JOÃO SEM ALMA
Num país muito
distante da nossa terra, havia um rei e uma rainha que desejavam ter
um filho.
Tinham perdido já a
esperança de ter um herdeiro quando o príncipe tão desejado veio
ao mundo.
No palácio houve
grande alegria e todos gritavam:
— Viva ao príncipe
João! Que Deus dê felicidade e longa vida ao príncipe João!
Daí a poucos dias
houve nova festa para o batismo do príncipe e de todos os cantos do
reino vieram fidalgos e damas; muitas fadas e feiticeiras tinha sido
convidadas pois o rei queria que todas o protegessem. Havia moças,
belas e outras feias, algumas já velhas mas todas querendo
conquistar as boas graças do rei, que distribuía pelos convidados
presentes riquíssimos.
Depois do baile em que
as damas e senhores rivalizaram de elegância, o principesito foi
trazido num elegante berço para o meio do salão resplendente de
luzes. Um cavaleiro com um pequeno guarda-sol de ouro, recamado de
pedrarias cintilantes, cobria a fronte da real criança.
As fadas se reuniram em
torno do berço e Sibila, a mais velha, tomou um bastãozinho de
ébano e ouro e disse em voz alta:
No
original não aparece o que foi dito
Todas elas baixaram os
bastõezinhos mágicos sobre a cabeça do neófito e cada uma em alta
voz lhe fez um dom de beleza física ou de espírito.
Assim uma dizia:
— Tu serás vigoroso!
E outra se lhe seguia:
— Terás lindos
cabelos!
E mais outra:
— Teus dentes serão
como pérolas do mar!
— Serás corajoso até
à temeridade!
Ou então:
— Terás riquezas
imensas.
Os pais estavam
contentíssimos com estas predições. O seu filho estava
predestinado as mais altas glórias e destinos.
Mal acabava a última
fada de falar desejando longa vida ao príncipe herdeiro, quando se
ouviu um bulício na entrada do salão e entrou bruscamente um anão
encapotado num manto vermelho.
Todos ficaram
espantados, com tal aparição.
O anão aproximou-se,
tirou a carapuça e mostrou uma cara sarcástica, pondo-se a rir. Seu
riso era estranho, metálico como o som de um guizo.
O rei saindo do seu
torpor, pôs a mão na espada e ia dar uma ordem quando o anão olhou
fixamente e o rei não se moveu do trono em que estava, ao lado da
rainha, também assustada e trêmula.
— Eu vos saúdo,
minhas dignas irmãs, disse ele, para as fadas silenciosas; saúdo e
agradeço não terdes falado segundo o meu pensamento. Se tivésseis
falado assim eu ficaria impotente e minha presença seria inútil.
E tornou a rir-se.
— Pois, vós, fadas
sem juízo, pensastes em tudo menos no principal. Sim, ele será belo
de encantar; tão formoso que causara terríveis ciúmes. Será
corajoso e forte e encantador. Mas terá um coração feio. Será mau
e cruel!
Um clamor de indignação
retumbou no paço. Muitos fidalgos e guardas desembainharam as
espadas.
Uma velha feiticeira
agitando uma varinha de ouro, gritou-lhe:
— Suspende miserável;
eu como mais velha de todas as fadas do bosque do rei, tenho direito
a fazer outro dom e vou fazê-lo; príncipe, eu dou...
Mas o riso infernal
cobriu-lhe a voz.
— É tarde, muito
tarde! Nenhuma fada poderia revogar a minha sentença. Batizei o
príncipe. Chama-se João Sem Alma.
Prendam-no, bradou o
rei.
Mas era tarde. O anão
saltara sobre as cabeças dos circunstantes e galgara uma janela de
onde saltou ao solo.
Ninguém mais o viu.
— Procurem-no por
todo o reino e vós, fadas miraculosas, protegei meu filho.
Satisfarei todos os vossos desejos. Que fiz então para merecer a
cólera de tão poderoso duende?
Entretanto, os anos
passaram e o rei e a rainha de consolar-se por ter ao menos, um filho
belo.
De fato, este tornou-se
um formoso e corajoso príncipe, mas tão cheio de graça e vigor
quanto perverso. Todos fugiam dele para evitar as maldades que fazia.
Zombava das pessoas
pobres e aleijadas, furava os olhos dos pássaros e inventava
atrocidades para afugentar aqueles que o serviam.
