sábado, 5 de abril de 2014

MERECE SER LEMBRADO 19


O HOMEM DE UM SAPATO SÓ

O príncipe Jasão fora educado às escondidas do rei Pélias que destronara seu pai. Aprendera a manejar as armas e a tocar harpa, conhecia as virtudes das plantas e era robusto, são de corpo e de espírito.
O príncipe, quando se fez homem só pensou em vingar seu pai, morto por Pélias, e subir ao trono de Iolchos que este usurpara.
Pôs-se a caminho, resolvido, com uma lança em cada mão e uma pele de tigre nos ombros; por onde passava todos perguntavam onde iria aquele lindo moço, de cabelos louros, e com os pés calçados em sandálias ricas, de brocado de ouro e prata.
Já ia longe, Jasão quando deparou com um riacho que as chuvas haviam tornado torrente impetuosa. Rugia e espumava tanto que ele parou na margem. De vez em quando passavam destroços de árvores, folhas de palmeiras, troncos e animais mortos. Tudo batia nos rochedos, escapava-se e lá ia, no perigoso torvelinho das águas. A passagem não seria fácil pois não havia ponte e o riacho, cheio, não dava bom vão. A nado, a travessia oferecia também perigos.
Jasão hesitava, quando ouviu uma voz escarninha:
— Ora, vejam com o educaram este pobre rapaz! Está com receio de atravessar esse fio de água! É pena!
O moço voltou-se e viu então uma velha, com o rosto enrugado, a cabeça coberta por um chalé e tendo na mão emagrecida um bastão longo. Os olhos, no entanto, castanhos, eram belos e brilhantes, a ponto de Jasão não poder suportar-lhes o fulgor. Na mão direita tinha uma romã, embora não fosse tempo dessa fruta.
— Onde vais Jasão?
— Vou a Iolchos expulsar o rei Pélias do trono e sentar-me nele em seu lugar.
— Muito bem. Pelo que vejo não tens muita pressa. Carrega-me nas costas e transporta-me até a outra margem, a mim e a meu pavão.
Viu então o moço um pavão belíssimo ao lado da velha.
— Boa mulher, retorquiu o jovem, o que você tem a fazer não há de ser tão importante como derrubar um rei... o rio está caudaloso...
— Se o caso é este não mereces ser rei, tornou a velha, em tom de desprezo. Se tu não ajudas uma pobre velha,que te há de ajudar? Ou tu me carregas às costas ou então eu mesma, com estas fracas pernas, experimentarei passar a torrente.
E, dizendo isto, tateou com o extremo do cajado o fundo do rio para se apoiar.
Mas Jasão se arrependera de sua hesitação e lembrou-se que podia suceder algum mal à pobre velha. Pôs-se então de joelhos e pediu à anciã que lhe trepasse nas costas.
— Vou tentar, disse ele, endireitando o busto e entrando n’água. Se a torrente a afogar me afogará também.
Ela passou os braços ao pescoço do jovem e o pavão subiu ao ombro dela. Jasão tropeçava aqui e ali, agüentando-se com as duas lanças fincadas no fundo. No meio do rio a correnteza o levou um instante, de envolta com as folhas e raízes, mas desvencilhou-se logo. Quase ao galgar a margem prendeu-se-lhe o pé entre duas pedras e, para tira-lo teve que deixar uma das sandálias. A caudal levou-a.
Jasão soltou uma exclamação de pesar.
— Que há, meu filho?
— Que há!? — É que perdi o meu coturno de ouro que foi de meu bom pai. Ora esta! Terei de apresentar-me a esse rei Pélias como pé descalço!
— E o outro calçado com um coturno de laços de ouro? Que tem isso, Jasão? Acredita-me, acrescentou ela, nunca a sorte te favoreceu tanto como hoje. Tudo isto me prova que és o homem cuja vinda a Árvore Falante me anunciou.
O momento não era para conversas mas apesar de lutar contra a força das águas, o moço sentia-se cada vez mais forte. Não sentia cansaço nem o oprimia o peso da velha e seu pavão: ao contrário, as forças cresciam a cada instante. Assim, depressa,subiu a ribanceira e pôs a velha em terra firme. Depois, deu um suspiro, olhando para o pé nu.
