se bateu;
Mas, por beber menos
mal
Numa arapuca morreu.
O título do livro é A
ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não
foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um
nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA
QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.
O livro inicia-se com
AO LEITOR.
Mais um livro de
histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL
ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao
bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência,
o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a
única no Brasil.
O presente volume que
foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas
histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres
como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são
a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim
trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande
a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora
damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação
doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer
extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa
coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus
filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e
agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.
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