sábado, 5 de abril de 2014

MERECE SER LEMBRADO 12


JOÃO SEM ALMA

Num país muito distante da nossa terra, havia um rei e uma rainha que desejavam ter um filho.
Tinham perdido já a esperança de ter um herdeiro quando o príncipe tão desejado veio ao mundo.
No palácio houve grande alegria e todos gritavam:
— Viva ao príncipe João! Que Deus dê felicidade e longa vida ao príncipe João!
Daí a poucos dias houve nova festa para o batismo do príncipe e de todos os cantos do reino vieram fidalgos e damas; muitas fadas e feiticeiras tinha sido convidadas pois o rei queria que todas o protegessem. Havia moças, belas e outras feias, algumas já velhas mas todas querendo conquistar as boas graças do rei, que distribuía pelos convidados presentes riquíssimos.
Depois do baile em que as damas e senhores rivalizaram de elegância, o principesito foi trazido num elegante berço para o meio do salão resplendente de luzes. Um cavaleiro com um pequeno guarda-sol de ouro, recamado de pedrarias cintilantes, cobria a fronte da real criança.
As fadas se reuniram em torno do berço e Sibila, a mais velha, tomou um bastãozinho de ébano e ouro e disse em voz alta:
No original não aparece o que foi dito
Todas elas baixaram os bastõezinhos mágicos sobre a cabeça do neófito e cada uma em alta voz lhe fez um dom de beleza física ou de espírito.
Assim uma dizia:
— Tu serás vigoroso!
E outra se lhe seguia:
— Terás lindos cabelos!
E mais outra:
— Teus dentes serão como pérolas do mar!
— Serás corajoso até à temeridade!
Ou então:
— Terás riquezas imensas.
Os pais estavam contentíssimos com estas predições. O seu filho estava predestinado as mais altas glórias e destinos.
Mal acabava a última fada de falar desejando longa vida ao príncipe herdeiro, quando se ouviu um bulício na entrada do salão e entrou bruscamente um anão encapotado num manto vermelho.
Todos ficaram espantados, com tal aparição.
O anão aproximou-se, tirou a carapuça e mostrou uma cara sarcástica, pondo-se a rir. Seu riso era estranho, metálico como o som de um guizo.
O rei saindo do seu torpor, pôs a mão na espada e ia dar uma ordem quando o anão olhou fixamente e o rei não se moveu do trono em que estava, ao lado da rainha, também assustada e trêmula.
— Eu vos saúdo, minhas dignas irmãs, disse ele, para as fadas silenciosas; saúdo e agradeço não terdes falado segundo o meu pensamento. Se tivésseis falado assim eu ficaria impotente e minha presença seria inútil.
E tornou a rir-se.
— Pois, vós, fadas sem juízo, pensastes em tudo menos no principal. Sim, ele será belo de encantar; tão formoso que causara terríveis ciúmes. Será corajoso e forte e encantador. Mas terá um coração feio. Será mau e cruel!
Um clamor de indignação retumbou no paço. Muitos fidalgos e guardas desembainharam as espadas.
Uma velha feiticeira agitando uma varinha de ouro, gritou-lhe:
— Suspende miserável; eu como mais velha de todas as fadas do bosque do rei, tenho direito a fazer outro dom e vou fazê-lo; príncipe, eu dou...
Mas o riso infernal cobriu-lhe a voz.
— É tarde, muito tarde! Nenhuma fada poderia revogar a minha sentença. Batizei o príncipe. Chama-se João Sem Alma.
Prendam-no, bradou o rei.
Mas era tarde. O anão saltara sobre as cabeças dos circunstantes e galgara uma janela de onde saltou ao solo.
Ninguém mais o viu.
— Procurem-no por todo o reino e vós, fadas miraculosas, protegei meu filho. Satisfarei todos os vossos desejos. Que fiz então para merecer a cólera de tão poderoso duende?
Entretanto, os anos passaram e o rei e a rainha de consolar-se por ter ao menos, um filho belo.
De fato, este tornou-se um formoso e corajoso príncipe, mas tão cheio de graça e vigor quanto perverso. Todos fugiam dele para evitar as maldades que fazia.