— Terás muito breve um rico par de sandálias e logo que Pélias te veja com uma sandália só ficará pálido de medo. Vai. Segue este caminho que te mostro e recebe a minha benção. Quando subires ao trono lembra-te da velha a quem carregaste para passar o rio.
A velha se foi manquejando e Jasão percebeu que a cercava uma espécie de auréola luminosa. O pavão acompanhava-a orgulhoso, abrindo em leque a cauda formosíssima.
Quando Jasão os não viu mais, seguiu o caminho indicado e avistou uma cidade perto de uma montanha, e de uma linda praia. À proporção que se aproximava via o moço muita gente, homens, mulheres e crianças, vestindo ricos trajes; havia, portanto, festa, e Jasão pergunto a um dos assistentes como se chamava a cidade e por que tanta gente se achava ali fora dos muros.
— Esta cidade é Iolchos. Estamos aqui para ver o sacrifício de um touro, feito pelo próprio rei Pélias que está ali, em baixo de um docel. O sacrifício é a Netuno, que é o pai de Sua Majestade.
Enquanto falava, o homem examinava Jasão, de alto a baixo, estranhando as feições e o vestuário esquisito do jovem, deveras impressionante com a sua beleza de rosto e formas, as duas lanças na mão e a pele de leopardo nos ombros. Uma outra coisa ainda chamava a atenção e era o coturno dos laços de ouro num pé ao passo que o outro estava descalço.
— Veja! Veja! Disse o homem a um vizinho; tem só uma sandália!
E assim, um ao outro, este àqueles, se puseram todos a reparar em Jasão dizendo:
— O homem de um só coturno!
— É mesmo!
— Sempre veio! Hein?! Bem o diziam...
— Donde vem ele?
— Que quer? Que pretenderá?
— Que dirá o rei quando o vir?
O pobre Jasão caminhava, não deixando de dizer consigo que eram pouco corteses aqueles habitantes entretidos a lhe examinarem os pés. A multidão em borborinho, confusa o foi levando para junto do rei que o interpelou:
— Que és? Como vens perturbar meu sacrifício religioso?
— Não é minha culpa, mas sim dos vassalos de Vossa Majestade que estão admirados de ver um homem com o pé descalço
A estas palavras o rei olhou os pés do jovem e o seu rosto cobriu-se de intensa palidez.
— Ah murmurou ele, o homem de um sapato só? Que irei fazer dele?
E assim falando, apertava o cabo do facão com mais vontade de crava-lo no jovem que no novilho.
Os assistentes viram o gesto e as palavras do rei, e num coro enorme, as vozes se alevantaram:
— Veio o homem da sandália! Vamos ver se o oráculo se cumpre ou não!
Alguns anos antes da história que narramos, o rei Pélias tinha sido advertido pelo oráculo de Dodona — uma árvore de cujos galhos saía uma voz — que um homem usando um só coturno o derrubaria do trono.
Por isso o rei não admitia pessoa alguma sem o par de sandálias costumeiras, e havia um fiscal só para examinar calçados e substituí-los à custa do tesouro público.
Ver Jasão foi pois um grande susto, mas o rei era animoso e tratou o jovem com astúcia:
— Vens de longe, de certo; pelo teu traje se vê. Onde foste criado?
— Numa gruta. Meu mestre, um sábio e um forte me ensinou o manejo das armas e a arte de curar. Também me ensinou música e moral.
— Vamos, jovem amigo, creio saber quem tu és e quem te educou. Quero conhecer agora o teu pensamento. Dize: Que farias tu de um homem que viesse te prejudicar e a cujas mãos tu devesses morrer?
Jasão respondeu, lealmente, não duvidando que Pélias tivesse desvendado o seu incógnito:
— Manda-lo-ia a uma empresa arriscada: — a de ir buscar o velocino de ouro, através dos mares.
Os olhos de Pélias brilharam de alegria.
— Bem respondido e admiro tua valentia. Prepara-te sem receio de mim e traze-me esse tesouro.
— Irei. Senão o conseguir não temais meu regresso; mas se eu voltar, então tu hás de ceder-me o trono e o cetro.
Assim terminou o diálogo e Jasão foi logo consultar o oráculo. Era um carvalho anoso, da altura de uns trinta metros e que espalhava extensa sombra.