Um mendigo pediu-lhe
uma esmola e ele atirou-lhe uma pedra que vitimou o infeliz.
Quando passava pelos
campos, como um furacão atropelando tudo o que encontrava, as
crianças e os camponeses fugiam dele como se vissem o demônio.
Sobre ele choviam as
maldiçoes e já o teriam morto se não fosse protegido pelo acaso ou
mão misteriosa que o afastava dos perigos e emboscadas que lhe
armavam.
Não era ele protegido
por uma fada que lhe predissera longa vida?
O rei tinha desgosto
profundo em ter um filho tão mau. A rainha, a principio deu-lhe
conselhos e rogava-lhe, em lágrimas, que mudasse de proceder. O moço
príncipe a nada atendeu e tornou-se tão malcriado que a rainha o
mandou expulsar de sua presença.
Desse dia em diante a
rainha não saiu mais de seus aposentos e nenhuma festa se realizou.
Ela vivia triste, e debalde as suas damas procuravam consola-la. Se,
às vezes, estava à janela e o príncipe João atravessava o pátio
do castelo, ela fechava a janela para não vê-lo flechar, com um
arco, os belos e mansos cisnes do lago do jardim.
Uma tarde em que mais
triste estava. Pois soubera demais uma maldade do príncipe que
mandara incendiar a choupana de uma pobre família para divertir-se
com os gritos dos infelizes moradores que fugiam aflitos, ela chegou
à janela e viu um pirilampo muito luminoso que luzia no espaço.
Pouco a pouco a luz se
foi aproximando e clareando e clareando depois o seu quarto e a
varanda do palácio à proporção que o pirilampo se aproximava da
sacada de mármore.
A rainha julgou que
fosse alguma fada protetora, que se apiedasse dela, atendendo às
constantes preces que erguia ao céu para regeneração do filho e
exclamou:
— Ó milagrosa fada,
livrai-me deste penar. Daí bom coração ao meu filho!
Mas de súbito em vez
do luminoso pirilampo achou-se a rainha face a face com o anão
vestido de capote cor de sangue. Não pôde gritar nem fugir, e, o
estranho visitante já lhe segurava o braço.
— Vim dizer-te,
rainha infeliz, que não fui surdo aos teus rogos, contei tuas
lágrimas e me apiedei de ti!
— Oh! Respondeu a
rainha quase caindo de joelhos. Se isto fizeres eu vos perdoarei todo
o mal que tenho sofrido. Revogai a vossa fatal sentença.
— Não posso fazer
tanto.
— Mas, por quê? Meu
filho vive odiado e desprezado por todos. Por esta vingança?
— Queres sabe-lo? Eu
vo-lo direi: “O vosso esposo foi sempre um orgulhoso e mau. Foi
impiedoso e cruel. Um dia, quando caçava na floresta, um pobre
lenhador veio ajoelhar-se à sua passagem para implorar a graça de
seu filho injustamente condenado.
“O rei, Senhora,
riu-se, fez galopar o cavalo e açoitava o pedinte, de que a comitiva
do rei ainda se riu. — Este lenhador era eu.
“Quis logo castiga-lo
mas preferi esperar o nascimento de vosso filho para me vingar desse
mau homem que escarnecia da dor alheia”.
— Perdão, perdão,
soluçou a rainha.
— Já perdoei, tanto
que vos disse que tinha piedade. Sempre que nasce um menino, seja
pobre ou rico, há sempre um gênio mau que preside ao seu destino
mas se lhe dá más tendências, também lhe dá força de vontade
para se corrigir e regenerar.
— Mas quando?
— Muito em breve. Se
vos constar o desaparecimento do príncipe João não vos inquieteis.
Sou o seu padrinho e ele tem forças para tornar-se bom. peço-vos
segredo e velarei por ele.
A rainha ouvia isto
como magnetizada. A claridade foi desaparecendo sem que ela
pressentisse, esvoaçava um grande pirilampo que também se obumbrou
nas trevas da noite.
O relógio da torre
batia meia-noite.
II
NINGUÉM SOUBE DO
PRÍNCIPE JOÃO
O príncipe descera ao
parque, trajando veludo e um belo gorro que lhe assentava muito bem.
Nisto passava perto, mas receoso, um pajem, chamado Vitor.