Zombava das pessoas pobres e aleijadas, furava os olhos dos pássaros e inventava atrocidades para afugentar aqueles que o serviam.
Um mendigo pediu-lhe uma esmola e ele atirou-lhe uma pedra que vitimou o infeliz.
Quando passava pelos campos, como um furacão atropelando tudo o que encontrava, as crianças e os camponeses fugiam dele como se vissem o demônio.
Sobre ele choviam as maldiçoes e já o teriam morto se não fosse protegido pelo acaso ou mão misteriosa que o afastava dos perigos e emboscadas que lhe armavam.
Não era ele protegido por uma fada que lhe predissera longa vida?
O rei tinha desgosto profundo em ter um filho tão mau. A rainha, a principio deu-lhe conselhos e rogava-lhe, em lágrimas, que mudasse de proceder. O moço príncipe a nada atendeu e tornou-se tão malcriado que a rainha o mandou expulsar de sua presença.
Desse dia em diante a rainha não saiu mais de seus aposentos e nenhuma festa se realizou. Ela vivia triste, e debalde as suas damas procuravam consola-la. Se, às vezes, estava à janela e o príncipe João atravessava o pátio do castelo, ela fechava a janela para não vê-lo flechar, com um arco, os belos e mansos cisnes do lago do jardim.
Uma tarde em que mais triste estava. Pois soubera demais uma maldade do príncipe que mandara incendiar a choupana de uma pobre família para divertir-se com os gritos dos infelizes moradores que fugiam aflitos, ela chegou à janela e viu um pirilampo muito luminoso que luzia no espaço.
Pouco a pouco a luz se foi aproximando e clareando e clareando depois o seu quarto e a varanda do palácio à proporção que o pirilampo se aproximava da sacada de mármore.
A rainha julgou que fosse alguma fada protetora, que se apiedasse dela, atendendo às constantes preces que erguia ao céu para regeneração do filho e exclamou:
— Ó milagrosa fada, livrai-me deste penar. Daí bom coração ao meu filho!
Mas de súbito em vez do luminoso pirilampo achou-se a rainha face a face com o anão vestido de capote cor de sangue. Não pôde gritar nem fugir, e, o estranho visitante já lhe segurava o braço.
— Vim dizer-te, rainha infeliz, que não fui surdo aos teus rogos, contei tuas lágrimas e me apiedei de ti!
— Oh! Respondeu a rainha quase caindo de joelhos. Se isto fizeres eu vos perdoarei todo o mal que tenho sofrido. Revogai a vossa fatal sentença.
— Não posso fazer tanto.
— Mas, por quê? Meu filho vive odiado e desprezado por todos. Por esta vingança?
— Queres sabe-lo? Eu vo-lo direi: “O vosso esposo foi sempre um orgulhoso e mau. Foi impiedoso e cruel. Um dia, quando caçava na floresta, um pobre lenhador veio ajoelhar-se à sua passagem para implorar a graça de seu filho injustamente condenado.
“O rei, Senhora, riu-se, fez galopar o cavalo e açoitava o pedinte, de que a comitiva do rei ainda se riu. — Este lenhador era eu.
“Quis logo castiga-lo mas preferi esperar o nascimento de vosso filho para me vingar desse mau homem que escarnecia da dor alheia”.
— Perdão, perdão, soluçou a rainha.
— Já perdoei, tanto que vos disse que tinha piedade. Sempre que nasce um menino, seja pobre ou rico, há sempre um gênio mau que preside ao seu destino mas se lhe dá más tendências, também lhe dá força de vontade para se corrigir e regenerar.
— Mas quando?
— Muito em breve. Se vos constar o desaparecimento do príncipe João não vos inquieteis. Sou o seu padrinho e ele tem forças para tornar-se bom. peço-vos segredo e velarei por ele.
A rainha ouvia isto como magnetizada. A claridade foi desaparecendo sem que ela pressentisse, esvoaçava um grande pirilampo que também se obumbrou nas trevas da noite.
O relógio da torre batia meia-noite.