Jasão perguntou:
— Que devo fazer para trazer o velocino de ouro?
Fez-se um silêncio profundo e depois as folhas se agitaram côo se o sopro do tufão as açoutasse. Houve como que milhares de murmúrios que se condensaram numa voz rouca:
— Procura Arguns, o construtor de navios e faze-lhe encomenda de uma galera de cinqüenta remos.
Depois a voz se foi sumindo.
O príncipe, conquanto admirado, procurou o carpinteiro e este chamando seus operários e aprendizes pôs mãos á obra para fazer o maior barco desse tempo. Lutou o construtor para achar um madeiro curvo para a roda da proa.
Jasão não teve dúvida em consultar o oráculo de novo. Houve o mesmo sussurro, e um grosso galho respondeu com se a voz lhe saísse de dentro:
— Corta-me e terás o que pedes. Manda esculpir um busto que porás na proa de tua galeria.
O pesado ramo curvo foi cortado e o escultor talhou o busto; parecia, dizia ele, que mão oculta e hábil o guiava na sua obra. Representava um meio corpo de uma mulher bela, ornada de um capacete sobre os cabelos em anéis. No braço esquerdo tinha um escudo, no centro do qual havia o retrato ou a cabeça de Medusa com a cabeleira de serpente.
Com o braço direito em riste apontava o desconhecido...
Jasão não descansou enquanto o busto admirável da estátua não ficou colocado à proa admirando as feições nobres e expressivas da mesma. Parecia falar.
— Agora, disse ele, vou perguntar o que devo fazer.
E mal acabava de falar, ouviu:
— Não precisas mais, Jasão ter esse incômodo, aqui estou para dar-te os conselhos que quiseres.
Jasão estava perplexo. A estátua movera os lábios. Falara.
— Dizei-me, estátua maravilhosa, onde eu encontrarei cinqüenta remeiros, bravos e de pulsos vigorosos?
— Faze um apelo aos heróis da tua terra. Envia mensageiros a todas as cidades da Grécia dizendo que o Príncipe Jasão parte mar afora e precisa quarenta e nove remeiros e ele será o qüinquagésimo!
A proclamação causou na mocidade um grandioso entusiasmo e foram muitos os que se apresentaram como voluntários. Vieram os dois gêmeos Castor e Pollux, o valente Theseu, Lince que tinha uma vista prodigiosa. Orfeu, cuja lira amansava as feras, o fortíssimo Hércules e a veloz Atalanta que corria mesmo sobre as ondas sem molhar os pés. Havia ainda os dois filhos do Vento Norte, que com as bochechas cheias, sopravam nas velas quando o vento calmava.
Jasão escolheu para piloto ou palinuro a Tifins que sabia ler os segredos dos astros e dirigir um navio e na proa colocou Lince, que avistava os rochedos para que os evitassem.
Pronto o navio, todos lhe encostaram ao casco os ombros para deita-lo ao mar, mas o barco não se moveu e o chefe da expedição, consultou a figura da proa.
— Manda que os remeiros se sentem nas bancadas e empunhem os remos; que Orfeu tome a harpa e a dedilhe.
Orfeu, contente, pois tocar harpa não cansava tanto como o punho do remo, fez ressoar uma suave melodia e a galera com os remeiros a postos desceu do estaleiro. À medida que a música se animava, mais rápida deslizava. Por fim correu graciosa, mergulhando a formosa estátua de madeira com boca como se ela tocasse as ondas à flor dos lábios.
No porto havia imensa multidão que aclamava os audazes navegantes. Só o rei Pélias pedia aos deuses que fizessem soprar terrível tempestade de modo que Jasão e seus companheiros não mais voltassem.
Muitas foram as aventuras por que passaram Jasão e seus amigos. tiveram de combater enorme gigantes que tinham seis braços e seis mãos, mas que fugiram a sete pés diante das flechas dos marinheiros, outra vez lutaram com aves de largas asas e garras possantes que deixaram cair inúmeras setas. Havia já muitos feridos quando Jasão se lembrou da estátua e lhe disse:
— Ó Filha da Árvore Falante, que havemos de fazer?
— Bater nos escudos, respondeu ela.