João fora à beira do
lago mirar a sua imagem, mas vendo o pajem fez um aceno chamando-o.
Trêmulo, o pajem Vitor
se aproximou fazendo uma profunda reverencia.
— Chega-te medroso.
Que vês aí no lago?
— Nada, senhor.
— Estúpido! Não vês
a tua imagem e a minha?
— Sim, senhor
príncipe.
— Que tal achas a
minha, patife?
— Muito bela, senhor.
— Pois vai
procura-la.
E, juntando a ação às
palavras, agarrou bruscamente o pajem que não ousou defender-se e
jogou-o no meio do lago.
O mau príncipe pôs-se
a rir e seguiu adiante devastando as flores com a grossa bengala que
levava.
Nisto o grito de uma
ave o fez parar.
Olhou e viu um grande
pássaro, de linda e rara plumagem, empoleirado sobre a cornija da
muralha.
O pássaro tinha asas
enorme e o príncipe o considerou com certo espanto; quis voltar, mas
sendo aos maus instintos tomou do arco e zás, atirou-lhe certeira
flecha.
A bela e possante ave
caiu e o príncipe correu e vê-la.
Quando de debruçava
sentiu-se no entanto agarrado pelo bico recurvado e as garras aduncas
do pássaro.
E seu espanto cresceu
quando se sentiu arrebatado pelo espaço e carregado com velocidade
espantosa.
Gritou muito, mas
ninguém ouviu os seus brados de socorro.
Assim viajaram muito
tempo, sem que o pássaro tivesse fome, sede ou cansaço. Passaram
por cima de montes e vales, planícies e serras, ilhas mares,
atravessando precipícios e vendo muitos rios e grandes cidades.
Após três dias de
viagem a grande ave fez rumo a uma ilha ou antes um rochedo que jazia
em pleno oceano. Aí depôs o príncipe que estava fatigado e
perplexo.
— Onde estou eu? Foi
esta a primeira pergunta de João Sem Alma.
— Na ilha dos Anões,
disse, por trás dele uma voz jovial e sarcástica.
Voltando-se rápido,
viu o príncipe que o pássaro desaparecera; em sua frente estava um
anãozinho, de figura jovial e submissa. O pequeno ente tinha longa
barba; era um vleho.
João olhou-o com
desprezo, e cólera, dizendo-lhe:
— Quem te permitiu
tocar no filho de um rei? Foste tu que me fizeste roubar por uma
monstruosa ave maldita?
— Fui eu!
— Meu pai te
castigará.
— Não tenho medo de
ti nem dele.
— Meu pai mandará
seus navios a esta ilha e a destruirá por completo.
— Qual! Basta um
gesto meu para que a ilha desapareça. Como poderão os navios
encontra-la? Olha!
O anão estendeu os
braços e os rochedos se foram submergindo nas águas.
João, aterrorizado,
quis fugir mas a rocha em que estava também submergiu.
O príncipe lançou nos
ares um grito horrível de aflição, e sumiu-se nas ondas revoltas.
III
COISAS QUE SE PASSARAM
NA ILHA
— Acorda-te João,
disse uma voz argentina.
O príncipe abriu os
olhos e ficou admirado do que via; havia poucos minutos fora
arrebatado pelas ondas e agora se achava num imenso e belo parque. Um
grande palácio de cristal se erguia no meio de um jardim encantador.
— Príncipe, eis o
teu reino, disse-lhe o anão, fazendo uma reverência.
— Mas onde estou
afinal?
— Na ilha dos anões
que existe ou não existe, conforme eu quero. Não está no mapa a
ilha, mas que importa se estás bem e te sentes feliz! Toma este anel
e mete-o no dedo anular da mão direita. Quando tiveres um desejo a
exprimir muda-o para o anular da mão esquerda. Serás logo
satisfeito.
O príncipe aceitou o
anel e enfiou-o no dedo.
— Aqui terás muitos
vassalos, anões que estão aqui e ali escondidos. Aqui serás
poderoso ou escravo e previno-te que só de ti depende ser desgraçado
ou feliz. Nesta ilha toda a boa ação recebe prêmio e toda malvadez
recebe castigo. Adeus.
O anão riu-se
maliciosamente e desapareceu.
— Sou rei, proferiu
contente o príncipe, satisfeito com as maravilhas que via.