II
NINGUÉM SOUBE DO PRÍNCIPE JOÃO

O príncipe descera ao parque, trajando veludo e um belo gorro que lhe assentava muito bem. Nisto passava perto, mas receoso, um pajem, chamado Vitor.
João fora à beira do lago mirar a sua imagem, mas vendo o pajem fez um aceno chamando-o.
Trêmulo, o pajem Vitor se aproximou fazendo uma profunda reverencia.
— Chega-te medroso. Que vês aí no lago?
— Nada, senhor.
— Estúpido! Não vês a tua imagem e a minha?
— Sim, senhor príncipe.
— Que tal achas a minha, patife?
— Muito bela, senhor.
— Pois vai procura-la.
E, juntando a ação às palavras, agarrou bruscamente o pajem que não ousou defender-se e jogou-o no meio do lago.
O mau príncipe pôs-se a rir e seguiu adiante devastando as flores com a grossa bengala que levava.
Nisto o grito de uma ave o fez parar.
Olhou e viu um grande pássaro, de linda e rara plumagem, empoleirado sobre a cornija da muralha.
O pássaro tinha asas enorme e o príncipe o considerou com certo espanto; quis voltar, mas sendo aos maus instintos tomou do arco e zás, atirou-lhe certeira flecha.
A bela e possante ave caiu e o príncipe correu e vê-la.
Quando de debruçava sentiu-se no entanto agarrado pelo bico recurvado e as garras aduncas do pássaro.
E seu espanto cresceu quando se sentiu arrebatado pelo espaço e carregado com velocidade espantosa.
Gritou muito, mas ninguém ouviu os seus brados de socorro.
Assim viajaram muito tempo, sem que o pássaro tivesse fome, sede ou cansaço. Passaram por cima de montes e vales, planícies e serras, ilhas mares, atravessando precipícios e vendo muitos rios e grandes cidades.
Após três dias de viagem a grande ave fez rumo a uma ilha ou antes um rochedo que jazia em pleno oceano. Aí depôs o príncipe que estava fatigado e perplexo.
— Onde estou eu? Foi esta a primeira pergunta de João Sem Alma.
— Na ilha dos Anões, disse, por trás dele uma voz jovial e sarcástica.
Voltando-se rápido, viu o príncipe que o pássaro desaparecera; em sua frente estava um anãozinho, de figura jovial e submissa. O pequeno ente tinha longa barba; era um vleho.
João olhou-o com desprezo, e cólera, dizendo-lhe:
— Quem te permitiu tocar no filho de um rei? Foste tu que me fizeste roubar por uma monstruosa ave maldita?
— Fui eu!
— Meu pai te castigará.
— Não tenho medo de ti nem dele.
— Meu pai mandará seus navios a esta ilha e a destruirá por completo.
— Qual! Basta um gesto meu para que a ilha desapareça. Como poderão os navios encontra-la? Olha!
O anão estendeu os braços e os rochedos se foram submergindo nas águas.
João, aterrorizado, quis fugir mas a rocha em que estava também submergiu.
O príncipe lançou nos ares um grito horrível de aflição, e sumiu-se nas ondas revoltas.