Logo todos começaram a bater nos broqueis de bronze fazendo um barulho infernal: só assim as águias os deixaram em paz. Orfeu celebrou esta vitória tocando um hino triunfal.
Na porta de uma ilha onde estavam descansando viram chegar um navio do qual, desembarcaram dois jovens príncipes, filhos de um certo rei Étes, que dominava na Colchida, lugar onde esta o velocino.
Os príncipes procuraram dissuadir Jasão da temerária empresa, mas vendo sua resolução e a de seus companheiros, ofereceram-se para leva-los à presença do rei o qual recebeu os argonautas muito hipocritamente.
Jasão achou-o, na fisionomia, e no trato pérfido, muito parecido com o rei Pélias.
O rei queria saber as idéias de Jasão e o saudou:
— Sede bem-vindos, vós e os vossos. A que devo o prazer de vos ver? Andais a passeio?
— Vim aqui com o desígnio de levar o velocino de ouro que está em seu Estado. Preciso portanto a licença de Vossa Majestade.
O rei fez um gesto de mau humor, pois o recém-chegado queria nada menos que um dos seus mais belos tesouros. Sossegou lembrando-se das dificuldades com que ele ia lutar.
— Sabes tu quais são as condições a que te vais sujeitar?
— Sei de um dragão que devora a quem se aproxima da árvore onde está o velocino de ouro.
— É exato, mas não é tudo: terás de domar meus dois touros de pés e pulmões de bronze e que tem no peito uma fornalha, feita pelo Deus dos infernos. Eles cospem fagulhas tão ardentes que qualquer que se aproxima fica em cinzas...
— Verei se os amanso, disse o moço com calma.
— Depois dos touros, continuou o rei que tinha vontade de amedrontar Jasão, tens que semear os dentes de um dragão. Das sementes nascerão guerreiros que te darão que fazer. Não tens receio? Eles cairão sobre ti com a espada na mão.
— Pode ser que os domine. Sempre é bom tentar.
— Pois bem, murmurou o rei, que o dragão o carregue e os touros o queimem, que bem me importa!! Descansai, continuou ele com alta voz, dormi em paz pois amanhã partirei com a charrua para atrelar os touros.
Quando Jasão se retirava viu que alguém o seguia no corredor do palácio. Viu um bela mulher que lhe bateu no ombro e disse:
— Sou a princesa Medéa, e, escondida atrás do trono, ouvi a tua conferência com meu pai, o rei da Colchida. Eu sei muitas coisas que muitas princesas não sabem e dizem que sou poderosa em magia. Meu pai mesmo não suspeita de quanta coisa posso fazer. Simpatizei contigo e te protegerei.
Jasão ouvia atento, reparando naquele olhar profundo e misterioso, e naquele rosto tão belo, de linhas perfeitas sobre um corpo escultural; ficou silencioso e ela continuou:
— Eu te ensinarei a domar os touros e semear os dentes do dragão, e a conquistar o tesouro que cobiças, mas, em troca, peço uma coisa.
— O que? Perguntou ele.
— O teu coração e a promessa de que me levarás contigo e me amarás.
— Prometo levar-te e não será difícil consagrar-te amor.
— Sei de alguns de teus segredos, pois a feiticeira Circe, irmã de meu pai, me ensinou a ler o futuro e a desvendar o pensamento. Se eu quisesse poderia dizer-te quem era a velha mulher do pavão, e qual a voz que fala pela boca da figura de proa da tua galera... sem mim, talvez o dragão te pegasse.
Mas Jasão era homem inacessível ao medo. Encolheu os ombros dizendo:
— Inquieto-me tanto com o dragão como com os tais touros fumegante... Sei que os atacarei.
— Se és tão valente como penso, tornou Medéa, tua coragem te aconselhará na hora do perigo. Posso dar-te um ungüento maravilho que te preservará do hálito inflamado dos touros.
E deitando-lhe um olhar apaixonado que perturbaria outro homem que não fosse Jasão, ela deu-lhe um cofrezinho contendo a salvadora pomada.
— Adeus, disse ela, à meia-noite, na escadaria pequena de mármore, atrás do palácio.
Jasão foi logo procurar os companheiros aos quais ordenou estivessem prontos a dar-lhe auxílio.