Foi logo visitar o
palácio onde viu salas riquíssimas, tapeçarias de seda e pedras
preciosas, cadeiras e móveis belíssimos, vasos e ânforas de ouro e
prata lavrada, colunas e estátuas admiráveis.
Músicos invisíveis
tocavam melodiosos acordes e do teto de cristal caíam pétalas de
rosas e gotas de perfumes esquisitos.
Uma mesa de mármore
coberta de flores em jarro de ouro e uma baixela de prata indicavam
ao príncipe que podia satisfazer o apetite.
Viam-se ali os mais
belos assados, pastéis deliciosos, doces e frutas magníficas. Não
faltavam vinhos raros e capitosos.
— Não vejo os
criados, disse o novo rei... Ah! Tenho o meu anel.
E enfiou no outro dedo.
Apareceram logo dez ou
doze anões muito bem vestidos, trazendo outros manjares.
— Andem com isso
bradou o príncipe. Gosto de pressa!
Como há tempos não
maltratava alguém, lembrou-se chicotear os criados.
Por meio do anel pediu
um chicote e logo ao alcance da mão lhe apareceu uma chibata de sete
palmos com cabo de marfim e ouro.
Quando ele ergueu o
chicote, a desordem foi geral. Os anões fugiam quebrando os pratos e
se atropelando uns aos outros. Muitos levaram formidável surra e o
príncipe tirano ria a ponto de chorar.
Mas quando os anões
desapareceram dos salões e corredores fez-se na sala uma
semi-obscuridade e as tapeçarias, estátuas e outros objetos
sumiram-se como por encanto.
A sala ficou vazia e as
paredes nuas. Parecia um cárcere. No centro havia uma mesa tosca, um
pão duro e negro e uma bilha de água.
Na muralha, em letras
de fogo, o príncipe leu esta inscrição, cheio de espanto.
“Príncipe, que
maltrata os seus servidores os não merece ter. Sirva-te sozinho e
contente-se com esse almoço”.
— Bem! Eu sou o dono
aqui e me vingarei. Veremos!
Quis utilizar-se do
anel mas não houve meios de o tirar do dedo; enfim, suspirando,
adormeceu sem tocar no magríssimo almoço de pão e água.
IV
COMO O PRÍNCIPE FICOU
SÓ NA HORA DO PERIGO
No dia seguinte o
príncipe acordou no meio das riquezas da véspera como se nada
houvesse acontecido.
Um anão com um libré
de púrpura e ouro trouxe-lhe uma taça com uma bebida agradável e
perfumosa.
Bebeu-a de um trago e
bradou:
— Traga-me um cavalo
e uma escolta. Quero dar um passeio.
Serviram-no logo. Um
cavalo ajaezado estava no pátio cercado de uma centena de anões,
todos uniformizados.
A escolta era bonita
mas o príncipe, cedendo à sua perversidade natural, murmurou entre
dentes:
— Ora esta! Um
batalhão de moscas! Quando eu entender esmagarei esta corja de
insetos!
O anão estribeiro que
retinha o cavalo branco como leite, lhe disse, curvando-se até o
chão:
— Senhor! Estes
companheiros são bravos e generosos.
— Pois bem, sigamos;
eu verei se isso é verdade.
Com a idéia maldosa de
fazer cansar os anões ele esporeou o ginete mas a escolta estava
sempre a seu lado.
Chegando ao alto de um
rochedo a pique sobre um precipício ele bradou para a escolta:
— Eis aqui boa
ocasião de mostra que sois bravos. Atirai-vos um a um, neste abismo,
de cabeça para baixo. Vamos! Quem é o primeiro?
Os anões se
entreolharam consternadíssimos.
— Eu mando! Obedecei!
Uma um os anões se
precipitaram no espaço caindo numa torrente onde desapareciam.
O príncipe ficou
satisfeito com a crueldade que fizera e continuou o passeio.
Antes de cem passos
encontrou um formidável dragão que saindo de uma gruta, lhe impedia
o caminho.
— Ai de mim! Socorro!
Socorro! Onde estão os anões dizia ele, desesperado.
Procurou o anel, mas
esquecera-o no palácio . entretanto, o bicho continuava ameaçador,
e o ginete cheio de terror empinou-se e atirou fora o cavaleiro que
tombou à pequena distância do monstro.
João sem alma perdera
a fala de medo, mas o dragão não se moveu. Dir-se-ia que só queria
meter-lhe medo.