III
COISAS QUE SE PASSARAM NA ILHA

— Acorda-te João, disse uma voz argentina.
O príncipe abriu os olhos e ficou admirado do que via; havia poucos minutos fora arrebatado pelas ondas e agora se achava num imenso e belo parque. Um grande palácio de cristal se erguia no meio de um jardim encantador.
— Príncipe, eis o teu reino, disse-lhe o anão, fazendo uma reverência.
— Mas onde estou afinal?
— Na ilha dos anões que existe ou não existe, conforme eu quero. Não está no mapa a ilha, mas que importa se estás bem e te sentes feliz! Toma este anel e mete-o no dedo anular da mão direita. Quando tiveres um desejo a exprimir muda-o para o anular da mão esquerda. Serás logo satisfeito.
O príncipe aceitou o anel e enfiou-o no dedo.
— Aqui terás muitos vassalos, anões que estão aqui e ali escondidos. Aqui serás poderoso ou escravo e previno-te que só de ti depende ser desgraçado ou feliz. Nesta ilha toda a boa ação recebe prêmio e toda malvadez recebe castigo. Adeus.
O anão riu-se maliciosamente e desapareceu.
— Sou rei, proferiu contente o príncipe, satisfeito com as maravilhas que via.
Foi logo visitar o palácio onde viu salas riquíssimas, tapeçarias de seda e pedras preciosas, cadeiras e móveis belíssimos, vasos e ânforas de ouro e prata lavrada, colunas e estátuas admiráveis.
Músicos invisíveis tocavam melodiosos acordes e do teto de cristal caíam pétalas de rosas e gotas de perfumes esquisitos.
Uma mesa de mármore coberta de flores em jarro de ouro e uma baixela de prata indicavam ao príncipe que podia satisfazer o apetite.
Viam-se ali os mais belos assados, pastéis deliciosos, doces e frutas magníficas. Não faltavam vinhos raros e capitosos.
— Não vejo os criados, disse o novo rei... Ah! Tenho o meu anel.
E enfiou no outro dedo.
Apareceram logo dez ou doze anões muito bem vestidos, trazendo outros manjares.
— Andem com isso bradou o príncipe. Gosto de pressa!
Como há tempos não maltratava alguém, lembrou-se chicotear os criados.
Por meio do anel pediu um chicote e logo ao alcance da mão lhe apareceu uma chibata de sete palmos com cabo de marfim e ouro.
Quando ele ergueu o chicote, a desordem foi geral. Os anões fugiam quebrando os pratos e se atropelando uns aos outros. Muitos levaram formidável surra e o príncipe tirano ria a ponto de chorar.
Mas quando os anões desapareceram dos salões e corredores fez-se na sala uma semi-obscuridade e as tapeçarias, estátuas e outros objetos sumiram-se como por encanto.
A sala ficou vazia e as paredes nuas. Parecia um cárcere. No centro havia uma mesa tosca, um pão duro e negro e uma bilha de água.
Na muralha, em letras de fogo, o príncipe leu esta inscrição, cheio de espanto.
“Príncipe, que maltrata os seus servidores os não merece ter. Sirva-te sozinho e contente-se com esse almoço”.
— Bem! Eu sou o dono aqui e me vingarei. Veremos!
Quis utilizar-se do anel mas não houve meios de o tirar do dedo; enfim, suspirando, adormeceu sem tocar no magríssimo almoço de pão e água.