À hora marcada, o príncipe encontrou Medéa que lhe deu um cesto com os dentes de dragão. Seguiram, a par, pelas ruas desertas até o campo de pasto onde estavam os touros. A noite estava estrelada e de belo luar.
Medéa mostrou ao longe os dois touros deitados e quatro jatos de fumaça avermelhada que saiam das narinas. Jasão, calmamente, untava-se com ungüento e deu um passo em frente depois de apertar a mão de Medéa.
A alguns passos de distância os touros sentiram o faro de alguém que se aproximava e exalaram mais fumaça e chamas. Apercebendo o vulto do moço do extremo do campo, eles se puseram de pé, numa investida terrível, bufando labaredas. Deram um rugido horrendo que se ouvia na cidade.
O moço desviou-se um pouco mas as chamas o cercaram sem lhe fazer mal. Depois, murmurando “Medéa tem razão”, aguardou os touros a pé firme, e quando eles pensavam que o jogariam no ar, Jasão segurou um pelos chifres e o outro pela cauda, mantendo-os com a sua força prodigiosa. Convém dizer que, assim, lhes havia quebrado o encanto e, apesar das patas de bronze, estavam reduzidos a bois vulgares. Ele atrelou-os e foi lavrar um pedaço de campo para nele semear os dentes do dragão.
Desfeitos os torrões, Jasão tomou os dentes do feroz bicho e semeou-os atirando-os esparsos. Cobriu com terra as estranhas sementes e foi ter com Medéa que o esperava no fim do campo.
A lua ia muito alta.
Daí a pouco a terra arada movimentou-se aqui e ali e saíram do solo, a princípio escudos, depois lanças, braços e cabeças e afinal o campo ficou cheio de guerreiros todos armados e cheios de cólera. Jasão ouviu-os gritar:
— Que é do inimigo? Vamos! Vamos!
De súbito viram o príncipe que avistando tanta gente armada puxara a espada. Ao mesmo morreria combatendo.
— Atira-lhes esta pedra, disse-lhe Medéa, dando-lhe um grande calhau. Só assim escaparás.
O mancebo jogou o pedregulho que tombou no meio deles derrubando um e indo bater no capacete de dois outros. Os três guerreiros atingidos começaram a brigar entre si, cada qual julgando que seu agressor fosse o seu vizinho. Deste modo a confusão tornou-se geral e os que avançavam sobre Jasão retrocederam pensando que estavam sendo atacados pelas costas.
A luta tornou-se furiosa e eles se deceparam ferozmente braços e pernas. Foi um combate terrível e o chão ficou cheio de mortos: por fim só restava um que caiu gritando: — Vitória, vitória!
— Que durmam em paz os cem guerreiros e vamos, Jasão, disse ela. O dia vai amanhecer. Viste, meu príncipe, como morrer estes soldados batendo-se sem saber por que?
— Sim. Que me aconselhas agora?
— Sigamos ate o palácio e procurarás meu pai a quem darás conta das tuas façanhas desta noite. A maior parte das condições que ele te impôs para a obtenção do velocino de ouro, já está cumprida.
Jasão deixando Medéa na escadaria narrou aos companheiros as peripécias da luta. Eles sabiam uma parte pois Lince avista tudo com a sua vista maravilhosa.
Pela manhã entrou Jasão na sala do rei que se mostrava colérico e inquieto e lhe disse com modéstia:
— Os touros estão domados, real senhor, semeei os dentes, nasceram os guerreiros que se mataram reciprocamente, até o último e peço licença para combater o dragão e depois levar o tesouro e partir com meus companheiros.
— Sim, mas para isto foi preciso que minha filha, a desobediente Medéa, vos ajudasse com seus sortilégios. Pois bem, príncipe Jasão, eu vos proíbo, sob pena de morte, tentar mais alguma coisa para obter o que pretendeis. Não consentirei!
Jasão desceu, triste e zangado as escadas de mármore Medéa o esperava num sítio que marcara.
— Que disse meu pai?
O moço narrou-lhe a proibição que recebera.
— Eu já sabia e mais alguma notícia de interesse. É preciso partir hoje de madrugada. Meu pai vai mandar incendiar a tua galera e tu e teus companheiros sereis passados a fio de espada.