Ao mesmo tempo o
príncipe lia tremendo esta frase, escrita na parede da gruta, em
línguas de fogo:
“Príncipe, quem é
mau na prosperidade, fica só na desgraça”.
Sumiram-se as letras e
ele deitou a fugir como um louco depois que viu o dragão meter-se na
gruta.
Transviado do caminho e
fatigado adormeceu com a cabeça num tronco de árvore.
De manhã, acordou
perplexo, sem saber os caminhos, mas logo avistou o palácio onde
tudo estava como na véspera.
Só então respirou
tranqüilo e almoçou.
À parte os criados que
o serviam, não via o príncipe outras pessoas. Os dias foram
decorrendo cada vez mais melancólicos e tristes. Ele, entretanto,
continuava a praticar maldades.
Dos pássaros na mais
se ouvia o canto, pois fugiam para evitar as flechas e pedradas do
tirano; músicas fúnebre e monótonas e a s flores do jardim que ele
fustigava com a bengala pendiam murchas e abatidas.
O príncipe passava as
horas, dormindo sobre os coxins e bocejando a todo instante.
— Onde se metem,
afinal, os meus vassalos? Vou reuni-los e passar-lhe revista, pois
estou cansado de reinar neste horrível deserto.
Logo que pôs o anel
encantado, a planície e os jardins se encheram de anões e duendes;
eram muito numerosos.
João Sem Alma,
montando um belo animal e com o espírito cheio de maldade, atirou o
cavalo sobre aquela multidão, pisando e atropelando, criticando a
estatura, o rosto, e, afinal esmagando alguns.
A turba gritava de
medo, mas João continuou mais feroz. Desembainhou a longa espada e
ergueu-a mas antes que ferisse alguém, todos fugiram, deixando-o
sozinho.
Furioso e embainhando o
gládio, João leu na relva verdejante estas palavras:
— “Quem quer
governar os outros deve primeiro governar a si mesmo”.
V
COMO O AMOR REGENERA
TUDO, ATÉ MESMO UM MAU SUJEITO.
O príncipe continuou a
viver só no seu despovoado domínio.
— Isto na pode
continuar, disse. Desejo ver o duende que me fez rei!
Aqui estou, senhor. Era
o anão da barba branca.
— Estou descontente,
falou o príncipe; tenho um palácio que se poderia chamar do
Silêncio e do Aborrecimento; tenho um reino e não tenho vassalos;
posso pedir o que entendo mas sou logo punido.
— Não te disse que
seria feliz ou infeliz conforme escolhesse o bem ou o mal?
— Não conheço que é
bem, e o mal me agrada. Tenho ou não tenho o direito de fazer o que
me agrada?
— Tem o direito a
tudo, menos maltratar os que te cercam. Neste caso os tiranizados têm
o direito de fugir e te odiar. Queres mais alguma coisa?
— Sim desejo voltar
ao palácio de meu pai.
— Isso não é coisa
de alçada minha, pois apenas obedeço ordens a quem vos trouxe aqui.
— Pois quero vê-lo.
— Ainda não é
tempo. Posso dar mais riquezas, se quiseres.
— Pois bem; quero
ouro e pedrarias, um palácio mais belo, cortesãs, damas e pajens e
para esposa a mais formosa princesa do mundo.
O anão estendeu os
braços; um enorme clarão ofuscou por momentos, os olhos do príncipe
e quando ele os abriu, viu-se numa vivenda verdadeiramente imperial,
entre numerosos e elegantes fidalgos, distintas damas. Era uma corte
opulenta e faustosa!
João Sem Alma ficara
deslumbrado.
Não eram mais
minúsculos anões mas senhores e damas em roupas e de gala, pajens e
guardas. O anão tomou a mão do príncipe e levou-o pelo braço.
Desceram a escada entre aclamações e tomaram o caminho da praia.
— Venha, príncipe,
receber sua noiva.
Mostrou-lhe um barco ao
longe.
— Não vê aquela
vela? É o navio, que traz a princesa Flora, a mais formosa e meiga
princesa do mundo.
O príncipe,
satisfeito, viu a galera aproximar-se rapidamente e logo que ancorou
foi apresentar as homenagens à sua noiva.