IV
COMO O PRÍNCIPE FICOU SÓ NA HORA DO PERIGO

No dia seguinte o príncipe acordou no meio das riquezas da véspera como se nada houvesse acontecido.
Um anão com um libré de púrpura e ouro trouxe-lhe uma taça com uma bebida agradável e perfumosa.
Bebeu-a de um trago e bradou:
— Traga-me um cavalo e uma escolta. Quero dar um passeio.
Serviram-no logo. Um cavalo ajaezado estava no pátio cercado de uma centena de anões, todos uniformizados.
A escolta era bonita mas o príncipe, cedendo à sua perversidade natural, murmurou entre dentes:
— Ora esta! Um batalhão de moscas! Quando eu entender esmagarei esta corja de insetos!
O anão estribeiro que retinha o cavalo branco como leite, lhe disse, curvando-se até o chão:
— Senhor! Estes companheiros são bravos e generosos.
— Pois bem, sigamos; eu verei se isso é verdade.
Com a idéia maldosa de fazer cansar os anões ele esporeou o ginete mas a escolta estava sempre a seu lado.
Chegando ao alto de um rochedo a pique sobre um precipício ele bradou para a escolta:
— Eis aqui boa ocasião de mostra que sois bravos. Atirai-vos um a um, neste abismo, de cabeça para baixo. Vamos! Quem é o primeiro?
Os anões se entreolharam consternadíssimos.
— Eu mando! Obedecei!
Uma um os anões se precipitaram no espaço caindo numa torrente onde desapareciam.
O príncipe ficou satisfeito com a crueldade que fizera e continuou o passeio.
Antes de cem passos encontrou um formidável dragão que saindo de uma gruta, lhe impedia o caminho.
— Ai de mim! Socorro! Socorro! Onde estão os anões dizia ele, desesperado.
Procurou o anel, mas esquecera-o no palácio . entretanto, o bicho continuava ameaçador, e o ginete cheio de terror empinou-se e atirou fora o cavaleiro que tombou à pequena distância do monstro.
João sem alma perdera a fala de medo, mas o dragão não se moveu. Dir-se-ia que só queria meter-lhe medo.
Ao mesmo tempo o príncipe lia tremendo esta frase, escrita na parede da gruta, em línguas de fogo:
“Príncipe, quem é mau na prosperidade, fica só na desgraça”.
Sumiram-se as letras e ele deitou a fugir como um louco depois que viu o dragão meter-se na gruta.
Transviado do caminho e fatigado adormeceu com a cabeça num tronco de árvore.
De manhã, acordou perplexo, sem saber os caminhos, mas logo avistou o palácio onde tudo estava como na véspera.
Só então respirou tranqüilo e almoçou.
À parte os criados que o serviam, não via o príncipe outras pessoas. Os dias foram decorrendo cada vez mais melancólicos e tristes. Ele, entretanto, continuava a praticar maldades.
Dos pássaros na mais se ouvia o canto, pois fugiam para evitar as flechas e pedradas do tirano; músicas fúnebre e monótonas e a s flores do jardim que ele fustigava com a bengala pendiam murchas e abatidas.
O príncipe passava as horas, dormindo sobre os coxins e bocejando a todo instante.
— Onde se metem, afinal, os meus vassalos? Vou reuni-los e passar-lhe revista, pois estou cansado de reinar neste horrível deserto.
Logo que pôs o anel encantado, a planície e os jardins se encheram de anões e duendes; eram muito numerosos.
João Sem Alma, montando um belo animal e com o espírito cheio de maldade, atirou o cavalo sobre aquela multidão, pisando e atropelando, criticando a estatura, o rosto, e, afinal esmagando alguns.
A turba gritava de medo, mas João continuou mais feroz. Desembainhou a longa espada e ergueu-a mas antes que ferisse alguém, todos fugiram, deixando-o sozinho.
Furioso e embainhando o gládio, João leu na relva verdejante estas palavras:
— “Quem quer governar os outros deve primeiro governar a si mesmo”.

V
COMO O AMOR REGENERA TUDO, ATÉ MESMO UM MAU SUJEITO.


O príncipe continuou a viver só no seu despovoado domínio.
— Isto na pode continuar, disse. Desejo ver o duende que me fez rei!
Aqui estou, senhor. Era o anão da barba branca.
— Estou descontente, falou o príncipe; tenho um palácio que se poderia chamar do Silêncio e do Aborrecimento; tenho um reino e não tenho vassalos; posso pedir o que entendo mas sou logo punido.
— Não te disse que seria feliz ou infeliz conforme escolhesse o bem ou o mal?
— Não conheço que é bem, e o mal me agrada. Tenho ou não tenho o direito de fazer o que me agrada?
— Tem o direito a tudo, menos maltratar os que te cercam. Neste caso os tiranizados têm o direito de fugir e te odiar. Queres mais alguma coisa?
— Sim desejo voltar ao palácio de meu pai.
— Isso não é coisa de alçada minha, pois apenas obedeço ordens a quem vos trouxe aqui.
— Pois quero vê-lo.
— Ainda não é tempo. Posso dar mais riquezas, se quiseres.
— Pois bem; quero ouro e pedrarias, um palácio mais belo, cortesãs, damas e pajens e para esposa a mais formosa princesa do mundo.
O anão estendeu os braços; um enorme clarão ofuscou por momentos, os olhos do príncipe e quando ele os abriu, viu-se numa vivenda verdadeiramente imperial, entre numerosos e elegantes fidalgos, distintas damas. Era uma corte opulenta e faustosa!
João Sem Alma ficara deslumbrado.
Não eram mais minúsculos anões mas senhores e damas em roupas e de gala, pajens e guardas. O anão tomou a mão do príncipe e levou-o pelo braço. Desceram a escada entre aclamações e tomaram o caminho da praia.
— Venha, príncipe, receber sua noiva.
Mostrou-lhe um barco ao longe.
— Não vê aquela vela? É o navio, que traz a princesa Flora, a mais formosa e meiga princesa do mundo.
O príncipe, satisfeito, viu a galera aproximar-se rapidamente e logo que ancorou foi apresentar as homenagens à sua noiva.
Esta era deveras encantadora, maravilhosamente bela. Seguia-a lindas damas de honor e pajens esbeltos e belos. A princesa vestia um tecido de seda prata e ouro e, na cabeça, sobre os louros cabelos, brilhava um rico e fúlgido diadema prendendo um véu riquíssimo.
João Sem Alma, a quem não faltava espírito, como já sabemos, saudou a princesa, dizendo:
— Sede bem-vinda neste reino que será o vosso.
Os fidalgos acercaram-se e os acompanharam até o palácio.
Nisto uma pomba veio pousar no ombro da princesa e João Sem Alma não se agradou do fato.
Cedendo aos seus maus instintos agarrou brutalmente a avezinha, torceu-lhe o pescoço e atirou-a aos pés da princesa.
— Oh! Que maldade, exclamou ela, em lágrimas. Levem-me para bordo do meu navio. Não quero nem posso viver numa terra em que os bons e os inocente não tem o direito de viver.
O príncipe ficou vermelho de raiva.
— Pois então por causa de um miserável bicho recusais ser minha esposa? Não sou eu bastante belo para aspirar a vossa mão?
— Sois de fato, muito belo, mas eu prefiro à beleza do coração à formosura do rosto.
E sem dizer mais uma palavra, nem volver a cabeça, dirigiu-se para o navio que se fez ao largo imediatamente.
O príncipe procurou os fidalgos, mas estes se haviam sumido como por encanto.
O príncipe, atônito, viu-se só, como dantes sobre um rochedo, vendo desaparecer as velas do navio que levava a princesa Flora.
Quando ela se sumiu no horizonte, João Sem Alma, pela primeira vez na sua vida sentiu uma aflição no espírito e começou a chorar convulsamente.