— Eu não partirei sem atacar o dragão; não sei se o vencerei mas lutaremos com ele, eu e meus companheiros.
— Esqueceste de mim, que te protejo e a quem prometeste amar, Jasão? Confia em mim e volta aqui, à meia-noite.
À hora aprazada voltou o príncipe e Medéa lhe deu o braço. Atravessaram a cidade, o campo onde os touros, já manso, os vieram receber, mugindo e, chegaram à floresta.
Um velocino de ouro, luzente, pendia do ramo de uma árvore e sobre a relva, um carneiro de ouro também, estava deitado.
Jasão quis avançar, mas Medéa o deteve:
— E o dragão, não o temes?
A mágica acrescentou, vendo que ele desembainhava sua larga e cortante espada.
— Embainha teu gláudio... Não sou eu o teu anjo protetor? Tenho neste frasco a arma que vencerá o dragão melhor que teu ferro. Olha:
Mas o bicho ouvira vozes e já se aproximava traiçoeiro com a goela aberta, quando Medéa lançou dentro dela o conteúdo do frasco.
A fera deu um rugido tremendo, teve uma formidável convulsão e caiu ficando inerte.
— Dei-lhe um narcótico pois não tenho o poder de destruí-lo de uma vez. Apodera-te do tesouro. Anda.
Jasão pusera o Carneiro aos ombros e Medéa fora buscar o velocino de ouro.
— Agora, disse ela, sigamos por este atalho que vai dar ao porto. Embarquemos e partamos. Tua vida corre perigo, meu querido Jasão. Este corria, vergado ao peso da carga preciosa.
Em pouco tempo chegaram à praia, onde a galera estava pronta para partir. Tifis empunhava o leme e os remeiros estava nos postos.
Atalanta içou as velas.
Lince, com a vista que possuía, já lhe contara a história do seu chefe. Medéa e Jasão pularam para bordo, com os preciosos tesouros e ouviram uma voz. Era a figura da proa que falava:
— Nada de demoras. Larga!
Os remeiros bateram as águas com vigorosas remadas. Orfeu tomou a harpa e tocou um hino triunfa enquanto os quarenta e nove heróis aclamavam seu chefe. Era tempo de fugir.
O rei de Colchida ficou furioso e mandou os seus navios em perseguição. Tudo foi inútil.
O rei Pélias foi derrubado subindo ao trono Jasão, cujo casamento com a formosa Medéa foi realizado com grandes festas e alegria de seu povo.
Eis aqui a história do homem de um sapato só. Ele porém não venceria sem os sortilégios de sua mulher a princesa Medéa, o que comprova o ditado: “Quando a mulher quer, até Deus também quer”.



O título do livro é A ÁRVORE DE NATAL.
O nome do autor não foi possível identificar, mas na parte da capa que resta aparece um nome Tycho Brahe.
A editora é LIVRARIA QUARESMA, Rio de Janeiro, 1959.

O livro inicia-se com

AO LEITOR.

Mais um livro de histórias é hoje oferecido às crianças brasileira.
A ÁRVORE DE NATAL ou TESOURO MARAVILHOSO DE PAPAI NOEL, revela mais uma vez ao bom público que nos tem protegido e amparado com sua benevolência, o progresso que temos incutido à nossa Biblioteca Infantil que é a única no Brasil.
O presente volume que foi confiado a reconhecido e autorizado escritos, contém muitas histórias originais e várias adaptações de novelas de mestres como Shakespeare, Tolstoi, Perrault, La Fontaine, etc. ... Não são a repetição do que já temos publicado ou mesmo parodiado, mas sim trabalhos coligidos de maneira que a ficção, sempre imaginosa, ande a par com o fim de todo o livro infantil: deleitar, instruindo.
Tais contos, como agora damos à luz da publicidade, são um precioso elemento de educação doméstica, pois, como diz La Fontaine: “ Quem não acha um prazer extremo em ouvir histórias mesmo inverossímeis?” São uma formosa coletânea que agradará a nossos leitores e principalmente aos seus filhos e que virá demonstrar nosso constante empenho de ser útil e agradável às crianças que falam a nossa bela língua portuguesa.





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