Esta era deveras
encantadora, maravilhosamente bela. Seguia-a lindas damas de honor e
pajens esbeltos e belos. A princesa vestia um tecido de seda prata e
ouro e, na cabeça, sobre os louros cabelos, brilhava um rico e
fúlgido diadema prendendo um véu riquíssimo.
João Sem Alma, a quem
não faltava espírito, como já sabemos, saudou a princesa, dizendo:
— Sede bem-vinda
neste reino que será o vosso.
Os fidalgos
acercaram-se e os acompanharam até o palácio.
Nisto uma pomba veio
pousar no ombro da princesa e João Sem Alma não se agradou do fato.
Cedendo aos seus maus
instintos agarrou brutalmente a avezinha, torceu-lhe o pescoço e
atirou-a aos pés da princesa.
— Oh! Que maldade,
exclamou ela, em lágrimas. Levem-me para bordo do meu navio. Não
quero nem posso viver numa terra em que os bons e os inocente não
tem o direito de viver.
O príncipe ficou
vermelho de raiva.
— Pois então por
causa de um miserável bicho recusais ser minha esposa? Não sou eu
bastante belo para aspirar a vossa mão?
— Sois de fato, muito
belo, mas eu prefiro à beleza do coração à formosura do rosto.
E sem dizer mais uma
palavra, nem volver a cabeça, dirigiu-se para o navio que se fez ao
largo imediatamente.
O príncipe procurou os
fidalgos, mas estes se haviam sumido como por encanto.
O príncipe, atônito,
viu-se só, como dantes sobre um rochedo, vendo desaparecer as velas
do navio que levava a princesa Flora.
Quando ela se sumiu no
horizonte, João Sem Alma, pela primeira vez na sua vida sentiu uma
aflição no espírito e começou a chorar convulsamente.
VI
UM FELIZ REGRESSO
Perdera a ilha todo o
encanto e dela só restava o rochedo, batido pelas vagas.
— Ai de mim,
exclamava o príncipe, erguendo os braços par ao firmamento. Sou
maldito, maldito! Ninguém me amará porque sou mau.
E continuou,
ajoelhando-se:
— Dava todo o meu
reino, toda a fortuna e minha beleza para ter um coração piedoso e
compassivo como o da princesa Flora!
Nisto pousou-lhe no
ombro a mão dum anão.
— Bravos, meu
afilhado, acabais de reconquistar a mão da princesa. O príncipe
João Sem Alma não existe mais. Viva João o Bom!
— Quem és, perguntou
o príncipe, admirado e fitando o anão que se embrulhava no capote
encarnado.
— Vossa mãe vos dirá
quem sou eu. Essas lágrimas vos regeneraram. Acabais de escolher
entre o Bem e o Mal, e preferistes o primeiro. Bem vedes que todas as
riquezas, glórias e vaidades não valem o prazer de fazer bem e ser
querido.
— Acredito. Tenho
pressa de abraçar meu pai e principalmente minha mãe para quem fui
tão ingrato.
— Pois ireis. Naquele
navio vem a princesa Flora; ide com ela, disse o anão mostrando uma
linda galeota que velejava.
A princesa Flora
recebeu o noivo cordialmente e sorrindo. Os mastros estavam
enfeitados com rosas e folhagens e quando ela apareceu e abraçou o
noivo a música tocou e os marujos deram vivas e içaram bandeiras
festivas.
— podeis partir,
disse o anão; já mandei mensageiros alados avisar a vossa volta.
achareis lá bons corações que vos amarão e vosso casamento será
festejado com alegria.
Pouco depois a galeota
abria velas ao vento bonançoso e se sumia na bruma.
Imagine-se com que
alegria foi o príncipe recebido pelos seus pais que acharam a
Princesa Flora belíssima.
Houve uma festa
magnífica e João quis que todos participassem dela. Fizeram-se
largas distribuições de vinhos finos e doces, gastando-se milhões
de moedas, mas todos os lares festejaram as núpcias do ex-João Sem
Alma, que passou a ser depois — João o Bom.
O título do livro é A
ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não
foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um
nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA
QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.
O livro inicia-se com
AO LEITOR.
Mais um livro de
histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL
ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao
bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência,
o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a
única no Brasil.
O presente volume que
foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas
histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres
como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são
a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim
trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande
a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora
damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação
doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer
extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa
coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus
filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e
agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.
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