VI
UM FELIZ REGRESSO

Perdera a ilha todo o encanto e dela só restava o rochedo, batido pelas vagas.
— Ai de mim, exclamava o príncipe, erguendo os braços par ao firmamento. Sou maldito, maldito! Ninguém me amará porque sou mau.
E continuou, ajoelhando-se:
— Dava todo o meu reino, toda a fortuna e minha beleza para ter um coração piedoso e compassivo como o da princesa Flora!
Nisto pousou-lhe no ombro a mão dum anão.
— Bravos, meu afilhado, acabais de reconquistar a mão da princesa. O príncipe João Sem Alma não existe mais. Viva João o Bom!
— Quem és, perguntou o príncipe, admirado e fitando o anão que se embrulhava no capote encarnado.
— Vossa mãe vos dirá quem sou eu. Essas lágrimas vos regeneraram. Acabais de escolher entre o Bem e o Mal, e preferistes o primeiro. Bem vedes que todas as riquezas, glórias e vaidades não valem o prazer de fazer bem e ser querido.
— Acredito. Tenho pressa de abraçar meu pai e principalmente minha mãe para quem fui tão ingrato.
— Pois ireis. Naquele navio vem a princesa Flora; ide com ela, disse o anão mostrando uma linda galeota que velejava.
A princesa Flora recebeu o noivo cordialmente e sorrindo. Os mastros estavam enfeitados com rosas e folhagens e quando ela apareceu e abraçou o noivo a música tocou e os marujos deram vivas e içaram bandeiras festivas.
— podeis partir, disse o anão; já mandei mensageiros alados avisar a vossa volta. achareis lá bons corações que vos amarão e vosso casamento será festejado com alegria.
Pouco depois a galeota abria velas ao vento bonançoso e se sumia na bruma.
Imagine-se com que alegria foi o príncipe recebido pelos seus pais que acharam a Princesa Flora belíssima.
Houve uma festa magnífica e João quis que todos participassem dela. Fizeram-se largas distribuições de vinhos finos e doces, gastando-se milhões de moedas, mas todos os lares festejaram as núpcias do ex-João Sem Alma, que passou a ser depois — João o Bom.







O título do livro é A ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.

O livro inicia-se com

AO LEITOR.

Mais um livro de histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência, o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a única no Brasil.
O presente volume que foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário